Clara
Nunes e Simone, duas das que puxaram samba na avenida, posam com
Emílio Santiago
As mulheres têm uma
importância vital para o carnaval. Seja pela beleza e
graça das mulatas, passistas e atrizes-modelos-e-manequins que
viraram madrinhas de baterias ou pela arte desenvolvida pelas baianas e
portas-bandeiras. Mas as mulheres protagonizam outras
funções igualmente nobres nas escolas, como bordadeiras,
costureiras, ritmistas e até exercer o cargo máximo de
uma entidade carnavalesca – a presidência. Na força
do cantar, na condução de uma escola de samba, as
mulheres também exercem um papel de destaque. Infelizmente, esta
prática é bem menos freqüente do que no caso dos
homens.
No
final da década de 40, época em que datam os
primórdios do samba enredo (samba que contava a história
de um tema único), um sambista oriundo da escola conduzia uma
parte da música e um coral, predominantemente feminino entrava
nos refrões. Eram as pastoras: um coro formado por mulheres,
inspirado no grupo que acompanhava o cantor Ataulfo Alves. As pastoras
geralmente faziam as vozes em terça, ou seja, num tom alto,
lembrando o canto bonito e ao mesmo tempo melancólico das
lavadeiras. No entanto, é difícil dizer com
precisão qual foi a primeira puxadora de samba.
Uma
das precursoras foi, sem dúvida, a Tia Surica (Iranette
Ferreira Barcellos, 1940 - foto acima). Aos 4 anos, já
desfilava pela Portela acompanhada pelos pais. O apelido foi dado por
sua avó, quando ela ainda era pequena. “Surica”
é um adjetivo usado para roupa curta, por encolhimento. Quem
conhece Iranette e seu 1,47m sabe que o apelido lhe cai como uma luva.
Em compensação, o que lhe falta em altura, sobra em
talento e alegria. Em 1966, ao lado de Maninho e Catoni, puxou o
samba-enredo “Memórias de um Sargento de
Milícias”, de autoria de Paulinho da Viola. Pertence
à Velha Guarda da Portela desde 1980. Sua casa, conhecida como o
“Cafofo da Surica”, é palco de festas
memoráveis. Tia Surica tem um CD lançado (2003), com um
repertório que reúne a elite dos compositores da Portela,
como Monarco, Chico Santana, Aniceto, Casquinha, Manacéa, entre
outros.
Em
1969, para comprovar que não era nem melhor, nem pior, apenas
diferente, a Acadêmicos do Salgueiro contratou Elza Soares
(foto acima, ver ficha avulsa) para conduzir o samba “Bahia de todos
os deuses”. Elza já era uma sambista consagrada no Brasil
e no mundo e ajudou o Salgueiro a conquistar o quarto campeonato da
escola e, ao mesmo tempo, derrubar uma pecha: até aquele
momento, nenhuma entidade que desfilara tendo como enredo a Bahia no
carnaval carioca havia levantado a taça. O sucesso da cantora na
vermelho e branco inspirou outras escolas a buscarem “a sua
Elza”.
Em
1972, o Império Serrano contratou uma legendária cantora
da época de ouro do rádio. Marlene
(Vitória Bonaiutti De Martino, 1924-2014 - foto acima)
havia participado em 1968 do show Carnavália, uma antologia
do carnaval,
com a participação de Eneida de Moraes,
Blecaute, Nuno Roland e Índio e seu Conjunto. No ano seguinte,
recebeu o Troféu Carmem Miranda, criado para premiar os melhores
intérpretes de carnaval nos concursos promovidos pelo Museu da
Imagem e do Som e patrocinados pela TV Tupi e Secretaria de Turismo do
Rio de Janeiro. Para cantar “Alô, alô, taí
Carmem Miranda”, a verde e branco da Serrinha não
pôde contar com Roberto Ribeiro, que tinha se afastado da escola.
