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Coluna do Cláudio Carvalho

A HISTÓRIA DO SAMBA MUDOU

30 de setembro de 2014, nº 34, ano XI

Falar sobre samba–enredo não é fácil. Primeiro porque o material acerca do tema é escasso. Segundo porque se trata de um assunto que gera muita polêmica. Este ensaio se propõe a abordar o assunto do ponto de vista histórico, com ênfase nas mudanças que o gênero sofreu ao longo dos tempos, mediante a citação daquelas consideradas pelo autor como as 100 principais obras do gênero em todos os tempos, seja por sua beleza, popularidade ou importância histórica.

         Sabe-se que no primeiro concurso de escolas de samba, realizado na casa de Zé Espinguela, no Engenho de Dentro, em 1929, venceu Heitor dos Prazeres, do Conjunto de Oswaldo Cruz, depois Vai Como Pode e hoje Portela. Estes sambas, porém, não faziam alusão a nenhum enredo.

        O primeiro samba considerado “samba-enredo”, por estar de acordo com o enredo, segundo a mídia da época, foi cantado pela Unidos da Tijuca, em 1933, embora haja controvérsias acerca disso. Desta obra, intitulada “O mundo do Samba”, só dispomos da letra, de Nélson de Moraes, que não difere muito daqueles sambas de terreiro cantados na época:

Somos Unidos da Tijuca
E cantamos o samba brasileiro
Cantamos com harmonia e alegria
O samba nascido no terreiro
Não queremos abafar
Nem também desacatar
Viemos cantar o nosso samba
Que é nascido no terreiro

A Portela reivindica para si o primeiro samba-enredo, com “Teste ao Samba”, de 1939, quando se apresentou com fantasias, alegorias e adereços que remetiam ao tema. Pela escassez de informação e quantidade de escolas que desfilavam na época (muitas extintas), é praticamente impossível determinar qual samba teria sido o pioneiro.

         Fato é que, até 1947, as escolas costumavam cantar dois ou três sambas de terreiro, sem fazer alusão ao enredo. Foi naquele carnaval que surgiu o Império Serrano, como dissidência da Prazer da Serrinha, que desfilou com um samba escolhido pelo seu presidente, em detrimento a Conferência de São Francisco, de autoria de Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola.  

         Veio do Império Serrano, também, o primeiro samba gravado em disco, “Exaltação a Tiradentes”, cantado no carnaval de 1949 e apresentado ao público apenas seis anos depois. Nesse período, os temas tinham forte apelo nacionalista, fato que levou a escola de samba Vizinha Faladeira a ser desclassificada por apresentar o enredo Branca de Neve e os sete anões, e permanecer cinquenta anos com a bandeira enrolada. Consagrou-se também nesta época o chamado “samba-lençol”, que “cobria” todo o enredo, e que encontrou no Império Serrano de Silas de Oliveira seu maior expoente.

         Destacam-se na década seguinte obras como As três capitais  e Benfeitores do Universo, (cantadas por Imperatriz Leopoldinense e pela extinta Cartolinhas de Caxias, em 1953), Amazônia – Inferno Verde (Filhos do Deserto, 1955), O grande presidente (Mangueira, 1956), Legados de D. João VI (Portela, 1957) e Machado de Assis, samba de Martinho da Vila para a Aprendizes da Boca do Mato, em 1959, quando ele ainda não ostentava o “sobrenome”.

         Já no início da década de 1960, o Salgueiro de Fernando Pamplona passou a desfilar com enredos e sambas que remetiam à temática afro-brasileira. Quilombo dos Palmares, de 1960, foi o primeiro. A tendência prosseguiria anos depois, com Chica da Silva (1963)  e Chico Rei (1964).

             Em 1961, a pequena escola Tupy de Brás de Pina levou para a avenida Seca no Nordeste, samba considerado por muitos como um dos melhores de todos os tempos, mas que só ficou conhecido de fato após ser gravado por Jamelão, anos depois.

         Antes de desfilar com sambas que faziam apologia ao regime militar e de se tornar uma escola grande, a Beija-Flor desceu, em 1962, com O dia do Fico, samba consagrado na voz de Martinho da Vila e muito enaltecido por sua importância histórica.

