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Samba Paulistano
 
26 de novembro de 2021, nº 55

SAMBA-ENREDO MOCIDADE ALEGRE 2022
A Mocidade Alegre explora a figura de Clementina de Jesus numa homenagem direta. Nesse cenário, a Morada do Samba, reverencia, segundo palavras da sinopse, de joelhos a figura de uma mulher que é a cara do Brasil. Preta, favelada, do samba, a voz de navalha é apresentada em verso e prosa na temática.

Enredo: Quelémentina, cadê você?
Carnavalesco: Edson Pereira


Homenagem a Clementina de Jesus é o enredo da Mocidade Alegre

Sinopse do Enredo

Quando eu morrer, vou bater lá na porta do céu e vou falar pra São Pedro que ninguém quer essa vida cruel

O batuque fervia na relva verde dos campos de Valença, ritmado pelo canto das lavadeiras que entretinham o tempo e relembravam o passado ancestral de sua gente. Herança que ganharia forma na voz inconfundível daquela que, desde sempre Rainha, seria, enfim, décadas depois, coroada. Vivia Clementina! A fé nasceu com ela no Carambita e se fez presente em toda a sua vida: uma vida sem fé, para Clementina, não era vida. No seu espírito alegre qual uma flor, a tradição das Áfricas. Estava tudo lá e ela era tudo por inteiro. A valenciana dos Jongos, Curimas, Pastoris, Folias de Reis, que se protegia — alma aguerrida sim senhô! — com o poder do banzo e da mãe ganhadeira de beira de rio com devoção de rezadeira. Herdeira do povo Banto, das negras e negros guerreiros, de todos que ansiavam por serem ouvidos, daqueles que sofreram em kalungas, é ela quem personifica a voz brasileira. Mulher, preta, pobre, idosa, doméstica, favelada, gigante, Rainha! Tina, a Preta do Brasil! Negra da voz rasgada! Cruzavam seu peito a cruz para fechar o corpo e o terço protetor de Nossa Senhora da Glória. Saiu da roça para viver e ser o próprio morro, lavadeira e doméstica com orgulho — jamais empregada de branco algum! Subia e descia ladeiras, desde nova andando pelas bandas de Oswaldo Cruz e depois enroscando-se aos Pés da Mangueira, o samba na veia e a nêga com sorriso estampado de quem sabia viver.

No caminho iluminado, impedia o desbotado covarde destino que a coroação acontecesse mais cedo — a Preta Véia, cara a cara com ele, torceu-o na marra com a plenitude da sabedoria. Em meio a tantas perdas, a alegria perdurou e deu retorno no seu peito aberto que acolhia os dissabores dos excluídos e resistentes no toque do atabaque. O som da cor foi maestro na constituição de alianças fraternais. Foi assim que o Sagrado promoveu encontros que marcaram para sempre a história do samba. Testemunha viva daqueles primeiros voos da Águia de Madureira, as raízes africanas aproximaram-na do Candomblé e, com seu corpo fechado, figurou como baluarte do samba. Colheu, da Portela e da Mangueira, o mais belo fruto: a amizade verdadeira dos bambas. A miséria doía, claro, mas o espírito era mais forte. Ecoou pelo mundo a negritude da nossa Dama Negra por batismo e por ancestralidade, essa nobre gigante brasileira! Rainha Ginga na janela cantando histórias à terra batida e aos ouvidos de hoje e de outrora, comadres e compadres enfeitiçados pela musicalidade, enquanto fervia feijão para todos nós! A Ela, a Glória! A arte de sambar com o coração e a boemia na Taberna da Glória, Clementina mostrando-se, impondo-se para ser reconhecida! Rainha que sentiu na pele o peso do preconceito, da dor e do desamor. Sonhoua liberdade através do samba, enquanto a madrugada fria lhe trazia a agonia das favelas da sua vida. Seu canto-lamento, alimentado pelas agruras da dura realidade, deu alma à pioneira voz. E a filha lavou a alma das pretas! Pelos morros sagrados e nos asfaltos pálidos, ela defendia uma vida de respeito. A voz que trouxe visibilidade à mulher negra foi Rosa de Ouro e levou a negritude aos palcos, entrando de vez para o estrelato, benzedeira dona dos segredos dos mistérios do samba. Quelé!

