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JÚLIO MATTOS

JÚLIO MATTOS

Ano de falecimento: 1994

Era uma vez um preto velho
Que foi escravo
Retornando a senzala
Para historiar o seu passado

Ô ô ô, o samba vibrou
Com as glórias
Que Villa-Lobos alcançou
E as platéias
Do mundo inteiro deslumbrou

Sublime relicário de criança
Que ainda guardo como herança
No meu coração

Foi assim
Com sedução e fantasia
Que despontou o nosso samba
Com grande euforia

Glória a estes bravos
Que lutaram por um ideal
E conseguiram conquistar
As riquezas do Brasil colonial

Boa noite, meu Brasil
Sudações aos visitantes
Trago neste enredo
Fatos bem marcantes
Os modernos bandeirantes

Para alegria geral
Este é o nosso carnaval
Em todo universo
Não existe outro igual
Só neste Rio tradicional

Iaiá mandou ir à Bahia
No Abaeté para ver sua magia
Sua lagoa, sua história sobrenatural
Que a Mangueira traz pra este carnaval

Mangueira, hoje em evolução
Cantando
mostra com louvor
O mito em sua máxima expressão
Panapanã, o segredo do amor

Canto a minha história
De um celeiro de bambas
Cinqüenta anos de glória
Estão no palácio do samba

Tem xinxim e acarajé
Tamborim e samba no pé

Itabira
Em seus versos, ele tanto exaltou
Com amor!
Eis aí a verde-rosa
Cantando em verso e prosa
O que o poeta inspirou

Pergunte ao criador
Quem pintou essa aquarela
Livre do açoite da senzala
Preso na miséria da favela

Júlio Pereira Mattos, muito conhecido mais tarde como Julinho da Mangueira, veio de uma família de condições financeiras pouco favorecidas e, durante toda sua vida, demonstrou, a todo e qualquer momento, ser uma pessoa infinitamente humilde, cuja simplicidade sempre fazia presente de forma clara e explícita em todas as suas realizações profissionais. Já na década de 40, Julinho tornou-se um artesão habilidoso e dedicado, fato que o auxiliou infindavelmente a melhorar a qualidade de vida de sua família e a abrir novas portas no impetuoso mercado de trabalho. No início dos anos 50, o humilde artesão viu no emergente mundo do samba uma segunda oportunidade para exposição de seus trabalhos manuais no meio artesanal brasileiro.

Na época, morava no morro do Carujá e era componente assíduo da escola de samba Paraíso das Baianas. Como a Unidos do Tuiuti, outra agremiação importante do bairro, acabou entrando em decadência, a comunidade do Carujá não possuía dinheiro suficiente para acompanhar um carnaval mais requintado, como o que era produzido anualmente pela Paraíso das Baianas. Os sambistas do morro passaram a ter maior preferência a um bloco, ignorando a agremiação de Julinho. Daí, a fim de salvar as demais escolas de samba do morro, em 1954, juntamente a Nelson Forró, o artesão ajudou a fundar a Paraíso do Tuiuti, assumindo assim, não só o posto de um dos maiores bambas do carnaval carioca, como também o papel de idealizador e confeccionador de incontáveis desfiles para a azul-e-amarelo de São Cristóvão. Contudo, tratava-se de uma escola de estrutura extremamente limitada e de uma política interna pouco organizada, alternando entre consecutivos acessos e rebaixamentos entre os Grupos de Acesso 2 e 3 do Rio de Janeiro. Entretanto, o artesão, ou porque não dizer carnavalesco, era um artista de um bom gosto espetacular e conseguiu despertar a atenção de muita gente importante, o que, por exemplo, gerou um acontecimento crucial em sua vida: por mais incrível que pareça, o artista, baluarte de uma então obscura escola de samba do Acesso, fora convidado para se tornar carnavalesco da Estação Primeira de Mangueira, em 1963. Continuou trabalhando para a Paraíso do Tuiuti durante as décadas de 50, 60 e 70, porém agora tinha outro vínculo artístico no carnaval carioca.

A temática escolhida por Julinho a ser abordada pela verde-rosa era parcialmente polêmica, Exaltação a Bahia. Acontece que inúmeros enredos sobre Nordeste do Brasil, em especial sobre a Bahia, eram tidos como desditos, proporcionando um infortúnio azar às agremiações independentemente da qualidade de seus desfiles. Era uma espécie de tabu do carnaval carioca, levado a sério pelas escolas de samba durante um longo tempo, entretanto a Mangueira ousou e decidiu prosseguir com a idéia do carnavalesco. A escola trouxe para a avenida uma rica homenagem a todo relicário da história baiana, exaltando as grandes catedrais, a lavagem do Bonfim, o candomblé, a culinária, entre outros aspectos. A apresentação da escola fora grandiosa e a Mangueira acabou abocanhando um vice-campeonato, perdendo o título apenas para o Salgueiro, que fizera, naquele mesmo ano, um dos maiores desfiles de sua história, com o antológico Chica da Silva.

No ano seguinte, Julinho novamente prometera realizar um grande desfile pela Mangueira ao elaborar o enredo História de um preto velho, o qual girava em torno das reminiscências de um velho ex-escravo ao relembrar seus dolorosos tempos de cativeiro. Um samba-enredo forte, de autoria de Hélio Turco, Comprido e Pelado, e a lendária bateria do imortal Mestre Waldemiro davam as cartas e, com absoluta certeza, ajudariam a verde-rosa a conseguir uma boa colocação. A Mangueira fez uma grandiosa viagem ao passado, desde as escravistas senzalas da Bahia ao esplendor e a ostentação do Rio Antigo durante o Brasil imperial. Julinho acertou na mão e a agremiação realizou outro belo desfile, ficando em 3º lugar. Ainda que a Mangueira não tivesse se tornado a campeã de 1964, aquele singular momento do carnaval carioca, como já dizia a própria letra do samba, “jamais seria esquecido”.

