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Coluna do João Marcos

O COMENTARISTA E O JAPONÊS BÊBADO

26 de fevereiro de 2012, nº 52, ano VII

Não participo de diretorias, comissões ou qualquer cargo em escola de samba. Minha personalidade não conseguiria lidar com a forma como as escolas são organizadas. Só aceitaria algum convite se me fosse dado poderes ilimitados. Eu me conheço: não teria paciência com as decisões equivocadas de terceiros, erros bizarros e incompetência. Na primeira sacanagem, eu daria no pé.

Uma única exceção eu abri uns anos atrás, para um amigo que me pediu para ajudar na harmonia de uma escola de samba onde ele era um dos diretores. Nada de muito complexo – com o organograma na mão, eu percorreria toda a escola na armação e auxiliaria na organização das alas.

Cheguei à Presidente Vargas, mas ainda era muito cedo e o pessoal estava finalizando os carros alegóricos. Quando a escola começou a se armar, vi que o bicho tinha pegado – as fantasias eram simples para os padrões do grupo e o contingente de componentes estava reduzido. O samba era uma bomba daquelas que se o compositor tem um pouquinho de autocrítica, nunca mais escreve uma linha.

Meu amigo começa a caçar turista para vender fantasias na hora. Num momento, chega empolgado: “consegui vender para dois holandeses!”. E eu pensando comigo: “imagine, uma escola pequena de acesso, com um samba horroroso, e repleta de turistas... vai ser uma beleza...”.

Outro amigo que convoquei para ajudar começa a organizar as alas. Talvez acostumado com escolas maiores, tem uma postura mais enérgica, enfileirando todo mundo aos berros. Evidentemente, assim que ele saía, o pessoal deixava a fila e ia sentar na calçada. “Gente, por favor, vamos voltar para a fila!”. Uma senhora chega furiosa e começa a falar comigo: “se esse cara der mais um grito, a gente vai enfiar a porrada nele!”. Eu: “calma, minha senhora, é que a escola tá para entrar na avenida”. Ela: “Eu desfilo há 10 anos, somos comunidade, a escola é de familia, nunca vi isso!”.

E é verdade, ela nunca tinha visto isso. Eu fiquei observado o trabalho do pessoal de apoio. Eles andam para lá, andam para cá... e andam para lá e para cá de novo. A escola começa o desfile sem orientação alguma, uma tremenda bagunça. As filas se dissolvem na curva da Marquês de Sapucaí. E aí vem a ordem: “pega aquela ala ali!”. E lá vou eu, adentrando a avenida tomando conta de uma ala.

Nunca tinha feito isso. Comecei a procurar referências. Os diretores das outras alas bebiam, tiravam fotos para os componentes, conversavam entre si. Tudo menos organizar o que quer que fosse. Pensei em fazer o mesmo, mas meu senso de dever não me permitiu. E o pior, um dos turistas para quem a fantasia foi vendida em cima da hora estava justamente na minha ala.

Era um japonês. Estava bêbado como um gambá, todo vermelho e completamente alucinado. Não falava uma palavra em português. O japa puxava a fila no canto direito, onde eu estava. Ainda aturdido com a velocidade das coisas, não dei conta, mas um buraco começava a se formar justo na minha ala – o japonês se jogava para o público, ficava para trás, o povo atrás dele não ia para frente e ele ia da direita para a esquerda prejudicando quatro ou cinco fileiras. A ala ficou toda torta na avenida. Chamo uma pessoa perto dele, que o cutuca. Dou as orientações: “vem pra cá, fica aqui!”. O japa tenta fazer o que eu peço. 30 segundos depois, ele invade a ala da frente, que começa a se embolar com a minha. Cutucada no japonês, reorganizo a ala e seguimos em frente.

Durante o tempo todo, foi isso. Virei diretor do japonês. Na apuração, a escola foi bem, teve uma colocação até surpreendente. Não ganhou um dez sequer em harmonia. Nunca tive coragem de ler as justificativas com medo de ter sido um dos culpados. E conclui que o meu lugar mesmo é de comentarista de samba-enredo e que esse negócio de trabalhar no carnaval não é para mim.

