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Samba Paulistano
 
29 de outubro de 2021, nº 47

OS SAMBAS-ENREDO DE SÃO PAULO 2022 - GRUPO ESPECIAL
por Bruno Malta

O próximo Carnaval previsto para fevereiro de 2022 já tem suas trilhas-sonoras (confira aqui as letras e ouça aqui a playlist). Estilos de enredo diversificados apresentam novos perfis para o gênero. Apesar do domínio de parcerias consagradas, composições buscam fugir do lugar-comum nas letras, mas flertam com a morosidade melódica onde tudo é pensado somente em como o componente vai cantar. Safra tem resultado surpreendente com várias escolas optando por novas fórmulas e consegue resultado superior ao dos últimos anos, mas segue aquém do esperado.

Campeã de 2020, o Águia de Ouro deu mais um exemplo de como o samba-enredo é visto como secundário na cidade (Foto: Anderson Lima/Foto Press)

Para entendermos o resultado da safra de São Paulo é preciso voltar no tempo. Na última década, o Carnaval do Anhembi sofreu com enredos de profundidade paupérrima ou inexistente e com a proliferação de fórmulas prontas para a composição de uma trilha-sonora. Se nos anos 90, muitos refrães possuíam construções da linha “arrasta-povo” com “sacode”, “balança”, “arrebenta”, “delira”, os anos 2000 trouxeram uma nova roupagem com “escola do meu coração”, “voz da emoção”, “é a razão da minha vida” com os sambas seguindo o padrão do desfile sublinhando superficialmente os pontos visuais da escola e um refrão na linha da exaltação que conquiste o coração do componente. Assim sendo, muitas safras se tornaram esquecíveis. Todas as obras pareciam iguais. Ao passo que no Rio de Janeiro, espelho e referência desde sempre para os sambistas paulistanos, existiu uma intensa troca de perfis.

Se por lá, a linha adotada em São Paulo vinha desde o fim dos anos 90 e teve seu auge na década de 2000, a partir dos anos 2010, a geração de compositores formada por André Diniz, Cláudio Russo, Lequinho, Luiz Carlos Máximo e outros, buscou entregar o algo a mais que o gênero pede. Antes de tudo é preciso ressaltar que o samba de enredo é épico, precisa ter um ponto além que cative e que, acima de tudo, prolifere a mensagem para o posterior. A obviedade não é parte disso e nem nunca foi sinônimo desse tipo de música. Com essa mudança, trilhas históricas voltaram a surgir após uma década de poucas obras memoráveis. Nesse cenário, é possível destacar composições como “O Brasil de Todos Os Deuses” (Imperatriz 2010), “Bahia: E o povo na rua cantando é feito uma reza, um ritual…” (Portela 2012), “Você semba lá… Que eu sambo cá — O canto livre de Angola” (Vila Isabel 2012), “É o amor… Que mexe com a minha cabeça e me deixa assim… Do sonho de um caipira nascem os filhos do Brasil” (Imperatriz 2016), “Monstro é aquele que não sabe amar: Os filhos abandonados da pátria que os pariu” (Beija-Flor 2018) e o antológico “História para ninar gente grande” (Mangueira 2019).

Mas e São Paulo? Onde fica nisso tudo? Muitos vão argumentar que a cidade teve bons sambas e, de fato, teve. “A Música Venceu” (Vai-Vai 2011), “Ojuobá — No Céu, os Olhos do Rei… Na Terra, a Morada dos Milagres… No Coração, Um Obá Muito Amado!” (Mocidade Alegre 2012), “Minha missão. O canto do povo. João Nogueira” (Águia de Ouro 2013), “Simplesmente Elis. A Fábula de uma Voz na Transversal do Tempo” (Vai-Vai 2015)… temos exemplos de grandes obras que deixam pontos positivos para o gênero. Mas vamos pensar: Qual foi a maior comunicação popular entre um samba e a arquibancada nos últimos 10 anos no Anhembi? Muitos vão mencionar Vai-Vai 2015 e outros tantos vão citar Gaviões da Fiel 2019 (reedição de “A Saliva do Santo e o Veneno da Serpente”, original de 1994). Não irá fugir desses dois. E se formos analisar os dois de forma aprofundada, vamos entender o que pode explicar o que acontece por aqui. Vai-Vai 2015 é um belo samba desde as eliminatórias, com grandes sacadas na construção de sua letra, mas que criou sua “síncope” e seu ganhou seu tom de “épico” na introdução de uma música de Milton Nascimento no CD oficial. Da introdução da consagrada “Maria Maria” emendando no “lareilarei”, a obra saiu de um bom samba como tantos outros para o “épico”. Ganhou seu “charme”, sua saída para história. 