Em 1965, carnaval monotemático em homenagem ao quarto centenário de fundação do Rio de Janeiro dentre todas as escolas de samba, Julinho fez questão de abordar na avenida todos os aspectos culturais do povo carioca no decorrer dos séculos. Seria uma grande exaltação a inúmeros festejos e tradições sempre presentes no meio de vida do povo brasileiro. A Mangueira teve um investimento pesado na qualidade de sua apresentação e o carnavalesco, que também contou com o apoio de uma Comissão de carnaval especializada, conseguiu tirar um bom proveito do enredo de forma bem elaborada. A escola iniciou seu desfile com exuberância, através de um elegante abre-alas, sustentado por mastros cromados, cada um representando algum respectivo século do Rio de Janeiro em toda a sua trajetória. A partir daí, surgiram diversos painéis subdividindo as alas da agremiação em alusões a cada fase da história do Rio, desde a fundação da cidade à concretização do Estado da Guanabara, fato ocorrido cinco anos antes. As fantasias, simbolizando desde os índios temininós aos navegantes franceses, dos escravos aos nobres senhores de engenho, dos malandros da Praça XI às atuais praias cariocas, eram incrementadas pelas ricas alegorias e pela alegria de seus foliões. A Mangueira não só possuía um enredo em homenagem ao Rio, como também fez um desfile com a cara do Rio. A escola terminou com a 4ª colocação.

Para 1966, Julinho quis inovar. O enredo era uma homenagem ao maestro Heitor Villa-Lobos, realizando pioneiramente uma miscelânea entre as culturas erudita e popular. Era claro para todos o fato de a Mangueira ser a escola de coração de Villa-Lobos e o maestro sempre teve durante sua vida uma admiração muito grande pelo compositor Cartola. A verde-rosa, última escola de samba a desfilar já durante dia alto, contou com a colaboração da viúva do músico, Dona Mindinha, que forneceu uma série de materiais importantes para pesquisa sobre a vida e obra de Villa-Lobos. Julinho já havia confeccionado este enredo anteriormente, na Paraíso do Tuiuti em meados dos anos 50, porém a Mangueira era uma escola de samba grandiosa e elaborar novamente esta temática em uma agremiação mais financeiramente forte permitiria novas possibilidades ao carnavalesco, o que gerou um grande interesse da própria imprensa em saber como Julinho iria desenvolver aquele carnaval. Nos preparativos do desfile, a escola num todo suava muito para de realizar uma bela apresentação na avenida, contudo um acidente infelizmente fez o barracão da Mangueira pegar fogo, acabando com os sonhos maiores da comunidade mangueirense em fazer um rico carnaval em 1966. Com quase toda parte cenográfica da agremiação incendiada, o carnavalesco teve que praticamente recomeçar do zero, indo trabalhar embaixo de um viaduto aberto em Benfica. Julinho enfrentou inúmeros obstáculos a fim de terminar aquele carnaval. Houve até um caso de sobrenaturalidade ocorrido em meio aquele tormento. O artista continuava confeccionando ininterruptamente os adereços da escola madrugada à dentro, mesmo sofrendo de graves crises de rins. Certo momento, Julinho sucumbiu à exaustão e adormeceu, deixando a escultura de papier-maché de Villa-Lobos por terminar. No dia seguinte, ao acordar, o carnavalesco notou que a escultura se encontrara completamente pronta, inclusive pintada, sendo que não havia ninguém naquele lugar durante a noite a não ser ele próprio. Contando com um ótimo samba-enredo, a Mangueira preparava uma entrada apoteótica na Avenida Presidente Vargas.

Nas palavras do próprio Julinho, “a impressão que se teve foi a de que todo o morro de Mangueira tinha descido para ensaiar no asfalto.”. A impecável escola fez toda a avenida vibrar ao som de um fortíssimo coral de pastoras ao lado do imortal timbre de Jamelão. Como, nos anos 60, ainda era raro o uso de alegorias em desfiles de escolas de samba, Julinho se aproveitou ao máximo deste recurso privilegiável a fim de retratar as composições musicais villalobianas da forma mais clara possível. O abre-alas, sustentando por mastros em lamê, apresentava a escola através de um estandarte decorativo. Seguiu-se daí uma exaltação a maior inspiração artística de Villa-Lobos, que era a natureza nativa do Brasil, fazendo alusões à fauna e à flora de nossa terra, além de homenagear a riqueza cultural de nossos povos indígenas. Julinho também ousou em falar do sentimento nacionalista de Villa-Lobos em contemplar toda a cultura de seu país, citando inúmeras manifestações populares de todo o Brasil. Por fim, fora apresentada pela escola a paixão do músico pelos antigos carnavais, o amor de Villa-Lobos por crianças e toda a sua luta pelo direito dos brasileiros à educação, além de descrições sobre a sua vida nos diversos países por onde passou. Um dos maiores momentos daquele desfile era o carro “Educação musical e das cirandas”, que trazia uma enorme escultura da deusa da música e uma grande ciranda com crianças brincando de roda. Outro momento marcante da Mangueira em 1966 fora a sua terceira alegoria, contendo anjos dourados anunciando o gênio musical do século, mais um globo terrestre girando, seguido de uma escultura em tamanho real de Villa-Lobos “regendo o mundo”. O desfile, em um todo, foi digno de ser considerado um dos melhores da história da Mangueira. A escola foi ovacionada e deixou todo o público nas arquibancadas debaixo de lágrimas, inclusive Dona Mindinha, uma vez que, quando os componentes da agremiação souberam que ela estava presente à avenida assistindo o desfile, foi arrastada pelos sambistas para se juntar à festa dos foliões. Infelizmente, mesmo já sendo tida como campeã, a Mangueira acabou perdendo o título para a Portela por apenas um ponto, que mesmo fazendo uma apresentação considerada fria, conseguiu abocanhar a 1ª colocação.

