PRINCIPAL    EQUIPE    LIVRO DE VISITAS    LINKS    ARQUIVO DE ATUALIZAÇÕES    ARQUIVO DE COLUNAS    CONTATO

Coluna do Pesquisador

Coluna do Pesquisador

OITENTA MINUTOS DE SILÊNCIO

Quem foi à Marquês de Sapucaí esse ano viu se repetir uma lamentável situação escola após escola. Nada mudava. Nem no domingo, nem na segunda. As escolas partiam animadas da concentração, felizes, tentando cantar seus sambas com força e disposição. O público do setor um, menos receptivo e caloroso que do que é comum, interagia com cada escola da forma que podia, respondendo focalmente a estímulos. Quando chegavam em cima da faixa que marca o meio da Avenida, começava a patuscada carnavalesca que marcou o maior drama desse Carnaval 2004: o vazio sombrio do setor onze.

Essa foi, de longe, a maior marca que se viu esse ano nos desfiles. Será o que vai ficar na história. O desânimo generalizado a partir da metade de cada desfile foi evidente, mesmo para os que viam a festa pela primeira vez. O reflexo nos que estavam desfilando foi instantâneo, automático. As escolas se abatiam pela tristeza daquela parte sóbria do Sambódromo. O tempo não ajudou em nenhum dos dois dias. Por isso, o que já era triste, se tornou um trágico filme de terror. Via-se as escolas passarem naquele ponto com uma melancolia sem igual, e o que se escutava era o eco do canto. Mas, para mim, o que voltava no efeito sonoro não era o mesmo que a escola dava a um público que sequer existia. Sim, pois s escola dava o máximo de si e, pelas leis da física, ao menos, deveria ter de volta a mesma coisa. Pois eu escutava um outro canto voltando para os ouvidos dos sambistas, o canto melancólico do desgosto dos que fizeram esse espetáculo ser o maior da Terra. Eu escutei nitidamente os ícones da nossa cultura carnavalesca cantarem lentamente e em coro a entoada do silêncio, e senti o desgosto, a tristeza dos esquecidos, em suas vozes fúnebres. Os que montaram o Carnaval de 2004 puderam ter a chance de sentir o mal estar dos desmemoriados.

Naquele vazio setor, mal assombrado, na minha opinião, pelos fantasmas dos preguiçosos turistas, foi salvo pela boa assombração, a presença dos monstros sagrados da nossa história musical. É assim que quero enxergar aquela parte das arquibancadas todas as vezes que rever aqueles desfiles. Quero, mesmo que ilusoriamente, alienar-me diante da desgraça. Quero fazer força para não ver a aberração que foi o desprezo ao povo, fonte de energia única e renovável do Carnaval. Quero ali, naquele espaço vazio, símbolo do menosprezo dos estrangeiros enfeitiçados, aliás, pseudo enfeitiçados, ver as grandes figuras do nosso Carnaval sentados, cansados. Mas a minha ilusão tem limites. Ver ali Cartola e Noel discutindo é fácil, nesse caso. O difícil é imaginá-los felizes com a situação... Ora, não há sonho, utopia, ilusão, força de vontade que faça a minha cabeça conceber uma Dona Zica feliz com a falta de essência em sua Mangueira. Mesmo com toda explosão, o que diria o Silas em pessoa ao ver a sua obra prima passar diante a um grupo de desinteressados e desmemoriados, assustados por uma chuva simples. E o que diria o Mestre André ao ver a sua bateria, a sua cria, usar uma coleira em nome de quem desprezou a sua escola? Isso é demais para mim. E, em resposta a uma situação vergonhosa, entoaram juntos, um sambinha novo, que chamo de entoada do silêncio. Se o som de uma escola falhasse naquele momento, enquanto passava diante das bem assombradas arquibancadas, desprezadas pelos frouxos turistas feitos de papel e açúcar (brancos em demasia, por sinal), todos poderiam escutar esse sambinha tristonho, mas muito oportuno. E o que todos escutariam, de fato? Exatamente a única expressão que pode definir a atual conjuntura e o descaso com o samba nos dias de hoje, o silêncio.

Sim. Estou viajando novamente pelas minhas divagações. O que quero dizer é que aquele silêncio tem um significado. Tem que ter. Temos que valorizar aquele silêncio como o grito desesperado dos que passaram pela história amando o samba e o Carnaval. Temos que entender que é na ausência que podemos notar a presença de mensagens intrínsecas mais sofisticadas, nesse caso, na ausência completa não apenas de ruídos, mas de vergonha na cara de algumas pessoas. Não podemos deixar esse evento passar desapercebido na história, não podemos ficar calados diante a esse acontecimento, quando até mesmo os nossos deuses resolveram se manifestar. Tudo bem, apenas na minha cabeça, e daí? A realidade não é uma questão de percepção?

