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Nos Tempos Idos (União de Maricá - 2020)
Nos Tempos Idos (União de Maricá - 2020)

Sinopse


“O grande milagre do Rio de Janeiro – que serve para se pensar outras grandes cidades do Brasil – foi o fato de, aqueles que vieram de além-mar, escravizados, se não ficaram nas covas rasas, foram para o tronco, para que no lombo deles cantassem as chibatas. Porém, a grande aventura urbana dos mesmos, foi transformar a chibata que bateu no lombo em baqueta que bateu no couro, para chamar os deuses através do tambor.” (Luiz Antonio Simas)

– Em um passado não muito distante,

tempos idos, de fatos marcantes,

se encontra a história que passaremos a diante…

A DIÁSPORA BAIANA

Rio de Janeiro – últimas décadas do século XIX, cidade dividida entre o luxo real da monarquia e das elites oligarcas e o lixo surreal dos cortiços, dos vestígios escravocratas e dos desvalidos. Rio, da “fresta” entre as zonas portuária e do mangue, onde, tempos depois, Heitor dos Prazeres batizaria de Pequena África. Região que “proclamou” Dom Obá II, legítimo herdeiro do trono de Oyó, como o Príncipe do povo ou o Rei da ralé.

Cidade que, em cujo porto, desembarcavam negros, sob a bandeira branca de Oxalá, oriundos principalmente da Bahia, em busca de trabalho na capital, trazendo na bagagem a experiência religiosa do Candomblé, o aprendizado em oficios urbanos e a capacidade de se organizar em grupos; fixando residência, principalmente, nos bairros da Saúde, Santo Cristo, Gamboa e nos arredores da Praça Onze de junho, no fenômeno que ficou conhecido como a diáspora baiana.

Nesse mesmo contexto histórico, aportaram no Rio aquelas que passariam a ser conhecidas como as “tias baianas”. Mulheres de fibra que propagaram a cultura trazida da Bahia; filhas de Yabás, festeiras, quituteiras e sacerdotistas de ritos e cultos afrodescendentes. Dentre elas destacam-se Tia Amélia (mãe de Donga), Tia Prisciliana (mãe de João de Baiana), Tia Celeste (Mãe de Heitor dos Prazeres), Tia Veridiana (mãe de Chico da Baiana), Tia Mônica (mãe de Pendengo e Carmen do Xibuca), Tia Bebiana (onde, mais à frente, os cordões e ranchos carnavalescos tinham a obrigatoriedade de passar sob a janela de sua casa) e aquela que se tornaria a mais lembrada e  respeitada de todas, Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata D’Oxum.

Foi no terreiro de João Alabá, provavelmente a primeira casa de candomblé na cidade do Rio de Janeiro, que essas Yalorixás formaram um dos principais núcleos de organização e influência sobre a comunidade, conquistando respeito por suas posições centrais no terreiro e por suas participações nas principais atividades do grupo, que garantiram a permanência das tradições africanas e a possibilidade de sua revitalização.

“A pedra do sal é negra / Tem história pra contar / O samba passou por lá /… Batuque de santo que veio da Bahia /… Ao som dos três atabaques, no Ilê de João Alabá, dançava Tia Ciata, de Exu a Oxalá” (Macedo “Griot” de Moraes)

A PEQUENA ÁFRICA NO RIO DE JANEIRO

A liberdade conquistada em 1888 não significaria a inserção imediata dos libertos na sociedade. Os africanos e seus descendentes precisariam construir seu próprio espaço. A concentração da população negra nas intermediações do porto, trazendo seus trabalhadores, vendedores de rua, quituteiras, músicos, capoeiras e terreiros de Candomblé, alterariam a vida da cidade, tornando-a um pólo de produção e inovação cultural.

Um importante fator de união, expressão e construção do espaço social da Pequena África foi a religião. É no culto aos orixás, das sessões religiosas das casas de santo, que baseavam-se principalmente no canto e na dança, que surgiram o samba e os ranchos, que mais tarde dariam origem as Escolas de samba do Rio de janeiro.

Sobre os ranchos, é necessário ressaltar que os mesmos eram constituídos através da tradição religiosa da folia de reis, com os ranchos de reis se apresentando em meio as festas natalinas, entre 25 de dezembro e 6 de janeiro. Hilário Jovino Ferreira, ao chegar no Rio, fundou um rancho que passou a se apresentar no carnaval, o Rancho Rei de Ouros, já com uma formação e organização que, futuramente, as Escolas de samba tomariam como exemplo. O Lalu de Ouro – alcunha de “Bom” Hilário – ficou marcado na história como o primeiro mestre-sala, pois sua posição nos ranchos que fundava e participava era de defender o estandarte.

Tia Ciata foi uma forte incentivadora dos movimentos culturais de identidade negra, porém também agregando judeus, ciganos e demais imigrantes que pela região se fixavam, tornando a sua casa, na Praça Onze, a capital da pequena áfrica, onde as minorias se tornavam maioria.

Desafiando as proibições que pairavam sobre o candomblé, a capoeira e o samba, considerados culturas marginais – enquadrados como crime, na Lei da vadiagem -, as festas na casa de Tia Ciata eram as mais famosas da região. Muitos dos futuros expoentes do samba, como Pixinguinha, Donga e João da Baiana, a “santíssima trindade dos samba”, além de  Heitor dos Prazeres, Sinhô (o Rei do Samba) e Hilário Jovino, entre outros bambas, cresceram em meio a essas festas.