Sentindo-se injustiçado após o desfile de 1966, Julinho apelou para outro enredo antigo que já havia sido confeccionado por ele na Paraíso do Tuiuti em tempos mais remotos: O mundo encantado de Monteiro Lobato. A Mangueira teve o grande mérito de, para 1967, possuir um dos mais emocionantes sambas de todos os tempos, de autoria de Hélio Turco, Luiz, Darcy da Mangueira, Dico, Batista e Jurandir. Apesar de a obra ter se tornado um clássico da MPB e de todo o seu sucesso ter sido responsável pelo começo das gravações anuais de discos de sambas-enredo, tradição que dura até hoje, tratava-se de um hino cuja simplicidade deu um gigantesco trabalho aos compositores a fim de encontrar a firmeza correta para sua abertura. Conta-se até uma história na qual Darcy da Mangueira, um dos compositores do samba, andava em um ônibus que o trazia da Vila Kennedy ao Centro, local onde trabalhava. Distraído, veio-lhe à mente, como em um estalo, os versos dos quais necessitava para completar a letra. De qualquer modo, o samba passou na avenida de uma forma arrebatadora, levando os componentes, a imprensa e o público nas arquibancadas ao êxtase. Contando com um belíssimo conjunto visual e sendo única agremiação naquele carnaval a não desfilar debaixo de chuva, já sob sol forte, Julinho narrou todo o deslumbre e a magia que sempre envolveram as histórias de Monteiro Lobato. Um dos momentos mais marcantes da apresentação da Mangueira foi a Ala dos Duques, que conseguiu convencer a diretoria da escola a desfilar como comissão de frente, elaborando suas próprias fantasias e coreografias particulares, o que resultou em uma nota máxima para a agremiação. A emoção passada fora tão grande que tomou até os jurados do desfile, inclusive o cantor e compositor Chico Buarque, que julgava letra do samba e enredo. Extremamente emocionado, teve de recorrer a outro jurado dizendo: “Não deixe que eu seja injusto com as demais escolas!”. Aliando bom gosto plástico com muito samba no pé, Julinho enfim levantou, de modo justo, o seu primeiro campeonato para a Mangueira.

Brigando pelo bicampeonato, Julinho decidiu apelar para o emocional dos mangueirenses mais tradicionais, com o enredo Samba, festa de um povo, em homenagem a toda a história desse riquíssimo gênero musical, desde os festivos lundus dos povos africanos aos desfiles de escolas de samba. O bom samba-enredo, de autoria da mesma parceria campeã do ano anterior, já estava na boca toda a quadra durante o período pré-carnavalesco e prometia embalar um desfile digno de título. Contando com o apoio do artista Laurênio Soares, dono do atelier no qual as alegorias e adereços da Mangueira para aquele carnaval eram confeccionados, Julinho realizou o desenho de mais de 230 fantasias, além de quatro carros alegóricos. Novamente iniciado pela Ala dos Duques como comissão de frente, o desfile fora aberto por um grande abre-alas ornado em flores e pequenas colunas, levando uma placa de bronze como símbolo da escola. A partir deste momento, via-se uma série de representações do Brasil Colonial, em alusão às antigas manifestações culturais dos negros escravos e às roupagens da elite portuguesa durante o século XVII. Do tambor-de-crioula à coroação do Rei negro do Congo, a Mangueira fez uma singela exaltação a toda a negritude brasileira, que tanto colaborou para a difusão e o desenvolvimento do samba. Com a alegoria “Serenata do Amor”, em forma de um caramanchão colonial com bancos de praça, violões e uma estátua de cupido no centro, a escola abriu seu segundo setor, dedicado aos antigos carnavais e a chamada Pequena África, onde se situava a casa de Tia Ciata no Rio de Janeiro. Com pierrôs, colombinas, batuqueiros e ranchos carnavalescos, a Mangueira lembrou os carnavais do início do século XX, até despontar o carro “Chafariz da Praça XI”, uma cópia fiel do antigo reduto de bambas dos anos 20, no Largo do Estácio, local onde se encontrava a sede da Deixa Falar, a primeira escola de samba da história. A alegoria “O sonho do sambista”, encerrou o último quadro do enredo com uma homenagem aos sambistas do morro, que transformam pobreza e cansaço em alegria e amor dentro do mundo do samba, no qual ele se torna o verdadeiro “Príncipe do carnaval” em sua escola de samba do coração. Após uma apresentação heróica e sem chuva, a Mangueira tinha tudo para ser bicampeã, sonho que se concretizou na apuração daquele carnaval.

Para 1969, a Mangueira decidiu bater um verdadeiro recorde a fim de conquistar o tricampeonato: nada mais, nada menos que um contingente de 6.000 desfilantes, número exagerado até para os nossos padrões atuais. A temática abordada pela escola, denominada Mercadores e suas tradições, se tratava de uma rica descrição da história do comércio no Brasil. No desenvolvimento de alegorias, Julinho recebeu o apoio especial do pintor e escultor Augusto de Almeida, veterano artista do carnaval desde 1930, quando ainda trabalhava para o Rancho Última Hora. Além disso, Augusto também já havia trabalhado durante seis anos na então pequena e inexpressiva Beija-Flor de Nilópolis, confeccionando alegorias modestas, haja vista que estava em uma escola de poucas possibilidades financeiras. Aliada a um poético samba, a Mangueira teve sua apresentação cercada de grandes expectativas. O desfile fora iniciado por um portal em seu abre-alas, envolto pelas “Cortinas do passado”, além de uma grande coroa e uma saudação ao público. Seguiu-se daí uma série de alas em alusão ao início da colonização brasileira, com representações dos mercadores de pau-brasil e de especiarias. Com o carro “Chegada dos conquistadores”, contendo três painéis pintados e dois índios recebendo presentes, retratando a chegada dos portugueses ao Brasil, a Mangueira abriu o segundo setor de seu desfile, dedicado ao comércio de escravos e de cana-de-açúcar. A escola homenageou com clareza a fidalguia dos canaviais, até despontar a gigantesca alegoria “Ciclo do ouro”, simbolizando um garimpo de ouro e pedras preciosas, os negros nas senzalas e um elegante salão dos nobres fazendeiros de Vila Rica. O carro “Praça de Vendedores”, com um rico chafariz colonial jorrando água, representava os tradicionais comerciantes de rua do século XIX, como as aguadeiras, as doceiras e os vendedores de cata-ventos, e fechou o desfile da Mangueira com chave de ouro. Foi uma apresentação extremamente bonita e bem acabada. Mesmo sendo a única escola a receber nota 10 em samba-enredo, o contingente exagerado de componentes atrapalhou muito a evolução da Mangueira, que acabou com o vice-campeonato.