         Mas a década de 1960 não seria a mesma sem os sambas de Silas de Oliveira, tido como o maior expoente do gênero de sambas-enredo. Para que se tenha uma ideia, três dos melhores sambas de todas as épocas, Aquarela Brasileira, Os cinco bailes da história do Rio e Heróis da Liberdade, foram compostos por ele para o Império Serrano, em 1964, 1965 e 1969. O primeiro samba da trilogia é considerado o “hino dos sambas-enredo”, e disputa com outros o “título” de melhor de todos os tempos. O segundo samba, de 1965, foi o primeiro a ter uma mulher como autora, Dona Ivone Lara, que dividiu a parceria com Mano Décio, o próprio Silas de Oliveira e Bacalhau. Existem versões que afirmam que a Unidos da Tijuca foi a primeira escola a ter um samba assinado por uma mulher, mas esse samba é desconhecido de público e mídia. Já o terceiro samba sofreu com a censura do regime militar, teve a letra alterada (“evolução” no lugar de “revolução”) e foi cantado num desfile vistoriado de cima por helicópteros da Força Aérea Brasileira. Escolas como Vila Isabel e Salgueiro também sofreriam com a censura do regime militar a seus sambas-enredo nos “anos de chumbo”.

         O sucesso de O Mundo Encantado de Monteiro Lobato, composto pela Mangueira para o carnaval de 1967, impulsionou a gravação do primeiro LP de sambas-enredo, que aconteceria no ano seguinte, em dose dupla. O disco denominado “Festival do Samba” contém os hinos de sete escolas, ao passo que o lançado pelo Museu da Imagem e do Som traz também as obras de Unidos de São Carlos, Independentes do Leblon e Império da Tijuca. Já nesse disco, temos três sambas antológicos: Dona Beija, feiticeira de Araxá, do Salgueiro, Sublime Pergaminho, da Unidos de Lucas, e Quatro séculos de modas e costumes, do (agora, sim) Martinho da Vila Isabel, que emplacaria outra obra-prima, Yayá do cais dourado, em 1969.

         O sucesso dos discos foi instantâneo, e nos anos seguintes seriam lançados os primeiros LP's do segundo (1970) e terceiro (1971) grupos. Mas foi o LP do desfile principal deste último ano que trouxe um samba que destoava dos demais e caiu nas graças do povo: Festa para um Rei Negro, de Zuzuca, do Salgueiro. Relativamente curto e de letra fácil, o samba consagrou o refrão “Olê lê, Olá lá. Pega no Ganzê, Pega no ganzá”, e implantou mudanças radicais no gênero. Já no ano seguinte, Zuzuca repetiu a dose, com Mangueira, nossa madrinha querida (Tengo, Tengo). A tendência passou a ser adotada por outras escolas e, sinal dos tempos, Silas de Oliveira, expoente de uma era, foi derrotado por acachapantes 6x0 na disputa de samba do Império Serrano, que consagrou a tão propagada versão de Alô, Alô: taí, Carmen Miranda. Insatisfeito com o resultado, Silas se afastou da escola e morreu de infarto fulminante meses depois, quando se apresentava numa roda de samba na Zona Sul.

         Outra decepção parecida foi enfrentada por Paulinho da Viola, quando a diretoria da Portela encomendou o samba-enredo de 1974 à dupla de compositores da MPB Evaldo Gouveia e Jair Amorim. O mundo melhor de Pixinguinha, samba da dupla, culminou no afastamento de Paulinho da escola por vinte anos.

         No ano seguinte, destaque para a presença feminina de Elza Soares como intérprete do antológico A Festa do Círio de Nazaré, da Unidos de São Carlos, e para a gravação de todos os principais sambas daquele carnaval por Jamelão, que só foi debutar em gravações oficiais pela sua Mangueira em 1986. O ano de 1976, talvez o da melhor safra de sambas-enredo de todos os tempos, também serviu para revelar dois dos maiores puxadores de samba da história: Dominguinhos do Estácio e Neguinho da Beija-Flor. Este último debutou na avenida com um título que se repetiria nos dois anos seguintes, consagrando sua escola dentre as grandes do carnaval carioca, ao lado de Portela, Mangueira, Império Serrano e Salgueiro. Nessa mesma época, a União da Ilha se firmou dentre as principais agremiações e emplacou sambas antológicos.

         Outros grandes sambas da década de 1970 são Lendas e mistérios do Amazonas (Portela, 1970), Lapa em três tempos (Portela, 1971), Rapsódia de saudade (Mocidade, 1971), Ilu Ayê  (Portela, 1972), Martim Cererê (Imperatriz, 1972), Onde o Brasil aprendeu a liberdade (Vila Isabel, 1972), Rio Grande do Sul na Festa de Preto Forro (Unidos de São Carlos, 1972), Lendas do Abaeté (Mangueira, 1973), O saber poético da literatura de cordel (Em Cima da Hora, 1973), O rei da França na Ilha da Assombração (Salgueiro, 1974), A festa do Divino (Mocidade, 1974), O segredo das Minas do Rei Salomão (Salgueiro, 1975), Arte negra na legendária Bahia (São Carlos, 1976), A lenda das sereias (Império Serrano, 1976), Sonhar com rei dá leão (Beija-Flor, 1976), Brasil, berço dos imigrantes (Império Serrano, 1977), Domingo (União da Ilha, 1977), O amanhã (União da Ilha, 1978) e A criação do mundo na tradição Nagô (Beija-Flor, 1978).