Em seus cantos, a luta das negras e negros açoitados, a dor do processo de crueldade alva que por séculos abafou a voz preta. O Tempo deu tempo para que o Axé e sua luta fizessem-na surgir para a aclamação, tornando-a um dos pilares desse nosso chão. Cantava quase falando e falava sempre cantando, as palavras roucas dançando na boca por vezes triste, clemência da vida sofrida, mas fortes pela herança preta que deu os tons que chacoalharam o Brasil. O tempo corria como se fizesse uma pergunta: “Clementina, cadê você?” Quelé respondia, aguerrida: “Estou aqui! Fui feita pra vadiar!” E como vadiou! Brincou, cantou e encantou o Brasil. Negra-Mãe da música feita e refeita na luta pela liberdade — na garganta da Preta Quelementina, o grito de dignidade dos que não tiverem direito nem à tradição do próprio nome. A nêga pediu passagem e o mundo se curvou. Rainha-Peixeira, liberdade conquistada no gogó e com o trilhado traçado pelas próprias pernas endurecidas, inquebráveis. Ela, aquela dos barracos, cozinheira, neta de escravos, Rainha dos Marinheiros, é quem sentenciou: “Levanta, povo! O cativeiro já acabou!”. Sorriu na dor para impor o valor e a força das pretas ao mundo inteiro. Tornou-se Santa no altar da música brasileira! Devota pastora, personificação sincrética brasileira, com sua Nossa Senhora da Glória andou de mãos dadas entoando o som dos escravos — canções, partidos-altos e ladainhas. E mais Glória para Clementina, a de Jesus, a dos sambas, a dos cantos para Oxalá, Yao, Abaluaiê, Oxum e Nossa Senhora da Conceição, Xangô e João Batista, e Deus Vos Salve a Casa Santa! Mãe dos lamentos e esperanças de baianas, quituteiras, estivadores, sambistas, partideiros. Mulher guerreira que cosia, no tom da agulha do ritmo da sua música, a união entre os rios dos peixes e das flores e cabos de marfim.

Filha de Zambi, nunca titubeou e encarou o sucesso de frente. A cantadora do mundo negro, parceira de jongueiros, capoeiras e violeiros, brasileira filha do ventre africano, flor preta cortejo de união. Bebeu da água que encobre sangue escravizado e, sobre o Atlântico Negro, salgou-se nas espumas flutuantes do desejo de voltar ao Continente Mãe, apoteose da artista! Na alma, a memória viva do corpo negro: nela, o retrato dos antepassados. Quelé é comunhão, é força ancestral da negritude que rompeu barreiras e encantou o mundo. É orgulho da nossa gente. Quelé é Voz de Navalha, é Mulher, é Negra! E a Mocidade Alegre, súdita, hoje, frente a ela se ajoelha! Em 2021, o Bairro do Limão, Morada do Samba e da Emoção, será palco para uma nova coroação da Rainha da Canção. Eterna Quelé vive! Vamos vadiar ou não?

Samba-Enredo

Gravação do Estúdio



Samba ao vivo



Compositores: Márcio André, Fabiano Sorriso, China da Morada, Marquinhos, Biel, Lucas Donato, Daniel Katar, Bello e Marcelo Valência
Intérprete: Igor Sorriso

Letra do samba

Negra na alma e na cor
Flor de raíz africana
Batuque de jongo, Folia de Reis
Orgulho de ser Valenciana
Saiu da roça, iaiá! Foi pra cidade…
Voou com a Águia altaneira
Cercada de bambas, caiu no samba
De verde e rosa lá em Mangueira
Senhora da Glória, de tantas batalhas
A Rosa dos palcos, a voz de navalha

Na hora da sede você pensa em mim (ê laiá!)
Não vadeia Clementina! Eu vou vadiar!
Foi o tombo do navio… marinheiro só!
No balanço do mar!

Yô, yôo! Yô, yôoo!
O seu cantar é uma prece
No altar do samba resplandece
“Aonde Deus fez a morada”
Emana a luz do nosso Senhor
E o Saravá de todos Orixás
Filha de Zambi!
Identidade, aura ancestral
Da negritude, retrato mestiço
De fato a voz dos escravos
Ginga, capoeira, partideira… Axé!
A Mocidade se ajoelha aos seus pés!

É lindo ver a mulher negra lutar!
Quem te vê sorrir, não há de te ver chorar!
Rainha Quelé, vem ser coroada!
Na minha, na sua, na nossa Morada!


Análise

Renascida após o grande desfile do último Carnaval, a Mocidade Alegre explora a personalidade de Clementina de Jesus num tributo que é, acima de tudo, direto. Com o enredo “Quelémentina, cadê você?”, a Morada do Samba mais do que presta homenagem, na verdade, reverencia, segundo palavras da sinopse, de joelhos a figura de uma mulher que é a cara do Brasil. Preta, favelada e popular, a voz de navalha é cantada em verso e prosa pelo texto que explana de modo competente a temática.

A questão é que os sambas que concorrem para trilha sonora da rubro-verde não conseguiram elaborar narrativas coesas com essa visão e alternaram saídas entre buscar criar associações a passagens consagradas da reverenciada ou elaborar um resumo quase biográfico da trajetória da mesma. O resultado acabou sendo o seguinte: as letras serviram apenas com conectivos desarmônico ao ponto temporal sem funcionamento, real, na missão de contar história proposta pela agremiação. A obra dos autores Márcio André, Fabiano Sorriso, China da Morada, Marquinhos, Biel, Lucas Donato, Daniel Katar, Bello e Marcelo Valência é um samba de momentos inspirados como no refrão principal, mas igualmente capaz em outros tantos flertar nas listas de momentos-chave e lembranças das músicas presentes na carreira da cantora. Portanto, fica prejudicado na descrição da figura e, no que lhe concerne, também é pouco feliz ao remeter aos sucessos, consolidando-se num meio-termo confuso e vacilante.