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As cenas lamentáveis da apuração de São Paulo explicam muitas coisas, dentre elas as razões pela péssima qualidade dos sambas dos últimos anos. O aumento da visibilidade do carnaval da cidade não é fruto da profissionalização das escolas - é apenas consequência do marketing bem feito pela televisão para vender os desfiles que vem transmitindo. E com mais dinheiro, as escolas podem investir em alegorias e fantasias mais luxuosas.

Mas vendo as imagens, eu só fiquei pensando - são esses diretores e presidentes que escolhem os sambas. Esses ‘caras’ que desrespeitam leis, que partem para cima da polícia, que incitam a violência, são eles quem tem a última palavra no desenvolvimento artístico do carnaval de São Paulo. P.ex., a Império de Casa Verde, do diretorzinho que rasgou as notas, escolheu um samba com o seguinte verso: “Tô nessa onda de esquimó e vou zuar!” Agora, fica mais fácil entender a razão.

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O resultado da LESGA, como sempre, presta enormes desserviços para o carnaval. Depois do desfile arrebatador do Império Serrano, o título da Inocentes foi recebido com tristeza pelo mundo do samba, principalmente pelos boatos que circularam durante o ano todo. Na terça anterior à apuração, a jornalista Elisa Fernandes anunciou em seu Facebook que estaria ocorrendo um churrasco em comemoração pela ascensão da escola ao Grupo Especial. A situação é tão alarmante que o Ministério Público parece ter aberto inquérito para apurar as irregularidades e a Prefeitura, além de ainda não ter homologado o resultado, disse que o julgamento voltará a ser organizado pelo governo municipal. Há quem defenda até a anulação do resultado.

E o pior é que as notas não deixarão nenhum parâmetro para que as escolas possam melhorar para o ano que vem. Os sambas que tomaram notas 10 de todos os jurados, Santa Cruz e Tuiuti, tiveram desempenhos pífios na avenida. O da Santa Cruz, então, é um atentado ao bom gosto e afundou totalmente a escola. Será que os jurados levaram a sério a piada e a gozação ao samba, elevado a Obra-de-arte de forma gaiata em alguns fóruns de carnaval?

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Por mais que se critique, o resultado da LIESA é ainda, de longe, o mais coerente. Os jurados de samba, p.ex., estão acertando na diferenciação entre os melhores sambas e os piores. As boas notas do samba da Portela, Beija-Flor, Mangueira e Vila são a prova disso.

A nota do samba da Imperatriz sofreu contaminação pelos outros quesitos da escola – foi um desfile muito complicado e os problemas desanimaram o componente. No desfile, ficou claro que a parte do “Kao Kabecile” seria um refrão bem melhor e mais forte do que o refrão que os compositores acabaram utilizando. Com as notas de Vila e Portela, sambas que saem do padrão dos dois refrãos, fica o recado – as escolas estão liberadas para sambas com formatos mais livres. Que a quantidade de refrãos seja determinada pelo desenvolvimento da melodia e não por regras tolas.

O samba da Vila teve um bom desempenho na avenida. De forma inteligente, em nenhuma passada o carro de som deixou o contraponto do final da segunda para a resposta do público, o que não prejudicou a execução. Continuo achando que o samba dá uma caída neste finalzinho, mas a força do restante é incontestável e teve grande efeito na avenida.

A grande ressalva que eu ainda faço ao julgamento é que os jurados precisam diferenciar mais nas notas o samba ruim do samba bom. Eles conseguem ver, p.ex., que o samba da Imperatriz é melhor do que o da Porto da Pedra, mas dão 9,8 para o primeiro e 9,7 para o segundo. E a diferença de qualidade é muito maior e deveria ser traduzida na nota. Mas este fenômeno recente, dos jurados perceberem os melhores sambas, pode ter sido um dos motivos para a melhora sensível da safra de 2012 em relação aos anos anteriores. Esperemos que esta evolução continue para 2013.
 
Abraços a todos!

João Marcos
joaomarcos876@yahoo.com.br