         Nos grupos de acesso, destaque para Acalanto para Uiara (União de Jacarepaguá, 1976) e Logun, principe de Efan (Arranco, 1977). No carnaval de Niterói, foi gravado o segundo LP, cujo grande samba é Afoxé (Cubango, 1979).

         Foi nos anos 1980, porém, que o samba-enredo viveu sua melhor fase. Obras memoráveis, divulgação maciça em rádio e televisão e profissionalização dos desfiles foram fundamentais para isso. Já no primeiro ano, 1980, tivemos três campeãs (Beija-Flor, Imperatriz e Portela) e três vices (Mocidade, União da Ilha e Vila Isabel), mas foram O que é que a Bahia tem, da campeã Imperatriz, e Sonho de um sonho, da vice Vila, as canções mais celebradas.

No ano de inauguração do Sambódromo e de criação da LIESA, 1984, foi lançado o primeiro LP ao vivo da avenida. Naquele ano também tivemos mais de uma campeã. A Portela venceu domingo, a Mangueira na segunda e no sábado seguinte, que lhe rendeu o supercampeonato. Desta safra de sambas-enredo, tida como a melhor depois de 1976, destacam-se Skindô, Skindô (Salgueiro), Contos de areia (Portela), Pra tudo se acabar na quarta-feira (Vila Isabel) e Yés, nós temos Braguinha (Mangueira).

         O primeiro CD de sambas-enredo foi lançado fora do país, no ano de 1986, em que a Mangueira se sagrou novamente campeã com Caymmi mostra ao mundo o que a Bahia e a Mangueira tem, que traz dentre seus autores o ex-presidente Ivo Meirelles.

         Mas os anos de 1988 e 1989 reservariam para a história do samba-enredo obras dignas de figurar em qualquer lista das melhores do gênero, como é o caso de Kizomba, a festa de uma Raça, que embalou o primeiro título do desfile principal da Vila Isabel, Cem anos de liberdade: realidade ou ilusão?, talvez o maior samba da história da Mangueira e, no ano seguinte, Liberdade, liberdade: abre as asas sobre nós, da campeã Imperatriz, Ratos e Urubus, larguem a minha fantasia, que consagrou o desfile genial da Beija-Flor de Joãosinho Trinta e Festa profana, da União da Ilha, que empolga quadras de escolas e arquibancadas de estádios até hoje.

         Dentre outros sambas de destaque na década de 1980, podemos citar: Das maravilhas do mar, fez-se o esplendor de uma noite (Portela, 1981), Bum bum paticumbum prugurundum, do magistral e campeão desfile do Império Serrano, em 1982, É hoje!, samba da União da Ilha, que virou uma espécie de ode à conquistas pessoais, como formaturas, casamentos e bodas, Mãe Baiana, mãe (Império Serrano, 1983), E por falar em saudade (Caprichosos de Pilares, 1985), Ziriguidum 2001, (Mocidade Independente, campeã de 1985), Raizes (Vila Isabel 1987), No reino das palavras (Mangueira, campeã de 1987).

         Dos grupos de acesso, destacam-se sambas como 33, destino: Dom Pedro II, da Em Cima da Hora e Acima da Coroa de um rei, só Deus, da Acadêmicos de Santa Cruz, ambos de 1984, safra que consagrou para além do desfile principal.

         Em terras de Araribóia, destaque para o samba Fruto do amor proibido, da Acadêmicos do Cubango, que contava a história de Logum Edé, filho de Oxóssi e Oxum, que, segundo a lenda, era seis meses menino e seis meses menina. Na segunda metade da década, Cubango e Viradouro migraram para o carnaval carioca.

         Se a década de 1980 foi o auge dos sambas-enredo, a seguinte seria o início de uma fase complicada, onde a padronização dos sambas com vinte e quatro versos e dois refrãos apelativos deu o tom. As exceções talvez sejam as safras de 1993 e 1994. No ano de 1997, foi gravado o último LP de sambas-enredo, e no ano seguinte, a última fita K-7. A década se encerrou de forma melancólica na gravação do álbum de 1999, com os pagodeiros Belo e Alexandre Pires marcando presença nas faixas das então campeãs Beija-Flor e Mangueira, respectivamente.