Depois de três desfiles esplendorosos, a Mangueira tomou ciência de que necessitava rever suas finanças e colocar seus gastos na ponta do lápis. Pela primeira vez em um longo tempo, infelizmente, faltou verba na verde-rosa. Uma modificação importante realizada pela escola para o carnaval de 1970 foi a diminuição do número de desfilantes. Em 1969, a Mangueira se apresentou com cerca de 6.000 componentes. Para o ano seguinte, esse contingente caiu para 2.500 pessoas, ou seja, menos da metade de 1969, a fim de a evolução da escola acabar não sendo prejudicada novamente. Não foi a toa que 1970 foi apelidado pelo ex-presidente da bateria da Mangueira, Mestre Tinguinha, como “o ano do sacrifício”. Outra mudança ocorrente na agremiação foi no estilo de enredo. O carnavalesco decidiu fazer uma exaltação a natureza brasileira, ao contrário das temáticas anteriores, que possuíam normalmente um caráter mais histórico. A primeira parte do desfile mangueirense fazia um suave preito às flores, citando inúmeras espécies distintas delas, o que inclui rosas, girassóis, amores-perfeitos, margaridas, papoulas, entre outras. A partir daí, a Mangueira passou a referenciar os recantos mais pictóricos de cada estado do Brasil, simbolizados ala por ala com grande categoria. O terceiro setor da escola deu destaque a toda a fauna brasileira, das aves às onças, das cobras aos animais marinhos, com direito a uma alegoria representando o peixe xaréu. As riquezas mineiras do Brasil também foram lembradas pelo carnavalesco nas fantasias das tradicionais baianas mangueirenses, retratadas como jazidas de metais e pedras preciosas. O desfile foi encerrado por um gigantesco pomar em alusão aos produtos naturais de nossa terra. Foi uma bela apresentação, provando que as mudanças internas efetuadas na Mangueira foram realmente necessárias. A escola terminou com um justo 3º lugar. No desfile das campeãs, um fato interessante aconteceu: a pastora Nair Pequena, uma das mais importantes baianas da Mangueira, veio a falecer em plena a avenida.

Em 1971, a verde-rosa notou que estava bem longe de ser a mesma escola de samba fundada em 1928 por Cartola e Carlos Cachaça. Havia crescido demais, tornando-se uma das maiores atmosferas da MPB presentes na cidade do Rio de Janeiro. A quadra da agremiação havia ficado pequena diante da grande quantidade de sambistas e visitantes que a freqüentavam. A partir daí, com o apoio da Secretaria de Obras do município, foi idealizada a construção de uma nova sede, mais ampla e mais eficiente. Com a posse do terreno efetivada judicialmente, a escola gastou uma parte bastante significativa de seu orçamento a fim de erguer o que seria denominado futuramente como o “Palácio do Samba”, sobrando ainda uma razoável verba para desenvolver o carnaval daquele ano, cujo enredo, imaginado pelo ufólogo e compositor Carlinhos Sideral, se chamaria Modernos Bandeirantes. Tratava-se de uma homenagem a aviação brasileira e as “expedições” dos grandes aviadores a explorar os céus do mundo. A Mangueira também homenagearia, em menos de dois anos após da chegada do homem a Lua, em julho de 1969, a então perspicaz e incessável Era Espacial, o limiar das conquistas humanas.

A Mangueira abriu sua apresentação causando um grande impacto ao colocar inúmeros aviõezinhos sobre o chapéu de suas baianas, que rodeavam o belo abre-alas da escola exaltando Santos Dummont. O primeiro setor do desfile reviveu a Belle Époque francesa, retratando fielmente as cenas do cotidiano parisiense de 1900. Julinho teve grandes vôos de criatividade ao criar diversos figurinos em Art Nouveau, o que inclui a cenografia do primeiro carro alegórico da agremiação, representando a primavera francesa da virada do século, além de uma belíssima réplica da Torre Eiffel, envolta de balões e dirigíveis. A segunda parte do desfile, cognominado de “Integração Nacional e Continental”, era uma exaltação as possibilidades alcançadas pela aviação de unir várias regiões do planeta pela globalização, na qual o carnavalesco se aproveitou da cultura e do folclore de cada parte do Brasil para elaborar suas fantasias, despontando na segunda alegoria da Mangueira, em alusão a chegada do homem às nuvens pelo 14-Bis. Por fim, a escola lembrou a astronáutica e a corrida espacial humana em uma visão bastante futurista, através de incontáveis estrelas, planetas, comentas, luas, alienígenas e, principalmente, espaçonaves. Apesar de toda a empolgação e criatividade, Mangueira conseguiu apenas um agradável 4º lugar.

