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Os sambas de São Paulo 2024 por Bruno Malta

Os sambas do Grupo Especial São Paulo 2024 por Bruno Malta


NOTA DO EDITOR: O texto a seguir, com as análises do Grupo Especial de São Paulo para 2024, foi escrito por Bruno Malta por volta de setembro e outubro, antes do lançamento do CD. Na ocasião, o colaborador do site SAMBARIO se baseou nas versões concorrentes ou não-oficiais feitas pelas agremiações, além de audições ao vivo nas quadras. Os comentários foram preparados exatamente para a publicação em nosso site.

Bruno Malta faleceu no dia 15 de novembro de 2023, vítima de um atropelamento no Rio de Janeiro. Antes do triste ocorrido, o colaborador repassou os textos para seu colega de SAMBARIO, Theo Valter Knetig. A postagem do material foi autorizada pelos familiares.

As avaliações e notas referidas apresentam critérios distintos dos utilizados pelo júri oficial, em nada relacionados aos referidos desempenhos que as obras virão a ter no desfile

Mocidade Alegre: A Mocidade Alegre voltou para o que a mais fez feliz. Além do campeonato conquistado no último desfile, a agremiação, enfim, voltou para o estilo de samba que mais a deixa confortável. Leve, sem muito rebuscamento melódico e repleto de respiros capazes de dar "coreografias espontâneas" para sua comunidade. A questão é que a escola também retomou o caminho do "mais do mesmo" que vinha sendo uma incômoda marca na década passada, principalmente após o tricampeonato entre 2012 e 2014. É como se depois de atingir o objetivo de reconquistar a taça do Grupo Especial, a rubro-verde optasse em voltar para sua zona de conforto mesmo que isso signifique um retrocesso no processo de afirmação como resistência do fundamento no sambódromo do Anhembi.

O enredo escolhido, aliás, demonstra um pouco dessa opção de temática mais "conservadora". Se os últimos anos trouxeram as Yabás, uma homenagem para Clementina de Jesus e o guerreiro Yasuke, temas sobre personagens pretos que traziam um perfil mais aguerrido e insurgente, agora a escolha foi por Mário de Andrade, fundamental na semana de Arte Moderna em 1922, e sua viagem em busca de uma espécie de redescobrimento do Brasil. Em 1924, ainda inquieto com suas respostas sobre o que era país e quem formava a nação brasileira, esse modernista viajou para vários cantos da nação em busca do passado que fomos, o presente que somos e o futuro que ainda podemos ser para, enfim, responder o que signfica ser brasileiro. A missão de contar essa trajetória em trilha-sonora ficou com os compositores Biro Biro, Turko, Gui Cruz, Rafa do Cavaco, Minuetto, João Osasco, Imperial, Maradona, Portuga, Fabio Souza, Daniel Katar e Vitor Gabriel, nomes conhecidíssimos dentro da escola pelas inúmeras vitórias nos concursos de samba-enredo da Morada.

Esse time, muito por conta do projeto de desfile da agremiação, resolveu trazer o perfil de composição mais familiar possível para os componentes. É fácil para quem acompanha e torce pela Mocidade Alegre criar uma empatia rápida muito pelas referências conhecidas não dentro da letra, mas no jeito que a estrutura melódica se impõe durante a composição. O início da estrofe já apresenta o eu-lírico, Mário de Andrade, como narrador da história contada. Conta o enredo - e a história - que ele, um enorme apaixonado por São Paulo, sempre se encantou pela grandiosidade da cidade e pela pluralidade que a forma, por isso que ele a apelidou de "Cidade Arlequinal". Os versos "Sou dessa terra // Filho da garoa fina // Onde a dura poesia, me fez arlequim // Retalho de um delírio insano // Sagrado e profano, por tantos brasis" apresenta esse começo. Mesmo identificado com São Paulo, Mário de Andrade, esse arlequim não se sentia completo apenas com esse pedaço de Brasil, era preciso de mais. Após brincar o Carnaval no Rio - profano - desembarcou em Minas Gerais na semana Santa - sagrado. Esse trecho é bem amarrado, mas é repleto de clichês - como toda a obra, veremos mais a frente - na letra. Além disso, as rimas fina/poesia e insano/profano são óbvias trazendo morosidade na melodia (-0,1 melodia).