Destes encontros nasceu o samba, pois foi a partir de uma composição coletiva, nas rodas da casa de Ciata, que surgiu a canção “Pelo Telephone”, primeira gravação, que fez sucesso, registrado como samba por Ernesto dos Santos, o Donga, que recolheu os estribilhos, adaptou e inseriu letra de Mauro de Almeida – que posteriormente apareceria como parceiro na composição. Tal fato se tornou um dos mais emblemáticos da história da música popular brasileira.

“PRAÇAS NEGRAS”. POR DENTRO E ALÉM DAS FRONTEIRAS DA PEQUENA ÁFRICA

Passo a passo, a partir do “descompasso” do então Prefeito Pereira Passos que, no alvorecer do século XX, promoveu uma grande reforme urbana, “botando abaixo” os cortiços, zungus e demais habitações onde os desvalidos haviam se instalado, se “construiu” um forte senso de comunidade que trocaria entre si experiências e saberes próprios, que resultaria em formas de sobrevivência para as mesmas, assim como para suas artes e culturas.

Os indivíduos que habitavam a região, que “ganharia” a higienização urbana, foram retirados a força, tendo os mesmos que ocupar os morros próximos, os espaços “deixados” entre a zonas portuária e do mangue ou se deslocar para os subúrbios, se alocando próximo as estações de trem que se espalhavam pela cidade.

Esse fenômeno migratório expandiu as fronteiras da Pequena África, fazendo com que outros centros de resistência negras surgissem. Uma região de grande importância, nesse contexto, foi  o complexo da Penha, que tinha na Festa de N. Sª da Penha uma espécie de consagração dos costumes afrodescendentes. Naquele local, por exemplo, se lançavam, como em um ritual, as composições que viriam a ser apresentadas, posteriormente, no carnaval.

Nos subúrbios temos exemplos como o Morro da Serrinha, que se tornou referência na tradição do jongo; Oswaldo Cruz e Madureira, a partir de, principalmente, Paulo da Portela que, oriundo da Pequena África, foi responsável por agregar valores aos moradores da sua nova região, até então rural. E, mais próximo, ainda na área central, o morro da Mangueira, onde também se fez presente diversas tradições ancestrais como o jongo, os ranchos e as religiosidades.

Uma segunda geração de sambistas do Rio, baseada no bairro do Estácio de Sá, composta por Ismael Silva, Bide, Baiaco, Brancura, entre outros “valentes” da turma do Estácio, revolucionaram a música popular urbana carioca, dando nova roupagem ao samba, um verdadeiro “Bumbum Paticumbum Prugurundum” que contagiou a todos, fazendo “escola”, para que, também, em outras regiões, se formassem agremiações, que ano após ano, se reuniriam naquele reduto para exaltar as suas tradições.

A capital da Pequena África permaneceria na Praça Onze até o ano de 1941, época da construção da avenida Presidente Vargas, um dos principais fatores físicos para o desmembramento e destruição da região, onde as muralhas que não foram totalmente erguidas no passado, foram concluídas com as novas obras de remodelação da cidade, que não se pode negar, tinham, também, um caráter segregacionista.

Desapareceram com a Praça Onze. “Minimizaram” a Pequena África. Mas deixaram a recordação de tempos idos, nunca esquecidos, que vivem eternamente em nossos corações. Hoje, em outras “praças” cantamos e louvamos o seu passado, sua essência, suas tradições e ancestralidades.

Sempre houve, há e haverá, infelizmente, a tentativa de se apagar o que é do povo, para o povo. Resta a nós, militantes das artes e culturas populares, reinventarmos saberes através das experiências deixadas, afim de conquistarmos os devidos valores e lugares, de fato e de direito, merecidos.

“O samba é pai do prazer / O samba é filho da dor / O grande poder transformador”… “Negro forte, destemido / Foi duramente perseguido / Na esquina, no botequim, no terreiro… Agoniza mas não morre” (Caetano Veloso – Desde que o samba é samba / Nelson Sargento – Agoniza mas não morre)

Renato Figueiredo

Bibliografia

LOPES, NEI & SIMAS, LUIZ ANTONIO – DICIONÁRIO DA HISTÓRIA SOCIAL DO SAMBA – ED. CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA – 2015
MOURA, ROBERTO – TIA CIATA E A PEQUENA ÁFRICA DO RIO DE JANEIRO – SEC. MUN. CULTURA / DEP. GERAL DE DOC. E INF. CULTURAL / DIVISÃO DE EDITORAÇÃO – 1995
ALMIRANTE – NO TEMPO DE NOEL ROSA, O NASCIMENTO DO SAMBA E A ERA DE OURO DA MÚSICA – ED. RIO DE JANEIRO – 1963/1977/2013
JOTA, EFEJÊ – FIGURAS E COISAS DO CARNAVAL CARIOCA – ED. FUNARTE – 1982
DINIZ, ANDRÉ & CUNHA, DIOGO – NELSON SARGENTO: O SAMBA DA MAIS ALTA PATENTE – ED.  OFICINA DO PARQUE – 2012
VARGENS, JOÃO BAPTISTA M. –  MONARCO, A DIGNIDADE DO SAMBA – ED. ALMÁDENA – 2013
FERREIRA, FELIPE – O LIVRO DE OURO DO CARNAVAL BRASILEIRO – ED. EDIOURO – 2004
COSTA, HAROLDO – 100 ANOS DE CARNAVAL NO RIO DE JANEIRO – ED. IRMÃOS VITALE – 2001
LOPES, NEI – PARTIDO ALTO, SAMBA DE BAMBA – ED. PALLAS – 2005
SILVA, WALLACE LOPES – PRAÇAS NEGRAS: TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS NAS MARGENS DA “PEQUENA ÁFRICA” DE TIA CIATA (1890 – 1930) – DISSERTAÇÃO (MESTRADO) – CEFET/RJ – 2014