Marlene não se intimidou e conduziu com maestria a escola,
ajudando o Império a conquistar o título daquele ano (na
foto abaixo, ela canta o samba no desfile campeão de 1972 ao lado de Abílio Martins). A
cantora repetiria a dose em 1973, com “Viagem fantástica
Pindorama a dentro”. Também passou pela Vila Isabel em
1975.
|
A
partir daí, houve uma febre de puxadoras de samba. No disco dos
sambas enredo de 1973, o samba da Unidos do Jacarezinho é
cantado por Ivete Garcia. Ainda no mesmo ano, Graciete,
sambista imperiana, gravou o samba da verde e branco de Madureira pela
impossibilidade contratual de Marlene pôr sua voz no disco.
Outras cantoras defenderam sambas nas escolas nos grupos de acesso.
Beth Carvalho (Elizabeth Santos
Leal de Carvalho, 1946-2019 - acima,
com Dona Ivone Lara), ingressou no mundo do samba ao gravar, em seu
LP de 1971, o samba-enredo da Unidos de São Carlos, “Rio
Grande do Sul na festa do preto forro”. Logo
a seguir, lançou pela Tapecar o compacto simples Amor, amor,
samba do bloco carnavalesco Bafo da Onça. Oriunda da bossa nova,
da zona sul do Rio, porém mangueirense de longa data, Beth
freqüentava as rodas de samba dos quintais e subúrbios, o
que lhe rendeu o apelido de “Enamorada do samba”. Como
pertencia ao cast da Tapecar, mesmo selo do LP oficial dos sambas
enredo, a cantora gravou “Mangueira em tempo de folclore”,
samba da verde e rosa para o carnaval de 1974, devido à
impossibilidade contratual do titular Jamelão. Em diversas
oportunidades, Beth Carvalho auxiliou Jamelão na
condução dos sambas da Manga na avenida. No carnaval de
1984 – o primeiro da era Sambódromo – foi
homenageada pela Unidos do Cabuçu, com o enredo "Beth Carvalho,
a Enamorada do Samba". Aliás, naquele ano, Beth foi a
autêntica pé-quente, pois ganhou nas três escolas em
que desfilou: Cabuçu (campeã do Grupo 1-B), Portela
(campeã do desfile de domingo do Grupo 1-A) e Mangueira
(campeã do desfile de segunda-feira e supercampeã do
carnaval).
Outro
símbolo do samba foi Clara Nunes, fotos
acima, na direita cantando junto com Dominguinhos do Estácio,
Bira da Mangueira e Conjunto Nosso Samba em 1977 (1943-1983). Iniciou a carreira como crooner de boates. Na
década de 60, vencia todos os concursos musicais em Minas
Gerais, seu estado natal. Em 1965, se transferiu para o Rio de Janeiro
e foi contratada pela gravadora Odeon. Antes de
aderir ao samba, tinha um repertório indefinido, em que cantava
boleros, serestas e até bossa nova. Em 1968, ao gravar
“Você passa eu acho graça”, Ataulfo Alves e
Carlos Imperial, fixou sua presença no mundo do samba. Em 1971,
gravou dois sambas enredo: “Misticismo da África no
Brasil”, da Império da Tijuca, e “Festa para um rei
negro”, do Salgueiro, além de “Ê
baiana”, de Miguel Pancrácio,
Ênio Santos Ribeiro, Fabrício da Silva e Baianinho da Em
Cima da Hora, que fez estrondoso sucesso no
carnaval daquele ano. No LP do ano seguinte, Clara regravou “Seca
do Nordeste” (Gilberto Andrade e Waldir de Oliveira),
clássico da Tupy de Brás de Pina no carnaval de 1961, e
“Ilu-ayê” (Cabana e Norival Reis), que marcou a sua
aproximação com a Portela. A partir daí, a
carreira de Clara Nunes decola definitivamente, batendo recordes de
vendagem, graças às composições inspiradas
de bambas, como o seu marido Paulo César Pinheiro, João
Nogueira e Mauro Duarte e o grupo Nosso Samba, responsável pelos
arranjos nos discos e pelo acompanhamento musical nos shows. Em 1975, a
cantora puxou na avenida o samba enredo “Macunaíma”,
(Norival Reis e David Corrêa). Com ela, no carro de som, estavam
o próprio David Corrêa, o compositor Candeia e o puxador
oficial da escola, Silvinho do Pandeiro. Clara também abriu as
portas para o sucesso de músicas que tinham o formato de samba
enredo, como “Canto das Três Raças”,
“Portela na avenida” e “Serrinha”, de Mauro
Duarte e Paulo César Pinheiro, e
“Nação”, de João Bosco, Aldir Blanc e
Paulo Emílio. Clara Nunes faleceu no Sábado de Aleluia de
1983, após uma cirurgia malsucedida, depois de 28 dias no CTI.
