PRINCIPAL    EQUIPE    LIVRO DE VISITAS    LINKS    ARQUIVO DE ATUALIZAÇÕES    ARQUIVO DE COLUNAS    CONTATO

COMUNIDADE DO SAMBA

COMUNIDADE DO SAMBA

PRESIDENTE Guilherme Couto
CARNAVALESCO Lucas Vieira
INTÉRPRETE Thiago Pereira
CORES  Azul e Branco
FUNDAÇÃO 19/03/2017
CIDADE-SEDE São Paulo – SP
SÍMBOLO Pessoas de todos os povos tocando pandeiro
FACEBOOK Link

A azul e branco de São Paulo, logo em seu primeiro desfile em 2017, obteve o acesso com o 4º lugar no Grupo B, integrando o Grupo A em 2018.

Ano

Enredo

Colocação

2018 Haiti. Uma pátria nascida da liberdade jamais se curva às mazelas da vida não desfilou
2017 Eu tenho um presente para você! 4º (B)

SINOPSE ENREDO 2018


Haiti. Uma Pátria Nascida da Liberdade jamais se curva às Mazelas da Vida

Sinopse:

“O haitiano é, acima de tudo, um forte.”

Através desta paráfrase da icônica sentença do clássico literário brasileiro “Os Sertões”, a ARV Comunidade do Samba dá início à narração de seu desfile sobre o Haiti para o Carnaval Virtual 2018.

No que toca a enredos carnavalescos sobre países, eles em sua grande maioria se referem à cultura daquele lugar ou às belezas de paraísos turísticos. Nosso enredo não é nenhum destes. É somente a pura história da resistência haitiana aos infortúnios colossais que a crueldade da vida lhes atirou.

A história haitiana começa, assim como várias outras nações do continente americano, com a chegada dos exploradores espanhóis em suas embarcações. Chegam, criam assentamentos, conhecem os nativos, os recursos do lugar.

A história haitiana termina menos de quarenta anos depois, quando as doenças trazidas pelos europeus e a cobiça infinita daqueles homens novos já haviam exterminado praticamente todos que ali moravam. Sem seus legítimos donos, o território da ilha de Hispaniola tornou-se nada mais que um campo de guerra disfarçado, onde espanhóis e seus inimigos viam apenas interesse financeiro, queimavam assentamentos, matavam até mesmo seus próprios aliados, tudo em prol da ganância cega que esquecia aqueles que ali moravam.

E quem estaria lá para resistir às mazelas da vida?



Mais de um século se passou desde a chegada dos colonos, e neste meio tempo o Haiti foi nada mais do que terra de exploração monetária, assentamentos e guerras. Os franceses tomaram o norte e o oeste da ilha, enquanto os espanhóis se afastaram deles indo para leste. Nascia assim Saint-Domingue, a colônia francesa que posteriormente viria a se tornar o Haiti.

Saint-Domingue era chamada de Pérola das Antilhas pelo lucro enorme que proporcionava aos franceses. Uma parte enorme de sua produção ia parar nas mesas dos europeus. E uma ilha tão produtiva assim precisava de uma quantidade imensa de mão-de-obra. Sem problemas para os homens brancos. Bastava importar a mão-de-obra escrava da África.

Os africanos tornaram-se a nova população do Haiti com o passar do tempo. Mesmo com todo o sofrimento que os donos de escravos proporcionavam, destruindo seus “produtos” como se fossem peças substituíveis e sempre importando mais para substituir aqueles que morriam, afinal, com tanta crueldade, era quase impossível que os escravos gerassem descendentes. Ainda assim, por várias gerações, eles resistiram contra as crueldades estabelecidas pelo Code Noir.

Alguns escravos conseguiam fugir dali e viviam como quilombolas livres. Pregavam suas religiões e atacavam as terras dos opressores. Contos como a história de Mackandal, um escravo que tinha apenas um braço e ensinava seus companheiros a levantarem-se contra seus donos, inspiravam medo nos escravocratas. A religião dos negros, o vodu, era temida e foi mais reprimida do que nunca. Era o sinal de que um levante poderia começar a qualquer hora.

E quando a França, a pátria que controlava aquela terra, teve sua própria revolução em 1789, os haitianos sentiram a sede pela liberdade. A importação massiva de escravos fez com que seus números fossem infinitamente maiores do que os dos homens brancos que os dominaram. Eles tentaram a solução diplomática, liderados pelo mulato livre Vincent Ogé. Não foram ouvidos e Ogé virou um mártir, morto na Roda.

