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Coluna do João Marcos

AS CINZAS DA MEDIOCRIDADE

16 de fevereiro de 2011, nº 44, ano VI

Meu parceiro Ricardo Delezcluze está assinando a coluna “Samba Alternativo” no site SRZD-Carnavalesco. Pelos artigos já publicados, parece que o foco serão as escolas menores, dos Grupos C, D e E do Rio, que atualmente desfilam na Intendente Magalhães, em Campinho. Conhecendo a figura, acho que ninguém poderia fazer melhor este papel – estas escolas pequenas precisam ser apresentadas para o grande público através de um olhar generoso, como o de Delezcluze.
 
Eu até tento fazer um papel semelhante, alertando para sambas de pequenas escolas de cidades do interior do Rio, São Paulo e o carnaval do restante do Brasil. Quando vejo algo bonito, diferente, um samba ousado, uma letra poética, uma melodia que traga alguma emoção, eu faço questão de divulgar.
 
E verifiquei que pouco falei do carnaval da Intendente aqui. Serei franco: não é à toa. O carnaval da Intendente é muito complicado do ponto de vista artístico. Podemos até dar mil descontos para isso: muitas escolas, p.ex., estão em áreas muito carentes, dominadas pelo tráfico, as “faixas de Gaza” do Rio de Janeiro. São escolas praticamente inviáveis, que dificilmente teriam como evoluir. Para estas, ter um contingente de centenas de pessoas desfilando já é uma vitória.
 
O que não suporto é escola que poderia ser grande e é arrasada pela mediocridade. A mediocridade é uma doença do carnaval atual e, no Rio, com seus “doutores” de carnaval, que criaram fórmula para tudo, ela está presente em larga escala, em todos os sentidos.
 
Vou dar um exemplo de como a mediocridade pode ser encontrada nas escolas da Intendente: sinopse da Acadêmicos do Engenho da Rainha, de 2011. Um enredo homenageando o atual Presidente da Portela. Segue um trecho da sinopse. Note bem o ano para o qual a sinopse foi escrita: 2011.
 
Para dar seguimento, após o Carnaval de 2005, às idéias representadas pelas Metas do Milênio, está sendo realizado um Seminário denominado Implantação das Metas do Milênio em Oswaldo Cruz , Madureira e Bairros Adjacentes, iniciado no dia 05 de novembro de 2005 com a visita do presidente Lula à PORTELA”.
 
Logo em seguida, temos o seguinte trecho:
 
Com tais objetivos o Seminário deverá ter prosseguimento a partir de março de 2005
 
É neste ponto que eu não consigo ser como o Ricardinho. Quando eu vejo isto aí, uma sinopse bastante divulgada na internet, de uma escola que por anos ficou no segundo grupo e beliscando posições próximas da ascensão ao Grupo Especial, não consigo ser romântico. Essa sinopse foi supostamente escrita por alguém e supostamente aprovada por mais alguns. Como reclamar do descaso do poder público diante disto? Como, diante disso, pode se falar em subvenção baixa (e as escolas dos Grupos C, D e E do Rio recebem subvenção maior do que muito carnaval de Grupo Especial pelo Brasil a fora)?
 
Analisemos algumas escolas tradicionais que estão na Intendente Magalhães. Peguemos a Unidos de Lucas, fruto da fusão da Unidos da Capela (campeã do Grupo Especial de 1960) e Aprendizes de Lucas (escola da onde saiu ninguém menos do que Elton Medeiros). A Unidos de Lucas era considerada a quinta força do carnaval do Rio até o início dos anos 70. Nos anos 80, era uma escola que sempre disputava o Grupo de Acesso entre as primeiras colocadas, sempre batendo na trave. Hoje se encontra no Grupo E, o último grupo das escolas de samba.
 
Nos anos 80, a escola vinha como enredos como Vinicius de Moraes, Ataulfo Alves, Dircinha e Linda Batista. Foi três vezes consecutiva terceira colocada no Acesso. Aí, começou com enredos de qualidade duvidosa – em 1994, a Cidade de Conservatória levou a escola a um décimo segundo lugar no Acesso. Veio a queda para o terceiro grupo e enredos sobre Bernard do Vôlei e Agnaldo Timóteo. Nos seus últimos anos, apelou para reedições. Deu adeus a Sapucaí com um enredo sobre o Piauí. Nos dois últimos anos, duas quedas consecutivas com dois enredos cansadíssimos, que já foram repetidos um bilhão de vezes no carnaval: reciclagem e cerveja.
 
Trajetória parecida fez a queridíssima Unidos da Ponte. E se você analisar bem, o mesmo aconteceu com a Unidos do Cabuçu, a Em Cima da Hora e o Arrastão de Cascadura, dentre outras. Chegou um momento em que elas apostaram na mediocridade e decaíram para o que são hoje.
 
E quando falo em mediocridade, não falo só em sinopses e enredos. Algumas disputas de samba de escolas da Intendente são inacreditáveis. Você vai numa final, estão concorrendo um samba ótimo, um samba mediano e um samba trash e sem sentido. Vai dar o samba trash e sem sentido. As poucas pessoas presentes nas finais olham aquele cenário e ficam perplexas. Aí, você conversa com os diretores, conversa com a harmonia da escola, pergunta o que diabo aconteceu e percebe que houve uma escolha deliberada, que a escola queria um samba medíocre – “aquele samba é lindo, mas é para a Beija-Flor. Samba de Intendente é isso aí”.
 