E o Gaviões? O Gaviões em todos os últimos anos viu seus sambas morrerem no setor B. Exceto um. O samba de 2019 que era uma reedição. Mais do que um samba qualquer, a obra é, de fato, um hino de arquibancada, sendo cantado nos estádios pelo Brasil todo. Composto por Grego e Magal para o Carnaval de 1994, a construção é totalmente diferente do que estamos acostumadas. Recheada de refrães que se emendam um no outro, a trilha é pesada, forte, densa e recheada de “síncopes”, de “tons épicos”. Da cabeça ao fim, você não consegue definir qual é o trecho que o tira mais da cadeira. Você sente. E música é isso. É sensação, antes de tudo. Por tudo isso exposto, já seria possível explicar os motivos que levam a CDs fraquíssimos ano após ano. Enredos ruins, fórmulas prontas e falta de ideias que façam o samba ganhar momentos de epopeia. Mas some a tudo isso que já mencionei, o fato de que o critério de julgamento é ruim. E, sem dúvida, ele é.

Observem: São quatro sub-quesitos; Fidelidade, adequação, riqueza poética e divisão melódica. Com uma variação de notas entre 9,0 e 10,0 e com três itens que falam somente de questões relacionadas a letra, mas somente um que explora a riqueza poética da mesma, as obras ficam com possibilidade real, perante o perfil do julgamento adotado pela Liga, de perderem, no máximo, 0,5, sendo três décimos de melodia e dois décimos de riqueza poética. Adequação e fidelidade são itens que poderiam causar perda de pontos se fossem seguidas à risca, já que há vários exemplos de versos que se tornam desconexos com os enredos e os projetos de desfile de cada escola como observamos nos últimos anos, mas quantos deles são, de fato, punidos? Nenhum. O máximo é sempre riqueza poética e divisão melódica e quase sempre com justificativas como “muita letra pra pouca melodia” que não agregam em nada para apontar alguma falha efetiva. Pronto. Está concluída a somatória que reflete o produto de baixíssima qualidade que ouvimos nos desfiles do Anhembi.

Critérios de julgamento — 2020

Fidelidade 
-  Um trecho do samba (0,1) 
- Dois ou mais trechos do samba (0,2)

Adequação
 - Um trecho do samba (0,1)
- Dois trechos do samba (0,2)
- Três ou mais trechos do samba (0,3)

Riqueza Poética
-  Um trecho do samba (0,1)
- Dois ou mais trechos do samba (0,2)

Divisão Melódica 
-  Um trecho do samba (0,1)
- Dois trechos do samba (0,2)
- Três ou mais trechos do samba (0,3)

Observação: Visando engrandecer sua apresentação, a Escola de Samba poderá adotar erros propositais de português, ainda que graves, como liberdade de linguagem ou licença poética. Essas eventualidades deverão estar diretamente relacionadas com o enredo proposto pela Escola de Samba. É importante frisar o que está em julgamento é a canção, não o seu cantor. As características dos intérpretes da Escola de Samba não deverão ser levadas em consideração, restringindo-se o jurado à análise nos pontos descritos acima.

O julgador não deverá levar em consideração para atribuir as notas:
a) Cacofonia
b) Quadrante dentro da estrofe, a rima não deverá obedecer a uma ordem. Exemplo: termino da frase 1 com termino da frase 3 e termino da frase dois com termino da frase quatro.
c) A inclusão de qualquer tipo de merchandising (explícito) em sambas de enredo
d) A eventual pane no carro de som e/ou sistema de sonorização da passarela.
e) A veracidade dos fatos narrados na letra. O jurado deverá respeitar o universo criado pelo Enredo desenvolvido pela a Escola de Samba, pois ela é quem define o que é verdade e o que é mentira dentro do tema proposto.
f) Gostos ou opiniões pessoais quanto à tonalidade ou forma de execução da música. Deverá respeitar as características melódicas de cada obra, avaliando dentro da proposta trazida para o desfile.
g) Qualquer gravação anterior que tenha ouvido do samba de enredo apresentado. O julgamento deve ser feito exclusivamente com base naquilo que é apresentado no dia do desfile e executado pelos componentes da Escola de Samba.
h) Questões inerentes a quaisquer outros quesitos, restringindo-se aos pontos apresentados neste Manual.