Seu corpo foi velado por mais de 50 mil pessoas na quadra da escola de
samba Portela. Em sua homenagem, a rua em Madureira onde fica a sede da
Portela, sua escola de coração, recebeu seu nome. No ano
seguinte, a Portela levou à Sapucaí o enredo
“Contos de Areia”, uma homenagem à cantora e a dois
portelenses legendários, Natal e Paulo da Portela.
Em
1976, o Salgueiro retorna com uma mulher no carro de som. A sambista Dinalva
(foto acima) gravou “Valongo” no disco oficial da gravadora Top Tape e
ainda dividiu o microfone com os puxadores oficiais do Salgueiro da
época, Noel Rosa de Oliveira e Joel Teixeira. Em 1980, Zaíra
foi a voz da Unidos de São Carlos no samba “Deixa
Falar”. Durante a década de 80 houve uma
retração na escolha de mulheres para puxar os sambas.
O
ressurgimento de uma mulher com papel de destaque no carro de som de
uma escola de samba ocorreu em 1989. A cantora Simone (Simone
Bittencourt de Oliveira, 1949, posando acima com Martinho da Vila,
Milton Nascimento e Paulinho da Viola)
foi convidada pela
Tradição para dividir a condução de
“Rio, samba, amor e tradição” com o puxador
Candanda. Tanto a escolha de seu nome quanto o desempenho da cantora
baiana foram bastante criticados. No entanto, a intérprete
não era nenhuma estranha no ninho. Após 10 anos de
carreira com repertório calcado na MPB tradicional, Simone
regravou “O Amanhã” (João Sérgio)
– samba da União da Ilha do Governador de 1978 –,
para o disco Delírios e delícias (1983). A
música bateu recordes de execução nas
rádios e programas de tevê. No ano seguinte, a cantora fez
um bate bola com Neguinho da Beija-Flor: ela cantou no disco dele, Ofício
de Puxador (1984), a faixa “Deusa da Passarela”. Em
seguida, o intérprete de Nilópolis participou da
gravação de “Por um dia de graça”
(Luiz Carlos da Vila), para o disco Desejos (1984) da Cigarra.
A partir daí, graças à ótima
repercussão, Simone sempre passou a incluir um samba enredo no
repertório de seus discos e shows. No LP seguinte, Cristal
(1985), ela aproveitou a carona no sucesso obtido pela Caprichosos de
Pilares no carnaval daquele ano: encomendou aos autores de “E por
falar em saudade” Almir de Araújo,
Balinha, Hércules Correia, Marquinho Lessa e Carlinhos de
Pilares um samba que tivesse a estrutura parecida com o que foi levado
à Sapucaí, convidou o puxador Carlinhos de Pilares para
dividir os vocais e teve o auxílio luxuoso da bateria da escola.
O resultado foi o sambaço “Amor no
coração”, apontado como a melhor
gravação de um samba enredo em um disco de Simone. Depois
disso, a cantora ainda gravaria outras músicas nesse
gênero: “Rei por um dia” (1986), “Disputa de
poder” (1988), “Louvor a Chico Mendes” (1989) e
“Liberdade, liberdade, abra as asas sobre nós”
(1990).