         Dentre as poucas grandes obras do período, citamos E deu a louca no Barroco (Mangueira, 1990), De bar em bar: Didi, um poeta (União da Ilha, 1991), Sonhar não custa nada, ou quase nada (Mocidade, 1992), A dança da lua (Estácio, 1993), No mundo da lua (Grande Rio, 1983), Gbalá (Vila Isabel, 1993), o campeão Peguei o Ita no Norte, que encerrou o jejum de quase duas décadas da Acadêmicos do Salgueiro, Os santos que a África não viu (Grande Rio, 1994), Muito prazer! (Vila Isabel, 1994), Quando o samba era samba (Portela, 1994), Gosto que me enrosco (Portela, 1995), Orfeu, o negro do carnaval (Viradouro, 1998) e O dono da terra, da Unidos da Tijuca, campeã do grupo de acesso de 1999.

         Os anos 2000 seguiram a tendência, com o agravante de que as disputas de samba-enredo nas escolas ganharam proporções monstruosas, sobretudo após o advento da internet. Esse fato talvez tenha motivado a LIESA a incentivar a reedição de sambas antigos, adotada em 2004 por Império Serrano, Portela, Tradição e Viradouro, e repetida à exaustão por escolas de todos os grupos, nos anos seguintes.

         Com o tempo, a reedição se mostrou apelativa, e escolas passaram a utilizá-la na briga para não descer de grupo. Pior: muitas reeditaram sambas de coirmãs, o que, longe de soar como homenagem, só endossou a polêmica.

         O primeiro grande samba-enredo desta safra é A saga de Agotime, que encerrou a trilogia de vice-campeonatos da Beija-Flor diante da Imperatriz Leopoldinense. No ano seguinte, a escola seria outa vez vice, desta vez, porém, da Mangueira, que se sagrou campeã com o inesquecível Brazil com Z é pra cabra da peste, Brasil com “S” é nação do Nordeste. No ano de 2003, a Unidos da Tijuca desfilou com aquele que talvez seja o melhor samba da década, Agudás, que serviu de pano de fundo para um desfile desastroso, onde a atriz Neusa Borges chegou a se acidentar após cair de uma das alegorias. Apesar das já citadas reedições de 2004, o samba que marcou este ano foi Manoa, Manaus, da campeã Beija-Flor. Fecham a década, paupérrima em grandes obras, O Império do Divino (Império Serrano, 2006),  Candaces (Salgueiro, 2007), João e Marias (Imperatriz, 2008) e Os Brasis do Brasil (Mangueira, 2009). A pobreza das safras se estendeu aos grupos de acesso, cujo único samba de destaque é Orun Ayê (Boi da Ilha, 2001).

         A década de 2000, no entanto, ficou marcada como a da consagração do merchandising no samba-enredo, como aconteceu em várias letras de obras do período.

         Talvez a maior prova de que os caminhos trilhados pelo samba-enredo estavam longe de ser os ideais tenha sido dada pela Vila Isabel, que “reeditou” o samba Presença de Noel, de Martinho, sob forma de enredo, com Noel, a presença do poeta da Vila. A proposta inusitada e polêmica rendeu um quarto lugar à Vila, num desfile em que a bateria teve de segurar a cadência para não atravessar o samba. Naquele ano, que consagrou Paulo Barros com o primeiro título do Grupo Especial, pela Unidos da Tijuca, destacou-se também o belo samba-enredo da Imperatriz, Brasil de todos os Deuses.

            O samba E o povo cantando nas ruas é feito uma reza, um ritual, da Portela, lavou a alma dos componentes da azul e branco de Oswaldo Cruz, após o incêndio no barracão, que também vitimou Grande Rio e União da Ilha no ano anterior. Mais uma vez, a Vila Isabel desceu com um grande samba, Angola, prenúncio do que aconteceria no ano seguinte, quando, com A Vila canta o celeiro do mundo, sagrou-se pela terceira vez campeã do carnaval carioca. Naquele ano de 2013, a Império da Tijuca venceu o acesso com outro grande samba, Negra, pérola, mulher. Depois de muitos anos, as melhores obras do especial e do acesso levantavam o caneco.

         A década de 2010, que chega à metade, consagrou de vez o “samba de escritório”, no qual um grupo de compositores e investidores se unem para pôr sambas em diversas escolas, muitas vezes sem assinar o que fazem ou fazer o que assinam. Este, porém, é apenas o menor dos males do tal “escritório”, responsável pela perda da identidade das alas de compositores, pela pasteurização do samba-enredo e pela extinção gradual do compositor de fato, que acaba desistindo de competir contra o sistema ou se rendendo a ele, às expensas de perder sua originalidade.

         Nas próximas colunas, faremos um apanhado histórico das safras de samba-enredo de Rio, Niterói e São Paulo, falaremos dos principais sambas de cada escola, dos melhores sambas que foram e dos que não foram para a avenida, de reedições, intérpretes e compositores. Um abraço e até lá.

Cláudio Carvalho
claudioarnoldi@hotmail.com