Observação: A gravação do CD é apenas uma gravação publicitária, o Samba de Enredo poderá sofrer alterações na letra ou na melodia até a data da entrega da pasta dos jurados na LIGA.

Fidelidade: A letra do samba de enredo tem que estar dentro da proposta de enredo da Escola de Samba. Em hipótese alguma a letra pode contradizer o Enredo. A letra do samba não tem obrigação de citar cada uma das alas e carros alegóricos, nem de seguir a ordem proposta pela montagem de desfile.

Riqueza Poética: A adaptação da letra do samba de enredo à melodia com perfeito entrosamento do fraseado melódico e seus versos, levando em conta as variações tonais, modais e melódicas.

Divisão Melódica: A letra do samba de enredo deverá estar dentro da métrica melódica proposta pelo samba, mantendo as características de um samba de enredo (Acentuações melódicas e figuras rítmicas binárias e quaternárias).

Adequação: Observar se os principais pontos do enredo fazem parte da letra do samba.

Recomendações importantes ao preencher a cédula de julgamento: Seja claro no apontamento das falhas, indicando: Descrição clara da ocorrência e ponto de avaliação ferido. Trechos do samba em que identificou o problema ou, caso seja uma ocorrência de adequação, pontos importantes da sinopse que não foram abordados.

Nesse cenário, as obras se tornaram previsíveis e um tanto quadradas. Há desenhos melódicas que se repetem ano após ano. Escutem atentamente o trecho “guardiões da terra prometida” no samba da Império de Casa Verde de 2020. Parem e pensem: Quantas vezes aquela célula melódica já foi usada em São Paulo? Incontáveis. E o “meu coração é comunidade” do samba do Águia de Ouro do mesmo CD? Quantas vezes já vimos versos com esse perfil? Inúmeras. Incontáveis. Há uma eterna sensação de que todas as composições são iguais e é, de certo modo, uma verdade. Parcerias consagradas em São Paulo disputam em praticamente todas as escolas e criam fórmulas que são reutilizadas nos mais variados enredos dos perfis mais distintos. Vemos saídas usadas em temas afros em homenagens, de homenagens em CEP, de CEP em afro. É como se um restaurante tivesse um cardápio curto para muitas pessoas. Em algum momento, o mesmo prato vai acabar saindo para duas pessoas de gostos e estilos diferentes. Uma delas, ficará satisfeito. A outra, nem tanto. É o que acontece no samba-enredo na Terra da Garoa.

Com isso, a eterna sensação de que “temos a pior safra de samba-enredo da história” é recorrente ano após ano. Em 2020, particularmente, penso que chegamos ao fundo do poço. Quantos sambas serão lembrados desse Carnaval? 1? 2? Não passará de três. Um conjunto de catorze obras que não conseguiu entregar nem cinco que flertam com o mínimo de qualidade para o gênero é o máximo de ruindade estabelecido nessas bandas. É algo que se tornou esquecível ou inesquecível de tão ruim, ficando ao gosto do freguês, a melhor definição. 2022 renovou a esperança. Uma belíssima leva de enredos surgiu e a chegada de compositores consagrados no Rio de Janeiro trouxe uma faísca de renovação dos vencedores. O que vimos é que, novamente, o desfecho flerta com a obviedade. Os nomes e os conceitos, de certo modo, mudaram. A tentativa de sair do lugar-comum criou resultados que fogem do tradicional das agremiações, principalmente em escolas tradicionais como Mocidade Alegre, Gaviões da Fiel e Rosas de Ouro. Dessa maneira, surgiram parcerias jovens vindas do Rio, mistura de compositores das duas cidades e até adaptações de sambas de meio de ano. Nada disso impediu que terminássemos as escolhas com a sensação: Poderia ser melhor. E é disso que trataremos nos próximos textos falando escola por escola, das temáticas e de como os sambas exploraram cada uma delas.

 Bruno Malta
Twitter: @BrunoMalta_