Depois
de Simone, outras duas cantoras estiveram mostrando a força e a
capacidade das mulheres para puxar samba enredo no mesmo ano de 1995. O
vozeirão de Selma Reis esteve a serviço da
Mocidade Independente de Padre Miguel como apoio de Wander Pires.
Selma, considerada uma cantora de repertório sofisticado,
não poupou esforços para ajudar a cantar o
belíssimo samba “Padre Miguel, olhai por nós”.
Nascida
e criada nas proximidades de redutos do samba carioca, como a Portela,
Vila Isabel e Mangueira, Leci Brandão
(Leci Brandão da Silva, 1944, foto
acima) começou a atuar como cantora e compositora na
década de 1960, e em 1968 ganhou o primeiro prêmio do
programa A Grande Chance, da TV Tupi. Em 1972 entrou para a ala dos
compositores da Mangueira, sendo a primeira mulher a conseguir esse
feito. Concorreu na quadra diversas vezes. No entanto, nunca venceu uma
disputa na verde e rosa, tirando o segundo lugar em três
oportunidades – a última para o carnaval de 1998, com o
tema “Chico Buarque da Mangueira”. Participou de festivais
de MPB e samba, e lançou o primeiro LP em 1975, Antes que eu
volte a ser nada. No início da década de 80 brigou
com a gravadora Polygram e ficou cinco anos sem gravar, época em
que acentuou-se sua atuação política, ligada ao
sindicalismo, aos direitos humanos e às minorias. Também
foi o período em que desenvolveu sua carreira no exterior,
apresentando-se no Japão, Dinamarca, Angola, Estados Unidos.
Voltou a gravar em 1985, pela Copacabana. A partir daí, sua
carreira musical deslanchou e firmou-se como um dos nomes mais fortes
do samba no país. Em 1990, seu disco Cidadã Brasileira
ganhou dois prêmios Sharp. Leci Brandão atuou quase 10
anos como comentarista dos desfiles do carnaval carioca pela Rede
Globo, onde sempre destacava a aparição dos sambistas, o
que lhe rendeu o apelido de “Leci Comunidade”. Há
três anos vem comentando os desfiles do carnaval de São
Paulo. Em 1995, foi convidada para puxar “Deuses e costumes nas
Terras de Santa Cruz” para a Acadêmicos de Santa Cruz, no
Grupo de Acesso. O samba conquistou o Estandarte de Ouro do jornal O
Globo. Antes de começar a cantar o samba, Leci homenageou
vários puxadores, citando gritos de guerra consagrados, como
“chora cavaco”, “dá licença”,
“vai meu ritmo”, “beleza, beleza, beleza” e
“segura a marimba”. Em seus discos, também há
espaço para revisão de sambas enredo antigos, como
“Dona Bêja, feiticeira de Araxá”,
“Histórias de um preto velho” e
“Casa Grande e Senzala”.
A
maranhense Alcione (Alcione Nazaré, 1947), junto com
Beth Carvalho e Clara Nunes formou o ABC do Samba nos anos 70.
Mangueirense desde que chegou ao Rio de Janeiro, nos anos 60, Alcione
tem apenas uma experiência como puxadora de samba: no CD oficial
de 2004 ela gravou “Contos de Areia” samba que a
Tradição reeditou naquele ano na Marquês de
Sapucaí, mas não defendeu na avenida. A diretoria da
escola do bairro do Campinho escolheu a Marrom devido à sua
grande amizade com Clara Nunes. Alcione foi
enredo da escola de samba Unidos da Ponte no carnaval de 1994.
E
neste texto sobre as puxadoras, não poderia faltar o nome de um
grupo vocal feminino pioneiro na interpretação de samba: As Gatas (acima, em 2003).
Formado pelas cantoras Dinorah (falecida em
2006), Nara, Zélia e Zenilda, o conjunto gravou todos os discos
de samba desde 1968 e é responsável pelos corais nas
faixas.