A sequência mostra o desembarque de Mário em Minas Gerais. O deslumbre com a arquitetura do lugar e com a gente simples que com terços e orações andava pelo chão de pedras é marcante nesse momento. Os versos para retratar isso são fáceis e seguem a linha do "pra que complicar?" que é a tônica da composição. "Trilhando caminhos de crença e paz // Dourado é teu chão... oh Minas Gerais! // Eu vi no traço genial // A arte barroca, um dom divinal" apresenta o padrão de rimas em AABB que é ainda mais moroso por conta das células melódicas simplesmente esperarem a rima já no verso seguinte, não trazendo a quebra que intercala (-0,1 melodia). A letra, por sua vez, é bem feita com frases que não são tão óbvias, mas o fim do verso "Oh Minas Gerais" é prolongado demais só estando ali para fechar a métrica. (-0,1 letra). No refrão central, o samba desembarca na querida região Amazônica. Dentro de um barco, Mário de Andrade desembarcou no norte do país e a cada parada fez novas descobertas. A natureza, as águas, a cultura... tudo o encantou. Na composição, esse é o trecho que mais torna óbvio a "coreografia espontânea" citada anteriormente. Afinal, quem não balança o braço como numa viagem de navio em "Jangadeiro ê... no banzeiro // No balanço navego teu rio-mar // Pra conhecer o teu sabor Marajó // Tem batuque na gira do Carimbó" é alguém que nunca escutou um samba-enredo do Anhembi. É uma melodia requentada, mas muito funcional. Aqui, o efeito da rima dobrada sem espaçamentos é repetido em Marajó/Carimbó e "Jangadeiro/banzeiro", o que segue empobrecendo bastante a letra como um todo (-0,1 letra).

A segunda estrofe mergulha na chegada em Pernambuco. Por lá, o homenageado viu as pinturas de Cícero Dias, passou um carnaval tomando um porre ao som de frevo e maracatu, mas também não esqueceu da fé, rezando terços e fechando seu corpo no catimbó. Os versos são extremamente claros. É tão cristalino que fica sem graça. "Baque virado, marimba na congada // Noite enluarada, no Maracatu da Casa Real // Fechei o corpo no catimbó // No frevo, saudade só // Me embriaguei de carnaval" são fáceis de compreender, mas acabam perdendo poesia. Não existe surpresa, não existe uma contextualização do que o trecho significa. É tudo óbvio e pouco poético (-0,1 letra). Melodicamente, o trecho é interessante por conta da pitada de "frevo" que alguns versos traz, mas as rimas travam com "catimbó/só" (-0,1 melodia). Além disso, o verso "me embriaguei de carnaval" é inacreditável. Não é que ele é ruim, mas a falta de criatividade espanta, principalmente por saber quem foram os autores - excelentes e donos do melhor samba do grupo em outra agremiação. (-0,1 letra). Por fim, a reta final explora a visita de Mário de Andrade ao samba de Pirapora que "finalizou" a Aquarela Brasileira proposta pelo poeta. "Oh Brasiléia Desvairada // Onde a poesia fez morada // De cada lembrança, escrevo a história // Batizada no samba de Pirapora". Nessa passagem, a proposta é uma correlação de "marcas". Se o Brasileira Desvairada faz a menção ao título do enredo que já é uma referência ao "Pauliceia" dele, o "poesia fez Morada" brinca com o apelido da escola. Já o "de cada lembrança" já mostra um certo saudosismo com o fim da viagem em Pirapora. É um trecho que termina de modo correto e sem grandes percalços.

Por fim, o refrão principal é uma construção de união entre o desejo de Mário de Andrade de contar quem forma esse país e a Mocidade Alegre, a escola que nasceu de jovens e alegres, que abraçou essa história. Em "O tambor me chamou, pra firmar no terreiro // Em cada verso, sentimento verdadeiro // Bordei um país de felicidade // Na voz da minha Mocidade", o eu-lírico demonstra o convite do "samba/tambor" para se apresentar no "terreiro" para demonstrar em cada verso narrado, o sentimento que os momentos trouxeram e que sua felicidade é cantada pela voz da Mocidade. É fácil, simples, mas também sem poesia. As rimas felicidade/Mocidade e terreiro/verdadeiro tiram a explosão da composição justamente no momento que, teoricamente, é o de maior apoteose para qualquer um que desfile na avenida (-0,1 letra) e (-0,1 melodia). Terminada a audição, dá pra ter uma certeza: O samba da Mocidade Alegre é, talvez, o maior exemplo do que, atualmente, significa uma composição no Carnaval de São Paulo. Além da total zona de conforto na temática, a parte musical é relegada ao segundo plano, servindo apenas como mera descrição do que será apresentado no visual, sem tentar conquistar ou surpreender quem não tem ligação emocional com quem está passando. Ou seja, a campeã, depois de anos tentando ser resistência e fazendo o diferente, justamente quando poderia se afirmar, resolveu virar mais uma na multidão.