Foi a última gota. Já estava na hora de retaliar contra as mazelas da vida.



Meados de agosto de 1791. Um houngan de nome Dutty Boukman anuncia o início do movimento de liberdade. Milhares de escravos – não, milhares de haitianos – marchavam rumo ao campo de batalha, sem medo da morte, sabendo que aqueles que um dia habitaram esta terra, assim como seus deuses, estariam com eles. Fizeram as plantações onde eles eram nada mais que objetos virarem infernos colossais e devolveram aos seus donos o ódio, o rancor e o desrespeito com que foram tratados por muitas décadas.

Tudo que desejavam era que fossem tratados como cidadãos. Mas os homens brancos resistiam. Não queriam perder o direito de controlar aqueles que consideravam inferiores. Inimigos da revolução apareciam para tentar restabelecer a escravidão na ilha de Hispaniola. Anos se passaram de lutas não só contra as elites francesas, mas contra os ingleses que tentavam tomar a ilha para si e os espanhóis que recusavam-se a aceitar a abolição da escravidão.

Algum tempo depois, quando parecia que a guerra estava vencida, os franceses voltaram para clamar novamente o território que acreditavam ser deles. Sob as ordens do governo napoleônico, eles enganaram o líder dos haitianos, Toussaint Louverture, com falsas promessas de que não restaurariam a escravidão caso o Haiti aceitasse o cessar-fogo. Sentindo-se traídos, os haitianos levantaram as armas novamente. A crueldade de seus inimigos era ainda mais inumana do que na época antes da revolução, mas a vitória estava tão próxima.

E ela veio. A última batalha, em 18 de novembro de 1803, teve uma vitória implacável das forças de negros, mestiços e mulatos que ali moravam e que fizeram daquela ilha, outrora habitada por índios, transformada em campo de guerra pelos colonizadores, sua nova pátria. Os franceses se renderam, e em 1º de janeiro de 1804, (re)nascia o Haiti. A nação que nasceu de uma revolta de escravos clamando por liberdade.

E que nunca mais iriam se curvar às mazelas da vida.



Ou tentaria não se curvar. Os grupos que comandavam o Haiti eram compostos por pessoas que nunca haviam sentido o gosto da liberdade antes. Ao provar daquele elixir etério que era o direito de ir e vir, eles ficavam sedentos por mais, pelos seus direitos plenamente cumpridos. Seus líderes não eram pessoas nascidas em berços de ouro que tiveram livros e ideias de gênios da humanidade à sua disposição. O período após a revolução foi incrivelmente turbulento.

Líderes assumiam, líderes eram depostos, líderes morriam, líderes fugiam. Conflitos de opiniões dividiam um povo que trabalhara por muito tempo para que não precisasse mais sofrer. E alguns povos ainda não haviam aceitado a liberdade daqueles ex-escravos mais de cem anos depois da revolução.

Franceses cobravam uma dívida colossal, alegando que deveriam repôr a propriedade perdida pelos levantes. Juntamente aos americanos e ingleses, impunham aos haitianos um embargo comercial que dificultava muito a vida de seus habitantes. Aquela terra que fora chamada de “Pérola das Antilhas” já não era mais uma pérola. Era somente um amontoado de pessoas cujo único desejo era a paz e a liberdade.

Porém, para os gananciosos lordes de outras nações, isso não era relevante. No começo do século XX, os Estados Unidos ocuparam o Haiti, sob a justificativa de que os credores americanos estavam impacientes com as dívidas dos haitianos. Os novos invasores prometeram que seria uma ocupação para reestabelecer a paz e a ordem, mas suas verdadeiras cores logo foram mostradas. Uma vez mais, os haitianos eram vítimas do racismo e da opressão. Os verdadeiros números do governo americano sobre os locais eram ocultados e as revoltas falhavam.

Na década de 30, os EUA, seguindo a Política de Boa Vizinhança do presidente Franklin Roosevelt, decidiram deixar o Haiti. Porém, a tão desejada paz ainda estava longe de ser alcançada. Uma política movida por governantes de ambição extrapolada levou a uma sucessão de governos eleitos e depostos. Juntas militares tomavam o poder constantemente para promover novas eleições. E foi esta situação instável que levou os haitianos a enfrentarem a tirania de Papa Doc.