As Gatas também eram convidadas para auxiliar os
intérpretes na avenida – a Beija-Flor, escola que elas
desfilaram pela primeira vez em 1977 (foto acima) é a mais freqüente.
Em
outros estados, a participação da mulher como puxadora de
samba também é marcante. Em Porto Alegre, fizeram
história as performances de Maria Helena Montier, Vitória
Feijó e Mauriléia. Em São Paulo, a
maior delas é a cantora Eliana de Lima (foto acima),
que puxa sambas na capital paulista desde os anos 80. Ela
se consagrou em escolas como Unidos do Peruche e Leandro de
Itaquera.
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Entrevista com Leci Brandão para Revista
Raça em 1998
Primeira
mulher a integrar a ala de compositores da Mangueira, ela faz samba da
melhor qualidade e não tem papas na língua para dizer o
que pensa. Começou no festival Abertura em 1975. Ela é do tipo que
não leva desaforo para casa. E, se o motivo for justo,
também não fica de fora de uma boa briga. Para a cantora
e compositora Leci Brandão, o exercício da cidadania vale
24 horas por dia. Para defender seu ponto de vista e sua música,
tempos atrás ela pediu demissão de uma gravadora
multinacional e pagou o preço de ficar cinco anos sem gravar.
Seu Rei das Ervas, a entidade que sua mãe-de-santo incorpora,
lhe disse para não se preocupar. E estava certo. No
período em que ficou sem gravadora, Leci fez sua primeira viagem
ao exterior e cantou, como nunca, lá fora e em shows por todo o
Brasil. No fim do ano passado, recebeu a medalha Pedro Ernesto, da
Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, e o título de
Cidadã Paulistana, entregue pela Câmara de Vereadores de
São Paulo. No mês passado, caiu no samba de duas escolas,
a Estação Primeira de Mangueira, que a projetou para o
mundo da música, e a Caprichosos de Pilares, que homenageou
personalidades negras.
RAÇA BRASIL - Como vai a
carreira neste momento?
LECI BRANDÃO - Mudei
para a gravadora Movieplay, em 1996, mas eles não entendem quem
é a Leci Brandão. Quando lancei meu último disco,
Somos da mesma Tribo, o pessoal do MNU procurou a assessoria de
imprensa da gravadora para ajudar na divulgação. Mas eles
não deram qualquer retorno. A minha opinião é que
a Movieplay não tem divulgação competente. Pelo
menos uma que entenda o meu trabalho e invista onde interessa. Quando
cheguei lá, com um samba do Martinho da Vila que eu queria
regravar, um diretor artístico falou que não estava com
nada ... Mas não foi só nessa gravadora. Enquanto a
Copacabana me tornou uma vendedora de discos em São Paulo, a RGE
me fez perder espaço lá. Em 1981, quando apresentei meu
repertório à PolyGram, o Roberto Menescal me disse que o
som que estava rolando naquele momento era outro e que eu precisava
compor outras coisas. Na época, quem fazia sucesso era a Lady
Zu, o Sidney Magal ... Então, pedi rescisão de contrato.
E, neste país, pedir demissão de multinacional é
ficar marcado pelo resto da vida. E fiquei cinco anos sem gravar, mas
sempre sobrevivendo de música. Cantei em tudo o que era canto,
até na Dinamarca, e depois em Angola, no Festival de Luanda, em
1984.
RAÇA - Mas, hoje, o que
faz sucesso é o samba. O que determinou essa mudança?
LECI - Isso se chama trabalho
de gravadora. Elas resolveram investir nos grupos, depois do estouro do
Raça Negra, com 2 milhões de discos. E isso não
adianta discutir. Foi o sucesso deles que abriu caminho para os que
vieram depois. Isso porque cada gravadora resolveu ter o seu
próprio Raça Negra.
RAÇA - Então,
copiaram o que deu certo, em busca do sucesso fácil?
LECI - Veja, por exemplo, a
questão da temática. Só se fala de amorzinho ...