Para 1972, Julinho primou pela garra da comunidade mangueirense. As obras na quadra absorviam rapidamente todo o dinheiro da agremiação e a quantia arrecadada nos ensaios era utilizada da forma mais proveitosa possível. Embora nunca tenha faltado bom gosto estético nos barracões, foi necessário mais investimento no chão da escola que em qualquer outro quesito. O enredo Rio, carnaval dos carnavais contava toda a história do carnaval de forma descontraída e irreverente, prometendo grande plasticidade ao público. A Mangueira preparou um desfile de muita empolgação, cantando seu animado samba a plenos pulmões, aliada a sempre excepcional bateria de Mestre Waldemiro. A escola começou sua apresentação falando sobre os festejos pagãos da antiguidade e da idade média, que, mais tarde, dariam origem ao carnaval moderno, com direito a citações aos gregos, egípcios, romanos e venezianos. A Mangueira também lembrou a origem do carnaval brasileiro através de representações do entrudo, do maracatu, dos blocos de sujo e das batucadas dos negros nas senzalas. O último setor do desfile, aberto pelo carro “Carnaval de ontem, de hoje e de sempre”, prestou uma grande homenagem às escolas de samba, frevos, ranchos, baile do Municipal e por fim, personagens da “Commedia dell’Arte”, como o arlequim, colombina e pierrot. Com alegria e muita aptidão, a verde-rosa fez um dos melhores desfiles do ano, conquistando um vice-campeonato, atrás apenas do Império Serrano.

Em 1973, a Mangueira uniu novamente todas as suas forças para conseguir um novo título. A temática abordada pela escola girava em torno dos mistérios e magias da lagoa do Abaeté, na Bahia. A entrada da agremiação na Avenida Presidente Vargas fora majestosa, uma vez que seu abre-alas era elegantissimamente bem elaborado, contando com o escudo da escola e uma bela saudação ao público. Primeiramente, Julinho decidiu falar da paisagem do Abaeté, fazendo alusões à população local e ao bioma típico da região. A Mangueira conseguiu unir com magistralidade todos os elementos culturais da terra com o ecossistema natural da Bahia, transmitindo as diversas imagens do enredo ao público de forma clara e poética. O primeiro quadro do enredo fez referência ao Abaeté indígena, aos primeiros habitantes da lagoa. Houve fantasias representando os caciques, pajés, feitiçarias, vitórias-régias, orquídeas, sereias, além dos deuses Sol e Lua. Julinho também retratou na avenida o Abaeté na visão afro-brasileira, lembrando dos inúmeros ritos e simbologias do candomblé baiano. Foi neste setor da escola onde desfilaram as baianas, simbolizando as lavadeiras de Itapuã, que, pela primeira vez na história da agremiação, vieram vestidas de branco, ao invés do habitual verde e rosa. A partir daí, a Mangueira passou a enumerar as incontáveis lendas do Abaeté, começando pelo reino de Iara, a ninfa das águas, que seduz homens e mulheres com suas românticas melodias e os arrasta para o fundo da lagoa. Logo após, Uauiará, regente dos peixes, recebeu seu destaque na escola, que, nas noites de lua cheia, também é um grande apaixonado das índias, arrebatando-as para baixo d’água. Outro ponto alto do enredo mangueirense foi a exaltação à Dona Janaína, formosa imperadora das águas, conduzida nobremente por cavalos-marinhos pelos mares a fora. Por fim, a verde-rosa lembrou de Ogum e Iemanjá, fazendo alusões às noites da Bahia, quando qualquer pessoa, ao se aproximar da lagoa, é capaz de ouvir o som de tambores e atabaques afro-baianos. A Mangueira realizou, em 1973, um desfile imprescindível, que acabou levantando o terceiro campeonato de Julinho no carnaval carioca.

Baseado no livro “Dicionário do folclore brasileiro”, do antropólogo Câmara Cascudo, o carnavalesco se determinou a assinar o enredo Mangueira em tempo de folclore. A temática fora subdivida em três partes diferentes: as influências culturais indígenas, brancas e negras. Com grande apoio da comunidade mangueirense, a escola lutou ao máximo para preparar uma grande apresentação e conseguir um bicampeonato. A verde-rosa começou seu desfile citando as manifestações folclóricas dos nossos índios. Julinho lembrou em suas fantasias os pagés, sacerdotes, máscaras, borboletas e pássaros da floresta, além das lendas indígenas, como as guerreiras amazonas e a deusa Iara, a mãe d’água. Em seguida, a Mangueira carnavalizou a cultura européia, recém-chegada ao Brasil na época do descobrimento. O carnavalesco buscou sua inspiração nas lendas e histórias contadas pelos marinheiros portugueses em suas grandes navegações no século XVI. Os brancos também foram lembrados por representações das festas juninas, reisados, folias de reis, festejos do divino, bambaquerês, fandangos, balões e bandeirinhas. Seguiu-se daí o maior setor do enredo, alusivo à cultura negra. Julinho retratou da forma mais clara possível o Quilombo dos Palmares, a congada, o maracatu, os sacis-pererês, o Negrinho do Pastoreio, a capoeira, o candomblé, as carrancas, as rendeiras, o boi-bumbá e o príncipe africano Chico Rei. Por último, o carnavalesco decidiu fazer uma miscelânea entre as três raças, resultando em referências ao Zé Pereira, ao samba e ao carnaval carioca. Apesar de uma grande apresentação, a verde-rosa não conseguiu alcançar a 1ª colocação, ficando atrás do Império Serrano, Portela e Salgueiro, a escola campeã daquele carnaval.

