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Cid Carvalho: Guerreiro que é Guerreiro não foge à luta (Guerreiros de Jacarepaguá - 2019)
Cid Carvalho: Guerreiro que é Guerreiro não foge à luta (Guerreiros de Jacarepaguá - 2019)

Ainda me recordo bem das águas do São Francisco empurrando a balsa. Para trás ficava Alagoas e a seca cruel que ainda hoje segue transformando famílias inteiras em retirantes em busca da cidade grande e de dignidade.

Cheguei ao Rio bem pequeno, com poucas lembranças da terra natal. Mas o nordeste, seu povo e sua cultura estão em meu sangue. E com muito orgulho.

Creio que essa tenha sido a minha primeira luta: combater os que nos chamam de cafonas. E já na adolescência, montei com minha família uma quadrilha de São João aqui no Rio, para mostrar a nossa força cultural.

Porém nunca me tranquei aos encantos da Cidade Maravilhosa. Pelo contrário, a gratidão à cidade que nos acolheu me fez dela um admirador e defensor, um fã de tudo que por aqui acontecia.

Naturalmente meus olhos brilharam com os desfiles das Escolas de samba! E como brilharam!

E esse encanto me fez largar a administração de empresas para ir trabalhar com Joãozinho Trinta, na Beija-Flor de Nilópolis. O ano era 1989.

Lá se vão quase trinta anos!

Nunca me esquecerei do dia que entrei pela primeira vez no barracão da Escola. Quase fiquei paralisado. Emoção que só perdeu para a sensação que senti quando vi Joãozinho, ao vivo, na minha frente.

Ali estava um nordestino como eu. Um nordestino que também havia sofrido o pão que o diabo amassou até chegar onde havia chegado. Aquele pequeno grande homem foi dispensado do corpo de bailarinos do Teatro Municipal por ser, pasmem, baixinho. Azar do Teatro e sorte nossa, amantes do carnaval. Ganhamos o maior de todos, o gênio que encantou gerações com seu talento.

A maior de todas as lições que aprendi com o “baixinho” foi que, sempre que possível, os enredos devem levar conhecimento e cultura ao povo. Afinal, estamos falando de “Escolas” de samba, né?

Além disso, ali era a oportunidade de defendermos as minorias, os excluídos, os abandonados, os perseguidos,enfim, a gente sofrida dessa nação. Além de denunciarmos os desmandos dos governantes.

Com a saída do mestre da Beija-Flor, fui trabalhar com outra professora. Entre 1993 e 1996, aprendi a outra face de se fazer carnaval. Enquanto Joãozinho era artista no sentido da palavra, Rosa era, e ainda é, extremamente técnica. Nesse período, plantas baixas e projetos em escala, entraram na minha vida.

Sempre afirmo, com uma dose de orgulho, confesso, que sou filho de uma noite de amor entre Joãozinho e Rosa Magalhães. Literalmente, caso seja preciso, me viro nos trinta, improviso, reciclo. Mas, amo um barroco, um rococó, o luxo.

Em 1987 para o carnaval de 1989, já de volta à Beija-Flor, seu Anízio, através de uma sugestão do Laíla, me convidou para compor a Comissão de carnavalescos da Beija-Flor. Recordo-me do susto que levei. Jamais imaginei, nem nos meus maiores sonhos e desejos, me tornar carnavalesco. E ainda mais da Beija-Flor do meu mestre Joãzinho Trinta! Diante de Anízio e Laíla, tentei disfarçar a tremedeira e esconder as mãos suadas e frias. Mas topei. Ora bolas, sou nordestino e ariano. A gente balança, mas não cai.

Entre o carnaval de 1989 e 2006, defendemos a cultura amazônica, os negros, os oprimidos. E, denunciamos os desmandos de governantes. Nesse período, ganhamos quatro títulos e quatro vices. E com direito ao tricampeonato nos anos de 2003, 2004 e 2005!

Para o carnaval de 2007, depois de uma conversa de pai para filho com o Anízio, resolvi seguir carreira solo. O coração pedia pra ficar, mas a razão me orientava à conhecer o mundo lá fora. Me senti como um filho que tem a necessidade de sais da casa dos pais, mesmo que seja pra quebrar a cara e pedir pra voltar. Foi doído pros dois lados, mas foi necessário.

E assim aconteceu.

Em 2007, deu-se a metamorfose. Fui pra Vila Isabel.

Em 2008, na Mocidade Independente de Padre Miguel, influenciado pela história de Dom Sebastião, rei português desaparecido numa batalha nas areias do Marrocos, retratei o sebastianismo no Brasil.