Porque o Raça Negra estourou falando de amor. Quem não
fala de amor está falando de sacanagem. Está todo mundo
indo na aba da Bahia, depois que se viu que essa sacanagem que o baiano
sempre teve, a sexualidade, dá pé. Então eles
falam de uma coisa ou de outra.
RAÇA - Isso empobreceu o
samba?
LECI - O que eu coloco para
esses meninos, que assistiam a nossos shows quando tinham 10, 11 anos,
é que acho fantástico o sucesso deles, porque ralaram
muito. Mas eles poderiam aproveitar todo esse sucesso e prestar um
grande serviço à sociedade brasileira, fazendo letras
fantásticas como as dos garotos do funk e do rap.
RAÇA - Mas isso
não seria, de certa forma, seguir a "escola Leci"?
LECI - Não sei se
é seguir a minha escola. Mas acho que eles podem prestar um
serviço social. Todos os meus discos têm músicas de
amor, mas nunca deixei de me preocupar com a mulher, com o homem, o
cara do morro, o trabalhador, o suburbano...
RAÇA - No início
de carreira você fez músicas de temática gay. Foi
discriminada por isso?
LECI - Quando fiz "Ombro
Amigo", mandaram uma carta para a Mangueira. O presidente da ala dos
compositores respondeu que não tinha nada contra mim. Agora,
não dá pra vir com brincadeirinha comigo. E também
não pergunto ao meu público qual é a
opção sexual de cada um. Quero é ver a casa cheia.
RAÇA - Sua figura de
artista ficou tão associada às brigas sociais, à
defesa das minorias, que passaram a chamá-la de Leci Comunidade,
não é?
LECI - Sou uma pessoa que veio
da comunidade e acho que é minha obrigação
levantar essa bola. Na Rede Globo, onde fui comentarista de Carnaval
durante nove anos, ficava falando da baiana, do cara da bateria, do
compositor. Sempre achei que a festa do Carnaval é deles, os
outros são oportunistas. Porque, um dia do ano, eles passam dois
segundos na tevê. Os artistas aparecem 363 dias no vídeo.
Aqueles dois dias do desfile são da galera do samba. O apelido
não me aborrece. Adoro! Sou mesmo a rainha da comunidade.
RAÇA - E por que
você parou de comentar Carnaval na Globo?
LECI - O pessoal de alta
sociedade ficou incomodado porque eu não falava o nome deles. A
Globo teve um comportamento muito legal, porque jamais recebi
bilhetinho para falar o nome de A, B ou C. Mas também pararam o
comentário. Hoje, é só narração. E o
povo do samba sente saudade, me cobra, porque a minha saída
é a ausência do nome deles no desfile da televisão.
RAÇA - Você
já foi jurada de desfile?
LECI - Sempre me recusei.
Não vou julgar amigo meu. Tenho trânsito livre em todas as
escolas. Então, é muito complicado julgar alguém
que vi crescer, que convive comigo. E eu sei o sacrifício que
é fazer um Carnaval. Criticar é fácil. Mas
ninguém sabe o que é empurrar carro alegórico,
socorrer a baiana que passou mal no desfile, não deixar faltar
fantasia pra ninguém. Nunca desejei ser de diretoria de escola
de samba. É muita responsabilidade. E também iria brigar
muito.
RAÇA - Neste Carnaval,
você participou de uma escolha de samba bastante controvertida na
Mangueira. Por que os compositores paulistanos ganharam?
LECI - Primeiro, quero deixar
claro que já cheguei seis vezes à final de samba-enredo,
então, não é novidade perder. A questão
é que, quando a diretoria abriu espaço para que samba de
qualquer Estado se inscrevesse, poderia ganhar alguém de Minas
ou do Sul. E, apesar dos boatos de que houve acordo financeiro, eu,
conhecendo o presidente Elmo dos Santos, me nego a acreditar que ele
fosse capaz de entrar num acordo desses. Porque isso significa
traição à ala de compositores,
traição à arte.
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