E este acaba sendo o cenário. O carnavalesco copia a sinopse do Wikipédia porque não sabe escrever e concatenar idéias. Muitas vezes, é um garoto saído dos terríveis cursos de carnaval das faculdades mercenárias que se multiplicam por aí. A escola não tem muito dinheiro e recebe esculturas e materiais das maiores para reciclar e, por isso, tem de fazer desfiles genéricos. Os sambas são lixos, seja por eliminatórias eivadas de sacanagem, seja por mentalidade pequena de seus diretores na escolha. A comunidade desiste da escola. Ela morre e vira cinzas.
 
Nas escolas “medianas”, aquelas que ficam nas últimas posições do A, no B ou nas primeiras colocações do C, a coisa não muda muito de figura. Como elas têm mais dinheiro, podem fazer alguns luxos. Grande parte, p.ex., monta comissão de carnaval capitaneada por um nome forte de escola do Especial. Isto também é muito comum em algumas escolas de fora do Rio – o presidente contrata um cara da comissão de carnaval de uma grande escola do Especial e acha que está trazendo um profissional de ponta. Só que este cara, que realmente é bom, vai ficar 99% do seu tempo na escola do Especial do Rio. A escola “mediana” vai ficar com a sobra. O compositor do Grupo Especial vai fazer o samba para escola mediana (e para a de fora do Rio) e a obra não vai ter o mesmo nível do samba da escola do Grupo Especial – para a escola mediana, ele pega os sambas antigos dele que perderam, reutiliza alguns trechos melódicos genéricos, faz uma colcha de retalhos e, em 15 minutos, o Frankenstein está formado.
 
E a mediocridade está no Grupo Especial e na LESGA também. Peguemos este incêndio que consumiu os barracões de Grande Rio, Ilha e Portela. Todos nós ficamos tristes com o ocorrido, não há como não lamentar. Não é a primeira vez que algo desse tipo acontece. Aliás, um dos momentos mais tristes que eu vi na Sapucaí foi no Grupo B de 1996, quando a Mocidade Unida de Jacarepaguá perdeu seu carnaval devido às enchentes do Rio de Janeiro. Mais do que perder fantasias e alegorias, a comunidade da escola viveu uma verdadeira tragédia, com dezenas de mortos e desabrigados. A escola foi obrigada a desfilar e seus componentes entraram sobre protesto, ao som da marcação de um surdo, sem sambar e sem cantar, muitos chorando de tristeza. Segue um trecho do desfile: 


O que aconteceu com a escola, que sofreu muito mais do que qualquer uma das três da LIESA? Foi rebaixada sem dó nem piedade. Não teve prefeito na televisão para defender a escola da Cidade de Deus.
 
Não estou dizendo que Ilha, Grande Rio e Portela devam ser rebaixadas. No entanto, o acidente, que serviu para fins demagógicos pelo Prefeito do Rio de Janeiro, também serviu como desculpa para as escolas manterem seu status quo e não correrem riscos. Explico: queimaram-se as fantasias; queimaram-se as alegorias; mas o componente está vivo. As escolas poderão sambar, cantar, evoluir; o mestre sala e a porta-bandeira poderão dançar; a comissão de frente poderá se apresentar; a bateria poderá tocar seus instrumentos. O desfile das escolas de samba é mais do que visual.
 
No entanto, não há interesse num carnaval não visual. Sim, porque é mais fácil você fascinar pelo visual do que passar um sentimento ou fazer um samba cair nas graças do povo. Por isso, as escolas valorizam o ‘visual’, porque é mais fácil competir no luxo do que na emoção. É mais interessante fazer um carnaval baseado em premiar quem consegue captar mais dinheiro e patrocinadores do que valorizar a arte.
 
O incêndio foi utilizado como pretexto para que ninguém da LIESA corra risco. As escolas que competem não perderão para o samba no pé; as que sofreram com o incêndio (e duas das três escolas poderiam se recuperar caso seus presidentes quisessem se esforçar para competir, até porque receberão ajuda do Município) não correrão risco de cair; as doze escolas e seus presidentes estarão garantidos e receberão gordas subvenções no ano que vem. Tudo está bem amarradinho, na mesma mentalidade que fez com que a LIESA se tornasse um grupo praticamente fechado, que criou a regra vergonhosa do rebaixamento de apenas uma escola por ano.
 
É uma mentalidade que garante escolas ricas e felizes, mas que privilegia a falta de qualidade e a mediocridade. A mentalidade medíocre que afasta o samba do povo, das rádios, que faz os CDs terem vendagens pífias (sim, porque nenhum artista tem tanta propaganda quanto as escolas de samba, com as vinhetas tocando o dia todo na televisão. E ainda falam que os sambas atuais não “pegam” por falta de divulgação. Você já viu vinheta com cada música do CD do Zezé Di Camargo e Luciano de hora em hora na programação de qualquer emissora de televisão?)
 
O carnaval do Rio poderia renascer das cinzas. Mas, para isso, teria de fazer como o mestre Martinho da Vila ensinou, valorizando a cabrocha sambando, a cuíca roncando, a viola e pandeiro, mostrando para todos que o papel das escolas de samba é sambar na avenida.
 
Quando a LIESA definiu que quem perdeu parte do seu ‘visual’ não pode competir, mostrou a importância que dá para o sambista. Pegou as cinzas das escolas de samba e, junto com a Prefeitura, depositou tudo em latas de lixo. Os deuses da mediocridade ficaram mais felizes do que nunca.
 
Abraços a todos!