Após 11 anos trabalhando como carnavalesco da Mangueira, Julinho se mantém longe da escola por um curto período de tempo. O artista voltou à agremiação apenas em 1977, desenvolvendo o enredo Panapanã, o segredo do amor, uma lenda tupi baseada na paixão entre Jacy (a lua) e Guaracy (o sol), tendo Rudá, o deus do amor, como seu mensageiro. Com uma empolgação invejosa, a Mangueira iniciou seu desfile causando impacto. Ao invés de ter a já veterana Ala dos Duques como comissão de frente, a escola teve a intenção de reviver seus carnavais mais remotos ao colocar personalidades tradicionais como Cartola, Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho, Djalma Santos, entre outros, abrindo sua apresentação, levantando, inclusive, o Estandarte de Ouro do ano de destaque masculino. O primeiro setor do desfile fazia menção à noite, ao reino de Jacy, retratando de forma bastante poética os encantos da floresta, como o canto dos pássaros, os pirilampos, as estrelas e a luz do luar. A segunda parte da escola representou o dia, o reino de Guaracy, citando o alvorecer do sol, as gotas de orvalho, as flores, a terra e os seres da água. O último quadro do enredo referenciou o cortejo de amor ocorrido entre os dois amantes, Jacy e Guaracy, levando Rudá, o ente alado, a demonstrar misticamente ao mundo que somente o amor é a grande força da vida. Julinho confeccionou um grande carnaval, com fantasias e alegorias muito bonitas, coloridas em diversos tons de rosa. Infelizmente, a Mangueira estourou o limite de tempo permitido em seu desfile, perdendo cinco pontos em cronometragem e ficando em 7º lugar, a pior colocação de sua história até então.

Em 1978, segundo registros históricos, a Mangueira estaria completando 50 anos de fundação. Julinho, aliado a figurinista Kalma Murtinho, elaborou seu enredo baseado nesse cinqüentenário. Contando com a força da comunidade mangueirense, uma vez que a temática pedia um apelo emocional muito grande, o carnavalesco preparou um carnaval extremamente simples, porém de um bom gosto visual grandioso. A verde-rosa novamente abriu seu desfile, composto de 2.500 desfilantes, com uma comissão de frente formada por seus sambistas mais ilustres, como Cartola, Carlos Cachaça e Nelson Cavaquinho, apelidada de “Os imperadores do samba”. O carro “Carroceiros do imperador”, contendo carruagens da Família Real, iniciou a primeira parte da apresentação da escola, alusiva aos primeiros habitantes do Morro de Mangueira, os carroceiros que trabalhavam na Quinta da Boa Vista, então residência de Dom Pedro I. Aproveitando-se dos tradicionais verde e rosa em tonalidades bastante fortes, a fim de aproximá-los ao máximo das colorações verde e vermelho, símbolos da Corte Portuguesa, Julinho fez uma brincadeira irônica ao distribuir suas fantasias, colocando somente figurantes negros para retratar os nobres, tal como somente brancos para retratar os escravos. O segundo quadro do enredo fez referência ao panorama social e cultural do morro na atualidade, com direito uma alegoria representando um barraco da comunidade e as baianas homenageando as tias doceiras da Mangueira. A última parte do enredo trouxe uma exaltação à própria escola de samba, lembrando seus sambistas e toda a sua trajetória no carnaval carioca. O desfile fora encerrado por um grande pandeiro com os dizeres “Mangueira é povo, é povo, é povo!”, que futuramente se tornaria um lema da agremiação. Ganhando o Estandarte de Ouro de comunicação com o público, a Mangueira mostrou seu chão no asfalto da Sapucaí. Um desfile excelente, que levou muita gente às lágrimas, inferior apenas ao da campeã, Beija-Flor. A verde-rosa foi vice-campeã.

Para 1979, Julinho escolheu como enredo as histórias contadas a ele em uma viagem a Ilhéus, zona agrícola da Bahia, sobre o plantio e a importância do cacau no Brasil e no mundo. A temática se chamaria Avatar... E a selva transformou-se em ouro, lembrando que, na época da colheita, o verde intenso das plantações se transfigura literalmente no forte dourado dos cacaus, fazendo a floresta se transformar em ouro. Antes de o desfile começar, o compositor Cartola anunciou não participar do carnaval de sua agremiação, alegando não ter fôlego para percorrer toda a avenida em obrigatórios 80 minutos. “Isso não é carnaval! É parada militar!”, protestou o sambista. De qualquer forma, a apresentação da Mangueira fora aberta pela velha guarda, diante de um abre-alas saudando o público e de alas referentes ao Império Asteca, povo descobridor do chocolate. No mesmo setor da escola, também foi lembrada a fidalguia francesa, local onde o consumo de cacau se expandiu em larga escala durante o século XVIII. Com fantasias alusivas aos povos indígenas e suas crenças, a segunda parte do desfile fez uma menção a Amazônia, região nativa do cacaueiro, até despontar o carro “A Transformação”, seguido de descrições da beleza da selva em época de colheita. O terceiro quadro do enredo citou a cultura cacaueira na Bahia, abordando o trabalho sofrido dos camponeses nas plantações, movidos pela ilusão de se enriquecerem com venda do cacau. A verde-rosa realizou uma apresentação simples e empolgante. Contudo, a escola teve problemas com o tamanho exagerado de seus carros alegóricos, o que prejudicou bastante sua evolução. Unida a um samba considerado de muito mau gosto, a Mangueira acabou com a 4ª colocação.

Depois dos desfiles de 77, 78 e 79, Julinho se afasta da confecção dos carnavais da Mangueira, somente retornando à escola em 1986, desenvolvendo o enredo Caymmi mostra ao mundo o que a Bahia e a Mangueira têm, uma homenagem ao músico e compositor baiano Dorival Caymmi. Cotando com um dos melhores sambas-enredo dos anos 80, de autoria de Ivo Meirelles, Lula e Paulinho Carvalho, a apresentação da escola fora iniciada por baianas da lavagem do Bonfim como comissão de frente, seguida de um grande abre-alas com o símbolo da verde-rosa. O primeiro quadro do enredo fez referência à paixão de Caymmi pelo mar, lembrando inúmeras canções do compositor sobre este tema. O carnavalesco se utilizou de acetato transparente para compor as fantasias deste setor, que também apresentou o carro “Jangadeiro”, alusivo à música “Promessa de pescador”, e uma belíssima alegoria com imagens de Netuno e Iemanjá. A segunda parte do desfile retratou as festas de rua de Salvador e os vendedores do Mercado Modelo, até a chegada do carro “Motivos de inspiração de Caymmi”, onde desfilou o homenageado. Julinho não se esqueceu de citar os pratos típicos da Bahia, representados de forma bem objetiva na alegoria “Preta do acarajé”, além de exaltar os orixás do candomblé, com direito ao carro em que desfilou Clóvis Bornay. Com sombrinhas de frevo e elefantes do maracatu, Julinho desenhou todo um setor dedicado ao samba-canção “Dora, rainha do frevo e do maracatu”. A Mangueira terminou seu desfile com um painel com imagens tradicionais de Salvador e a alegoria “O que é que a baiana tem”, em homenagem a Carmem Miranda. Dando um show de samba no pé e desfilando com uma alegria sobre-humana, a verde-rosa garantiu brigar por um campeonato, o que, no final, felizmente acabou acontecendo.