A construção de letra é praticamente uma apresentação da homenageada. Na cabeça começa com um “negra na alma e na cor, flor de raiz africana” exaltando a figura e sua cor, algo explorado de modo competente no enredo servindo como uma representação da raiz ancestral brasileira. O ponto é que o desabonador efeito lista já surge no verso seguinte com “batuque de jongo, folia de Reis” complementado com “orgulho de ser valenciana”. Observem: Qual é a função de “batuque de jongo, folia de reis” nesse quadrante? O que faz para encaixar e conectar o verso anterior e posterior? (-0,1 adeq.). Na sequência, a transição da roça para a cidade é feita de maneira competente no “Saiu da roça, iaiá! Foi prá cidade…”, mas melodicamente, o “pra cidade” fica vago, pois, o arremate do verso anterior “voou com a Águia altaneira” abre um novo momento melódico, o que, de fato, cria uma ruptura prejudicando o canto (-0,1 div.mel).

A partir daí, o samba é apenas uma lista de citações. Bambas, caiu no samba, de verde e rosa, Mangueira, senhora da Glória, batalhas, rosa dos palcos, voz de navalha. São oito menções que apenas servem como lista e, algumas, com redundância como verde e rosa/Mangueira e Rosa dos Palcos/Voz de Navalha que não agregam em criar imagens diferentes para a figura, explorando muito pouco do potencial do tema. (-0,1 adeq.)

No refrão central, o samba perde um dos poucos positivos que possui. A narrativa. Com “Na hora da sede, você pensa em mim (ê laiá) // Não vadeia Clementina! Eu vou vadiar!”, a composição simplesmente perde o sentido. Quem vinha narrando era alguém que declamava a carreira de Clementina e sem qualquer contextualização ou motivo aparente, isso é modificado bruscamente. Não há nenhuma justificativa para isso. (-0,1 fid.). O refrão é finalizado com “foi o tombo do navio… marinheiro só! No balanço do mar” que não agrega em qualquer ideia ou constrói alguma pertinência para a presença ali.

Na segunda estrofe, a situação piora de vez. Percebam: O samba tinha problemas de narrativa e adequação, mas até então, mantinha algum padrão refinado de letra. Contudo, o trecho é aberto com um inexplicável “Yô, yôo! Yô, yôoo!” que não pertence como conexão ao refrão de meio e nem ao resto da estrofe. Fica ali, vazio e sem qualquer criatividade tanto na poesia, quanto na melodia (-0,1 riq.poé) (-0,1 div.mel). Nos versos seguintes, a canção parte para mais associações que não se conectam “O seu cantar é uma prece // no altar do samba resplandece // “aonde Deus fez a Morada” // emana a luz do nosso senhor e o saravá de todos os orixás”. Se isolarmos o “aonde Deus fez a Morada” ele serve como conectivo para os dois momentos e isso é bom devido à execução da ideia. A questão é que ele é seguido “Filha de Zambi! Identidade, aura ancestral” que volta a exaltar a origem afro da personagem. Ou seja, não há concatenação entre os versos prejudicando, novamente, o entendimento do enredo (-0,1 adeq.). Por fim, a estrofe é finalizada com “da negritude, retrato mestiço, de fato, a voz dos escravos // ginga, capoeira, partideira…axé” que repete o efeito de menções da primeira, lembram? Negritude, mestiça, a voz dos escravos, ginga, capoeira, partideira. Seis expressões distintas em três versos. Todas sem uma única junção que seja. Uma lista (-0,1 riq.poé).

O último verso prepara o refrão principal. Com “A Mocidade se ajoelha aos seus pés”, a obra levanta o tom da melodia para a explosão do refrão principal e, finalmente, explora bem o espírito do tema. Se a ideia é coroar a Quelé na avenida, a Mocidade traz um refrão que traduz bem o espírito. Com bons versos, é o melhor momento da obra com relativa folga. “É lindo ver a mulher negra lutar // quem te vê sorrir, não há de te ver chorar!” sintetiza toda a luta de Clementina em dois versos sendo seguido pelo resumo do que a agremiação que a homenageia busca com esse tema. O “Rainha Quelé, vem ser coroada, na minha, na sua, na nossa Morada” traz uma bela associação entre a ideia e o slogan da escola do Limão. Deixando assim a impressão de que poderia ter sido assim ao longo de toda obra, já que mesmo sem uma criatividade exemplar, ele deixou seu recado com clareza e sem qualquer grave percalço.

Nesse cenário, tenho certeza que a Mocidade Alegre quando escolheu Clementina de Jesus esperava repetir o sucesso do samba-enredo “Do canto das Yabás, Renasce uma Nova Morada” que foi considerado um dos fatores para o desempenho de alto nível da exibição no Anhembi em 2020, mas entrega uma composição problemática com furos incorrigíveis e que, por vezes, traz a sensação de que faltou maior cuidado na feitura da trilha sonora.

Nota: 9,2

Falhas:

⦁    Fidelidade: -0,1

⦁    Riqueza Poética: -0,2

⦁    Divisão Melódica: -0,2

⦁    Adequação: -0,3

Bruno Malta
Twitter: @BrunoMalta_