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O Sonho de um Pagode Russo nos Frevos do meu Pernambuco
(Inocentes de Belford Roxo - 2026)
O
causo que trago a vocês agora – e o faço porque o
carnaval é onde essas coisas da cachola ganham vida e cor
– me foi contado por um sujeito que não sei ao certo quem
era, que ouviu de alguém, que soube que um outro viu, e assim
por diante espalhou a história por todo canto. Lenda ou
não, sonho de doido ou verdade “dos cabras”,
essa contação bem peculiar ganhou fama e ressoou no
escutador de um tanto de gente; virou discórdia de sujeito
letrado e até embalou o acordeom.
E tudo começou no tal do sobe e desce e o vai-e-vem dos passistas que “frevem”, alembrando e muito um remelexo que vem de longe, marcado assim e assado, onde a coisa fica russa: dança de cossaco pro lado de lá, trem-de-ferro ou locomotiva nas bandas daqui. Mas afinal, que diabo era isso que ficava quente, pegava o trilho do repente e descarrilhava na folia sem remetente ou assinatura? Se era semelhança ou mera coincidência, se era herança ou apenas saliência, ia de cada um a sabedoria. Eu, que não sou metido a besta, e que faço do povo o meu professor, não me apego em teoria, apenas repasso o que me foi passado, sem compromisso ou contrato, nem com doutor e nem com academia. O que me disseram foi que lá no meu velho Pernambuco, nos 1800 e lá vai sombrinha – quando lá nos cafundós do Judas, tudo que era brasileiro dava tema bom de curiar –, desembarcou aqui uma estranha fragata, navegante cara-de-lata, a mando de Seu Czar; seus tripulantes teriam vindo cá pra assuntar a vida alheia dessas cercanias, a piriquitamboia, a arara-azul e a onça caetana, fazer retrato, relato e voltar pra contar. E como aqui tudo era rebuliço, preparou-se uma recepção acalorada, coisa de gente importante, pra causar boa impressão: tinha banda de milico, missa na praça e passeio de dama; e o povão que não queria ficar fora da festança, também chegou com as charangas, provocando anunciação. O deslumbramento foi imediato, e pra dar correspondência ao aparato, os polacos não arredaram o pé: era um canta e dança de um lado, um canta e dança do outro, e do sopé ao topo, o cima-embaixo dos cocos logo se destacou: quem era de ver, viu; quem era de guardar, guardou; e o que parecia complicado, desembaraçado ficou. Sem avexo, mas apressados, os alourados partiram pra outros destinos, e os que não se perderam em febre de amor levaram de volta pra casa um bocado de histórias, junta de prosa que ninguém sabe ao certo se de fato se passou. Aqui, essa mistura tropicana ficou: enraizada no imaginário, reverberada na torre das fantasias a partir das notícias que chegavam da terra dos visitantes, e só madurou quando o dezenove virou. Daí a arruaça da capoeira casou com o maxixe, e os trompetes anunciaram estandartes e fitas coloridas, fazendo o que era revolta virar frevança. O que foi trocado deu em passos, compassos e arrebentações, despontando como marca nossa, florescendo colorida, no dois e dois, no meio das multidões. “Seria a Rússia no Arrecife, misturada em alambique, cagibrina chique, paraluxo popular?” – égua de história da pega, difícil de assimilar. Pelas barbas ruivas do Cariri nas ladeiras e o cacarejo do galo do Arrecife com duas cabeças, a nossa certeza é que é bom pra danar. Mas se bonito lhe parece, tem quem diga que foi polca trançada, molejo da ciganada, e até coisa fina de ballet na Boa Viagem, à Beira-Mar. Pra resolver essa peleja, a gente que só festeja - e que de Inocentes só tem o nome e mais nada -, evoca Silva e Gonzaga, o poeta e o Rei: menestréis dessa terra iluminada, que falam das coisas nossas com a propriedade que só eles têm. E responde em Sol menor, com a canção maior, sem frescura e sem pantim: quem não acreditar que espie, verdade boa é aquela que a massa conta, e canta, porque é assim que a gente sonha, em Pernambuco ou na Sapucaí. Ontem sonhei que estava em Moscou Dançando pagode russo na Boate Cossacou Parecia até um frevo naquele vai ou não vai Parecia até um frevo naquele cai e não cai Vem cá dançar, dançar tu dança agora... E vocês, vem com a Baixada, nesse causo de frevada, ou vão ficar de fora? FONTES BIBLIOGRÁFICAS BARBOSA, Wellington. O Recife no século XIX: Outras Histórias (1830-1890). Editorial Paco e Littera. São Paulo, 2022. CASCUDO, Luís da Câmara. Antologia do Folclore Brasileiro. São Paulo: Global. Editora, 2001. IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Dossiê 14 - Frevo. 2017. KOMISSAROV, Boris. Expedição Langsdorff: acervo e fontes históricas; tradução de Marcos Pinto Braga. - São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista; Brasília, DF: Edições Langsdorff, 1994. SCHUR, L. A. Relações Literárias e Culturais entre Rússia e Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1986. Tradução de Victória Nasmestnikov. SOUZA, G. C. Retratos do Povo na Voz de Luiz Gonzaga. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. DEFESA DO ENREDO Esse enredo se constrói e – por que não? – se desconstrói a partir da ideia de que, para além da verdade científica dos fatos, a história social brasileira, bem como sua cultura, se constrói a partir das interpretações populares e de como nosso povo absorve, condensa e reverbera tudo aquilo que consome em forma falada, dançada e cantada. O imaginário coletivo sobre as terras de Pernambuco nos levam a alguns lugares comuns, com suas peculiaridades e importâncias: o sertão de Canudos e dos cangaceiros de Lampião, as feiras de artesanato de Caruaru, os festejos juninos, as ladeiras de Olinda com seus bonecos e ao litorâneo Recife, com seu toque holandês, o maracatu e o frevo. Estes lugares de identidade foram criados no inconsciente popular nacional sobre diversos prismas: guerras, obras literárias, pinturas, músicas, novelas e cinema. Contudo, ao olharmos para a cidade de Recife e sua multiculturalidade, há, de cara, uma interpelação que nos é feita de imediato pelo próprio modo com que a cidade respira: diversa, cosmopolita, curiosa e, para grande parcela dos não-pernambucanos, absolutamente desconhecida em seus lugares históricos e menos propagados. Duas curiosidades nos levam ao fio condutor desse enredo: o primeiro, e obviamente o mais importante, é a famosa e ainda popularíssima canção Pagode Russo,de João Silva e Luiz Gonzaga – este último, a maior referência cultural pernambucana em todo o país. A canção fala de um sonho em que o narrador estaria dançando um pagode (como era chamada qualquer festa ou festejo na cidade até meados do século passado) russo, numa boate “cossaca”, e espelha os passos da típica dança do leste europeu com os passos do frevo. A música, como se sabe, foi inspirada numa observação feita por Silva e Gonzaga, que avistaram numa praia de Recife dois estrangeiros, possivelmente russos ou ucranianos, interagindo a música que tocava no lugar aos passos de sua dança nativa. Acontece que, de fato, ao pensarmos no tradicional bailado dos russos e no passo do “trem-de-ferro” do frevo, encontramos não apenas uma semelhança, mas praticamente a mesma estrutura. E, a partir daí, ao encontrarmos diversas teorias e narrativas populares sobre a origem dessa semelhança, a intencionalidade da canção deixa o campo do episódio isolado e passa a fazer parte de um universo de peculiaridades ocorridas em Pernambuco desde meados do século XIX que, possivelmente, desaguam na letra dos artistas. Não há quase nenhuma marca cultural russa na cultura pernambucana no geral, contudo, os relatos históricos – e aí entra a segunda curiosidade – apontam para algo, no mínimo inusitado: uma febre russa no Brasil, desencadeada a partir da expedição do cientista naturalista Barão Langsdorff na primeira metade do século, e as intensas notícias circuladas sobre a Guerra da Crimeia nas décadas seguintes. Entendida como um país misterioso, a Rússia gerava fascínio por sua questão cultural, a aristocracia e hierarquia, a arquitetura e a mística em torno do Czar, a ponto dos poucos desembarques russos (a maioria diplomáticos e/ou militares) serem associados com confabulações e teorias da conspiração. A estética dos russos também se tornaria distinção: sujeito alourado, de olhos claros e alto, costuma ser chamado de russo ou galego. A lendária expedição científica russa já citada, por exemplo, era frequentemente associada aos navios, ainda que, até mesmo Rugendas, o famoso pintor da expedição de Langsdorff, que foi autor do quadro Missa na Igreja de Nossa Senhora da Candelária em Pernambuco, só tenha passado pela região quando a incursão havia acabado, exatamente em seu caminho de volta para a Europa. E o estímulo imaginário ganha contornos ainda maiores quando nos deparamos com a histórica Torre Malakoff, um forte da Marinha instalado em Recife na década de 1850, que foi batizada assim pelos populares em referência ao homônimo constructo militar russo que era símbolo do poder bélico dos estrangeiros durante os conflitos da Criméia na época. Ao pesquisarmos livros, revistas e jornais, encontramos vasta referência a uma possível origem dos passos citados do frevo, associados a expedição de Langsdorff, com a narrativa de um encontro mítico regado a dança. Essa imagética popular e sabidamente fictícia, nos leva diretamente ao campo do florescimento cultural que é comum a cultura brasileira: o de transformar o que lhe era dado como notório em seu, o de particularizar o externo e traduzir sob sua forma. Esse caso ilustra, no sentido mais literal e literário, o manifesto do ritual antropofágico que acompanhou a formação da identidade nacional tão plural de nosso país, e que ganhou contornos como esse que conhecemos agora. Como tratar das lendas do povo e do imaginário coletivo de forma fria e realista se, ambos, pertencem ao campo do inconsciente, da transfiguração e do sentimento? Neste enredo, optamos por dar voz ao universo fantasioso que propõe a Rússia em Pernambuco, buscando nas barbas ruivas da Troça do Cariri Olindense e nos badulaques enfeitados do Galo da Madrugada os traços e semelhanças, contradizendo o que é fato sobre a influência das polcas, das danças ciganas e dos grupos de ballet russo que circularam a cidade nos anos 1950, e abraçando a ideia de que os passos do frevo, no sonho traduzido por Gonzaga e Silva em sua música, são a ilusão que se apresenta nas linhas do horizonte de nossa gente. Trata-se de um enredo que vai falar sobre o Frevo como alvo, ainda hoje, da controversa sadia das verdades populares, como ente cujo registro paternal de cada passo e compasso é alvo de disputa intelectual e prática, o retrato de um Pernambuco multicultural e diverso em seus discursos. Da abertura, com o Trem-de-Ferro Cossaco e os negros e pardos alourados meio passistas e meio russos, passando pela ideia do que seria uma festividade entre a elite e o povo no século XIX, retrataremos o Recife ferveu na virada para os 1900, e do frevo como seu fruto maduro, oriundo das cruzadas urbanas entre bandas militares e manifestações das classes menos favorecidas, negras e também imigrantes. Esse enredo trata do nosso Recife desconhecido, tão íntimo dos pernambucanos, tão misturado pelas aquarelas e compassos do mundo, que deve ser visto pelo Brasil. |
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