Aquelas foram as cenas mais tristes que vi em mais de 50 anos ao vivo de Avenida. Um desfile de escola de samba não é feito apenas de escola de samba, ele precisa da interação com o público. Debaixo de um sereno chato, com um frio incômodo, um setor absolutamente vazio pareceu o limbo do nosso Carnaval. Eu percebia, cá em minha pervertida cabeça, que cada escola entrava no vácuo carnavalesco. A tristeza, obviamente, passou para cada uma delas, para as feições dos desfilantes. Não poderia ter ocorrido o contrário, ora! Havia uma tristeza no ar e, por que não dizer, um certo tom de saudosismo da minha parte. Eu que passei a minha vida vendo pessoas disputando a fio um pequeno espaço que fosse mais perto do desfile, via, agora, pessoas desprezarem solenemente o fito “maior espetáculo da Terra”. E podemos dizer que foram apenas os pálidos senhores e senhoras de idade avançada dos países europeus os culpados? Claro que não. Do outro lado da pista, nos camarotes, ao desprezo era ainda maior, mas tinha outro formato. Não é mais o samba, a beleza das escolas e a alegria dos sambistas que atraem os ilustres convidados PMI (pessoas muito importantes), são os holofotes da mídia marrom, aliás, tão pálida quanto os turistas feitos de açúcar e papel. O esquenta de cada escola é desprezado por esses ilustres senhores do quarto poder (ou melhor, quarto cavaleiro do Apocalipse...) em nome da atenção dada aos “protagonistas” pré-fabricados da festa. Nos camarotes, não havia disputa de sambas, mas disputa publicitária de marcas de cerveja; não havia encanto com a tecnologia da Mocidade ou com a garra da Mangueira, mas havia furor graças as madrinhas de bateria da Viradouro e da Grande Rio. Não preciso dizer que na minha louca mente assistia, de um desses camarotes, as feições estupefatas e aterrorizadas de Carlos Cachaça...

Esse vácuo generalizado é apenas resultado do somatório de ações de desprezo ao samba e a essência do Carnaval Carioca. Vemos o evento se tornar um posto de trocas de demagogia e hipocrisia. Reflete-se na arrumação das arquibancadas e na distribuição dos ingressos. Reflete-se na atenção que os PMI’s dispensam ao espetáculo. Reflete-se na tristeza não apenas dos componentes das escolas, como também do povo do Rio de Janeiro. Espero que se reflita também na opinião dos investidores. Chego a pensar que apenas um refluxo de investimentos poderia forçar uma mudança de tonalidade nesses rumos que estamos seguindo há anos. Apenas a devolução do evento para o povo pode manter a sua atratividade, seja cultural ou comercial. Não perceberam ainda que o que tornou essa festa tudo que ela supostamente é foi a interação popular. Sem gente, sem massa, não haveria sucesso para essas escolas. O que legitimou o samba foi o povo, desde sua matriz, quando desembarcou em terras brasileiras. Pode ser difícil para alguns entenderem, mas o povo é parte integrante do espetáculo, e não apenas as pessoas que desfilam, mas também as que motivam os desfiles. Volto ao ponto de partida: a escola na pista é o reflexo do que o povo lhe envia, e vice versa. Uma escola que passa alegria, boa evolução e harmonia  e beleza plástica para as arquibancadas, recebe isso de volta, devolve em forma de sorrisos e felicidade, de orgulho comunitário, de sensação de pertencimento social, às arquibancadas, que, por sua vez, devolve aos foliões em forma de canto e lágrimas, que retribui com mais lágrimas e mais canto! É assim que o desfile acontece... Uma escola desfila para frente, mas se abstrairmos, notaremos que ela troca energia com seu lado direito o tempo todo para que chegue ao ponto final com a mesma quantidade de energia que começou. É impossível se ter um bom desfile sem a presença da espontaneidade popular. E isso só vai acontecer no momento que se devolver a esse povo o que é dele por direito: o evento em toda a sua plenitude. Se quiserem vender o espetáculo festivo e carnavalesco para o mundo todo, se quiserem o utilizar como vitrine comercial e terem sucesso, então devem saber, antes de qualquer coisa, que esse evento apenas é o que é graças ao povo que sempre lotou, sem medo de nada, as laterais das escolas, cumprindo com o seu papel. Esse povo faz parte, e comprar a festa sem o povo é fazer um péssimo negócio.

Portanto, prefiro esquecer o vazio daquele setor, a tristeza que se manifestou quatorze vezes no ano. Prefiro lembrar daquela arquibancada lotada de grandes sambistas da história, indignados com a atual conjuntura. Que expulsaram estrangeiros descomprometidos com o samba para fazerem um protesto, uma manifestação pacífica. O que eles fizeram? Oitenta minutos de silêncio para cada escola...

Pesquisador

pesquisador@webpim.cc