Em 1987, Julinho, inspirado no poema “À procura da poesia”, decidiu homenagear o poeta e cronista Carlos Drummond de Andrade, com o enredo No reino das palavras. Toda a temática fora construída a partir das obras do poeta e o carnavalesco preparou um carnaval bonito e plasticamente simples a fim de passar a mensagem do enredo ao público com muita clareza. Uma forte comissão de frente, formada por alguns dos grandes admiradores do homenageado, como Chico Buarque, João Nogueira, Hermínio Bello de Carvalho e Aldir Blanc, abriu o desfile da escola, aliado a um belo abre-alas. Seguiram-se diversas referências às figuras de Debret e ao próprio carnaval carioca, além de um carro em homenagem à Fazenda dos Doze Vinténs, que pertenceu ao pai de Drummond, em Itabira, onde o poeta nasceu, passou férias escolares e, futuramente, dedicou muitos de seus poemas. Julinho aludiu belamente vários setores de seu desfile às obras “Passeios na Ilha”, “Quixote e Sancho, de Portinari” e “Brincando de brincar”, este último repleto de alas fantasiadas de piratas, arlequins, palhaços, entre outros, representando o Rio de Janeiro dos antigos carnavais. A Mangueira também fez uma exaltação a Zé Pereira, reproduzido esculturalmente em uma alegoria. O carnavalesco retratou o poema “Canto ao homem do povo” com inúmeras fantasias em preto e branco sobre Charles Chaplin, que depois acabou virando um carro com a figura inconfundível do personagem Carlitos e seu cachorro, tendo Laerte Raphael como destaque principal. Aleijadinho foi lembrado por um carro contendo simbolizações dos doze profetas de pedra-sabão, seguido por uma menção ao poema “Carrancas do São Francisco” e pelo carro do Scala, todo em um tom rosa forte com a escultura de um grande palhaço e a presença do saudoso Grande Otelo, rodeado de vedetes. As baianas, com panos de costa verde, encerraram o desfile mangueirense, juntamente a um setor sobre o conto “História de dois amores”, narrando a paixão entre o elefante Osborne e a pulga Pul. Apesar de alguns problemas, como a invasão de pista e a falta de acabamento em algumas fantasias, a Mangueira fez outra apresentação com muita garra, que sacudiu de empolgação toda a Sapucaí, levando a escola a um bicampeonato.

Em 1988, ano do centenário da abolição da escravatura, Julinho desenvolveu um enredo a respeito desse tema, questionando as realidades e ilusões tidas pelos afro-brasileiros desde 1888 aos dias atuais. Com um contingente de 5.000 desfilantes e um belíssimo samba-enredo, considerado um dos melhores de todos os tempos, de autoria de Hélio Turco, Alvinho e Jurandir, a verde-rosa iniciou sua apresentação com uma comissão de frente composta por negros famosos, que superaram os infortúnios da vida e conseguiram prosperar. As primeiras alas se demonstraram muito bem fantasiadas, referentes à vida do negro pré-escravidão, quando ainda eram nobres e guerreiros em suas tribos na África. O segundo quadro do enredo trouxe a transposição dos povos africanos à nossa terra, seguida por uma citação do livro “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre, narrando a vida dos negros como escravos, e um setor alusivo aos ciclos econômicos do Brasil Colonial. O carnavalesco não pode se esquecer de mencionar a figura de Zumbi dos Palmares, representado em uma alegoria pelo destaque Laerte Raphael e que também serviu de inspiração para muitas alas da agremiação, além da própria Princesa Isabel, retratada no carro “Abolição” pela belíssima fantasia de Marlene Arruda, cujo costeiro simbolizava a “Rosa de ouro papal”. Anastácia e a Mãe Preta também foram lembradas, assim como os orixás do candomblé e os antigos vendedores de flores e frutas. Logo após, Julinho apresentou exaltações à cultura negra, ao cortejo do maracatu e ao carnaval, terminando seu desfile com um pequeno setor em homenagem ao negro atual, criticando sua vida sofrida e interrogando sobre sua verdadeira liberdade, que, segundo o próprio carnavalesco, “ontem foi negro escravo, hoje é gari, cozinheira”. A Mangueira realizou um carnaval exuberante, todo em tons rosa suaves, com o verde aparecendo nos detalhes, além de muitos adereços de mão. Com uma animação infinita, a escola brigava afoitamente pelo título, que, entretanto, acabou não se tornando realidade. A verde-rosa não contou com a participação de um dos membros de sua comissão de frente, Martinho da Vila, que havia esgotado suas energias de tanto sambar no desfile de sua agremiação. A Mangueira perdeu um ponto neste quesito e ficou com o 2º lugar, perdendo apenas para a própria Vila Isabel, com o enredo Kizomba, a festa da raça.