Papa Doc foi um monstro. Até para os haitianos, que tanto sofreram na mão dos opressores, o que François Duvalier fazia era terrível. Além da repressão constante e da mão de ferro, a era Duvalier ficou conhecida por virar a própria base da liberdade haitiana contra eles. O vodu, que no passado inspirou medo nos europeus colonizadores, agora era usado como arma para manter a população oprimida. Os Toutons Macoutes, os bichos papões do vodu, agora eram inimigos cruéis da população. O homem que fazia a situação haitiana voltar séculos no tempo era um homem negro que apoiava os movimentos de liberdade. E mesmo após sua morte, seu governo ainda oprimia.

Como uma pátria assim poderia resistir às mazelas da vida?



O Haiti resistiu. A ditadura de Duvalier, sucedida por seu filho, teve seu fim em fevereiro de 1986. Foi seguida por um período ainda razoavelmente instável, com mais um golpe de estado, intervenção de forças militares da ONU e muita pobreza, mas ainda assim, um período de alívio, dado todo o sofrimento do povo haitiano.

Até hoje, com todo o caos político e um passado coberto de profundas cicatrizes, o Haiti sofre. É um dos países mais pobres do mundo, ao ponto de que muitos de seus cidadãos são forçados a vender e consumir biscoitos feitos de barro. Aqueles que vivem nas classes mais miseráveis dessa terra não têm dinheiro suficiente para comprar um prato de comida e são forçados a alimentar-se da lama, podendo contrair milhares de doenças.

Doenças essas que atacam facilmente a população local. A falta de investimentos na educação combinada com a situação de subnutrição de muitas pessoas resultam em corpos frágeis, incapazes de responder aos perigos de organismos invasores. Empobrecidos e presos no ciclo da pobreza, parece não haver esperança para os haitianos mesmo com a paz tão esperada se aproximando.

Ainda assim, apesar dos castigos impostos pelo tempo, pela ganância da humanidade, pela nossa incapacidade de amar ao próximo e até mesmo pela sua localização geográfica, que o torna alvo fácil de terremotos devastadores, o Haiti não se rende. Não se rendeu e não se renderá. O haitiano sofre e luta ferozmente todo dia apenas para manter-se vivo, mas não deixará sua nação, construída há mais de 300 anos pela revolta daqueles que buscavam a sua liberdade, ser enterrada pelos acasos cruéis que a vida lhes reserva.

O brasileiro que hoje lê esta sinopse pode não perceber o quão cruel é o passado do Haiti. Um mero texto jamais será capaz de transmitir completamente a injustiça e os horrores pelos quais o Haiti passou. Ainda assim, em todo o sofrimento desta história contada por nós, pode-se tirar uma lição valiosa de resistência. O povo brasileiro hoje passa por um momento apertado, onde as elites ignoram as necessidades da população em prol da própria riqueza, parecendo não entender o poder que as massas têm. Nações ricas dificilmente teriam a mesma carga emocional que o Haiti tem para passar esta mensagem. Por isso, apesar de ser o país mais pobre das Américas, sob a bandeira haitiana, a ARV Comunidade do Samba apresenta um desfile para lembrar-nos que o nosso sofrimento e a nossa resistência, um dia, serão recompensados.

Afinal, mesmo estando em um estado de pobreza, o Haiti vem passando por um período de paz e recuperação após o terremoto de 2010.

O Haiti é uma pátria nascida da liberdade.
E uma pátria nascida da liberdade jamais se curva às mazelas da vida.

Glossário:

– Code Noir: Decreto do Rei Luís XIV que regulamentava os limites que deveriam ser impostos aos escravos negros.
– Morte na Roda: Método de execução antigo que consistia em amarrar o condenado numa estrutura em formato de roda e esmagar seus membros com maças.
– Houngan: Padre da religião vodu.
– Política da Boa Vizinhança: Política americana que pregava o não-intervencionismo nos assuntos políticos de outros países da América Latina.
– Papa Doc: Literalmente, “papai doutor”. François Duvalier tinha este apelido por causa de sua profissão como médico.
– Toutons Macoutes: Bicho-papão do vodu haitiano, equivalente ao “homem do saco” no Brasil. Também era o apelido de uma força de segurança especial da ditadura de Duvalier responsável pela repressão da oposição. Tinham permissão para violar os direitos humanos se achassem necessário.

Autor: Humberto Mansur