Em 2009, na Estácio de Sá, contei a história da nossa chita ou chitão, tecido popular, principalmente nas manifestações culturais nordestinas e que, através de pesquisas, descobri que tem sua origem na Índia.

Em 2010, novamente na Mocidade, busquei os diversos paraísos. Do famoso e bíblico Jardim do Édem, ao paraíso da loucura que é o nosso carnaval. Ainda na Mocidade em 2011, mostrei a origem agrária dos festejos momescos, através do enredo A Parábola dos Divinos Semeadores.

Em 2012 e 2013, tive a honra de assinar os carnavais da Estação Primeira de Mangueira. E o carnavalesco que já passou por isso, sabe do que estou falando. Mangueira não cabe explicação. Mangueira precisa ser vivida, vivenciada. Cacique de Ramos (12) e Cuiabá (13), me levaram à experimentar emoções inesquecíveis! Salve a verde e rosa!

Para 2014, retornei para uma segunda experiência com Vila Isabel. E foi, certamente, o maior desafio da minha trajetória profissional. E a mais triste lembrança também. E não me refiro ao povo de Noel, gente bamba da melhor qualidade que trago no meu coração com imenso carinho e respeito. O fato é que, por diversos motivos, a diretoria da época não conseguiu acabar o projeto daquele carnaval e, diga-se de passagem, não foi por falta de aviso da minha parte.

Nesse ano, como faço sempre, entrei atrás da última alegoria pronto para receber uma vaia estrondosa. Eu estava triste e envergonhado. Mas, coitado daquele que duvida da sabedoria popular. Para meu espanto, quando pisei a pista no setor um, fui recebido com aplausos incentivadores e verdadeiros. Chorei, e assim permaneci até o final do desfile. Nunca, nunca mais esquecerei daquela noite. Obrigado povo do samba.

De volta à Mangueira para o carnaval 2015, cantamos a força da mulher mangueirense e brasileira. Sempre em primeiro lugar.

Foi nesse mesmo ano que me aventurei por terras capixabas. Conheci a Mocidade Unida da Glória, a famosa MUG, e assinei três carnavais seguidos. Ganhamos 2015, 2016 e ficamos em segundo em 2017. Belas recordações dessa época em que os sambistas capixabas me receberam de braços e corações abertos. Valeu muito!

Mas, diz a sabedoria popular, que o bom filho à casa retorna.

E eu voltei!

E foi lindo de se ver e sentir tanto carinho, tanto amor do povo nilopolitano e de todos aqueles que amam o carnaval independente de bandeiras.

E, graças aos deuses do carnaval, ainda tive a sorte de colaborar com uma apresentação épica, daquelas que ficam marcadas para sempre em nossas memórias.

O enredo Monstro é Aquele que Não Sabe Amar: Os Filhos Abandonados da Pátria Que os Pariu, era um resumo das minhas lutas. Um retrato desse povo tão sofrido e historicamente abandonado desfilou diante de um público abismado com tão dura realidade exposta ao mundo. Foi um grito, um desabafo, um pedido de socorro corajoso. E que valeu o título de campeã do carnaval 2018.

A grande verdade é que pensava já ter vivido todos os tipos de emoções nesses quase trinta anos de trabalho dedicados ao carnaval. Pelo menos pensava.

Essa certeza se desfez no exato momento que recebi uma ligação do presidente da Guerreiros de Jacarepaguá, a caçulinha do carnaval carioca, que desfilará pela primeira vez em 2019, no grupo E da Intendente Magalhães. E para minha surpresa e susto, sou convidado à ser o enredo da Agremiação. Lógico que à princípio não aceitei!

Me imagino fazendo enredos, jamais sendo um.

E, além disso, entendo que temos nesse imenso país, um número infindável de personalidades  que merecem essa honraria.

Mas o senhor presidente pegou pesado. Falou de carisma, de agregar valores, de colaboração. Mas, o que mais me pegou pelo pé foi o grande desafio. Não o de me tornar enredo, mas o de colaboração. Erguer uma nova Escola de samba num momento tão complicado do nosso país, não é tarefa pra fracos. E os desafios me motivam, me alimentam a alma e a existência.

E aqui estou!

Sem vaidade, sem estrelismo, mas com muito gliter nos olhos e gratidão no coração!

Podem me chamar de cafona, podem gostar ou não do meu trabalho. Mas ninguém pode negar que sou um guerreiro. Da vida e do carnaval.

E hoje, acima de tudo, sou mais um dos Guerreiros de Jacarepaguá!