Para 1989, Julinho elaborou o enredo Trinca de Reis, uma homenagem aos três grandes reis da noite carioca, Walter Pinto, Carlos Machado e Chico Recarey. Iniciando seu desfile debaixo de uma garoa, a Mangueira tinha seus 4.000 desfilantes extremamente empolgados, cantando seu samba, considerado pela crítica como muito ruim, a plenos pulmões. A comissão de frente, formada por vedetes, fazia uma exaltação aos teatros de revista, que abriu passagem para o primeiro quadro do enredo, alusivo ao produtor Walter Pinto. Após uma seqüência de alas representando índios, piratas, ciganas e espantalhos, desfilou o homenageado em uma alegoria ao lado da veterana vedete Virgínia Lage. A segunda parte do desfile lembrou os espetáculos do coreógrafo Carlos Machado, que desfilou no carro “Cassino da Urca”, um dos cassinos mais badalados do Rio de Janeiro. No mesmo setor, apresentou-se o belo carro referente ao show “Carrossel”, um dos pontos altos do desfile mangueirense. Aberto por alas fantasiadas de espanholas, o último quadro do enredo citou o empresário Chico Recarey, um dos acusados do trágico naufrágio do navio “Bateau Mouche” na Baía de Guanabara, que provocou a morte de dezenas de turistas na noite de réveillon de 1988. A verde-rosa terminou seu desfile deixando claro que não fez uma apresentação a altura de suas tradições. O carnavalesco errou muito na mão ao desenvolver suas fantasias, muitas muito mal acabadas, e, principalmente, suas alegorias, que possuíam desenhos retos, rústicos e insulsos, de uma visão pouco agradável. Tirando um ruim 11º lugar, Julinho se despede de vez da Mangueira.

Em 1990, Julinho ainda auxiliou na confecção dos desfiles da Mangueira e da Paraíso do Tuiuti, porém já havia deixado de ser carnavalesco de ambas as agremiações, deixando este legado a seu filho. O artesão, cenógrafo e figurinista foi um autodidata eficiente, sempre reaproveitando uma grande parte de seus trabalhos nas escolas de samba e revendendo inúmeras de suas esculturas para gente de todo o Brasil. Em abril de 1994, o artista, infelizmente, vem a falecer. Julinho foi um sujeito magro, despojado, de bigode e cabelos grisalhos, pouco compridos, sempre cobertos por sua inconfundível boina, jeito pelo qual Fernando Pamplona sempre o descreveu. Era um artesão de primeira linha, conhecia quase toda a comunidade de Mangueira pelo nome e sabia de cabeça quem tinha condições de desfilar de rei ou de escravo, fazendo sempre mais que o possível para com o desenvolvimento de seus carnavais. Baseava-se na simplicidade não só ao confeccionar seus carnavais, como também um meio de vida. Fazia a Mangueira ser mais Mangueira e o carnaval ser mais carnaval.

HISTÓRICO: Começou a trabalhar para o carnaval já na década de 50, quando fundou a Paraíso do Tuiuti
1954 a 1990: Paraíso de Tuiuti
1963 a 1974: Mangueira
1977 a 1979: teve uma outra passagem momentânea à Mangueira
1986 a 1989: retorna à Mangueira pela última vez

MARCA: Simplicidade. Júlio Mattos sempre teve a característica de nunca levar fantasias e adereços desnecessariamente luxuosos para avenida, investindo mais na leveza e na naturalidade de seus trabalhos, apesar de sempre trazer um conjunto visual bem acabado.

CAMPEONATOS: Sete ao todo: 1967 (Mangueira, com O mundo encantado de Monteiro Lobato), 1968 no Grupo 1 (Mangueira, com Samba, festa de um povo) e no Grupo 3 (Paraíso do Tuiuti, com São Cristóvão, bairro imperial), 1973 (Mangueira no Grupo 1, com Lendas do Abaeté), 1986 (Mangueira no Grupo 1, com Caymmi mostra ao mundo o que a Bahia e a Mangueira têm), 1987 no Grupo 1 (Mangueira, com No reino das palavras – Carlos Drummond de Andrade) e no Grupo 3 (Paraíso do Tuiuti, com Força viva do samba, pagode)

VICES-CAMPEONATOS: Seis ao todo, todos na Mangueira: 1963 (Exaltação à Bahia), 1966 (Exaltação à Villa-Lobos), 1969 (Mercadores e suas tradições), 1972 (Rio, carnaval dos carnavais), 1978 (Dos carroceiros do imperador ao palácio do samba) e 1988 (100 anos de liberdade, realidade ou ilusão?)

ESTANDARTES DE OURO: Apenas um: 1978 (de comunicação com o público).

PS: na contagem dos “Estandartes de Ouro”, foram incluídas também premiações que não envolve somente o carnavalesco, mas também a escola como um todo, como “Melhor escola” ou “Comunicação com o público”

FOTOS DE JULINHO MATTOS

 

Imagens do carnavalesco na quadra da escola em meados de 1979

 Comovido durante extraordinário desfile da Mangueira de 1987

DESFILES DO JULINHO

Dona Mindinha, esposa de Villa-Lobos, assistindo emocionada ao desfile de 1966

As baianas mangueirenses no antológico desfile da escola de 1967
O suntuoso bicampeonato da Mangueira de 1968
O contingente exagerado da escola em 1969

O belo e ousado desfiles de 1970 que rendeu o 3º lugar

Apresentação de 1972 que rendeu à Mangueira o vice-campeonato

O abre-alas do campeonato histórico de “Lendas do Abaeté” em 1973

As baianas verde-rosas de 1974

O lindíssimo conjunto visual da Mangueira de 1977

A emoção empossada dos componentes da escola em 1978

O fantástico bicampeonato verde-rosa, iniciado em 1986
E concluído em 1987, ficando para sempre na memória dos sambistas cariocas

O extraordinário vice-campeonato mangueirense de 1988

A bela apresentação da Paraíso do Tuiuti em 1989

 

*Agradecimentos a todo o Departamento Cultural da Mangueira, em especial ao senhor Guerra Peixe, o qual conseguiu o possível e o impossível ao me enviar de forma maçante, porém demasiadamente interessada, inúmeras fotos e informações cruciais para resolução desta ficha, preservando o histórico do carnavalesco Júlio Mattos e, principalmente, do próprio carnaval carioca em geral

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