Nota: 9,1

Letra: 4,5
Melodia: 4,6

Mancha Verde: O controverso da Mancha Verde sobre o agronegócio e o homem do campo deu um trabalho duplo para o carnavalesco André Machado. Mais do que pensar em alas e desenhos que consigam traduzir a temática sem cair no mais do mesmo de um enredo dessa linha, a ideia precisou ganhar uma "maquiagem" afro para sair do lugar-comum e tornar-se mais viável e palatável para o exigente público do Carnaval. Isso também deu em mais questões para os compositores Lico Monteiro, Tinga, Marcelo Lepiane, Leandro Thomaz, Richard Valença, Jeferson Oliveira, Telmo Augusto, João Perigo, Lucas Macedo, Ailson Picanço, Rodrigo Peu, David Gonçalves, Tiago Caldeira e Paulo Sergio resolverem na assinatura do hino da alviverde no próximo desfile. É fato que a obra não é perfeita e possui problemas que nem o carnavalesco e nem o time de poetas pode resolver.

O início do enredo clama que segundo a tradição iorubá, Olorum, o senhor do infinito, ordenou que um homem simples chamado Ocô tirasse do chão o que todos pudessem comer, toda riqueza de grãos, de frutas, legumes e verduras. Semear e colher era sua grande missão. E dentro desse viés mais "ancestral" por assim dizer, todo o enredo é desenvolvido. O samba traz isso em "Ocô, sua flauta anunciou // a colheita verdejou... na terra // Regou a missão de Olorum // Junto a forja do senhor da guerra" que significa que Ocô através de sua flauta de madeira anunciou a colheita aceitando a missão de Olorum ao lado de Ogum. É um início bonito e que se difere bastante do perfil mais descritivo do restante da composição - veremos a seguir. O restante da estrofe já dá indícios disso com "Vai o legado...no balanço desse mar // Solo sagrado germinou a plantação // Ê, caiana levada pro cais // A força dos cafezais vem da fé que ergueu essa nação". Nesse trecho, a ideia é propagar que a lenda do orixá Ocô viajou com os negros - responsáveis pelo início da agricultura nacional - nos navios negreiros. A questão é que a romantização desse momento histórico é, digamos, um pouco exagerada. Além do verso "vai o legado... no balanço desse mar", "ê caiana levada pro cais" e "A força dos cafezais VEM DA FÉ que ergueu essa nação" - Obs: Vem da fé é absolutamente surreal diante do contexto - traduzem com idealismo demais. É quase desrespeitoso para o que significa o período retratado (-0,1 letra). A melodia do trecho também é um pouco travada com palavras próximas com a mesma terminação que não consegue dar desenhos mais criativos como plantação, nação, cais, cafezais, sagrado e legado (-0,1 melodia).

O falso refrão central somado com o início da segunda estrofe optam por uma estética que, particularmente, me causa certo cansaço tanto em desenhos quanto em letra. A ideia de bis dentro do quadrante em "Escorre à enxada o suor que vem do povo // Em cada grão a liberdade na raiz // Escorre à enxada o suor que vem do povo // Traz na semente o futuro do país" já não é exatamente inovadora e trava a melodia (-0,1 melodia), mas é repetida em ideia no "Brasil onde mora o verde // Brasil, teu celeiro partilha" que sequer traz um respiro para que o componente saía desse cenário de desenhos familiares (-0,1 melodia). Além desses problemas, a letra, principalmente nesse trecho de "chegada" do tema no horizonte nacional poderia ter sido mais bem explorada (-0,1 letra). Na sequência a obra chega numa parte mais "moderna" com "Coragem na busca de um sonho // À mesa, a união da família // Orvalho que toca a viola // Dá o tom pro matuto versar" que tenta dar um tom amável e íntimo ao enredo. É como se os compositores enxergassem naquele simples homem do campo a representação de todo o universo agrícola. É um pouco forçado por ignorar as conquistas mais explícitas dessa atividade em nome de uma história mais fantasiosa (-0,1 letra). Na estética, também penso que algumas expressões como "na, à, a, a e dá" tudo em sequência travam as subidas de melodia que acabam não ajudando na preparação do fim da estrofe e emenda de refrão (-0,1 melodia).

Finalizando a estrofe, o samba vai pra uma linha oposta ao início do enredo. Se a proposta inicial era linkar o lado afro da cultura iorubá com a agricultura, aqui, no fim, a composição - e o tema por tabela - vão pro lado mais "natural" do catolicismo religioso que serve de inspiração para quem cultiva. Os versos "Levado aos céus, as bençãos dessa noite de luar // Se as lágrimas molham a terra // Eu faço um samba em oração // Meu São José, nos dê a tua proteção!". Por mais que pareça um pouco esquisito, dá pra entender que essa mudança de "fé" do eu-lírico é um sintoma das transformações de quem plantava, mas é um sintoma do quão foi problemático inserir o contexto afro lá no começo. Além de dar uma sensação de "precisamos inserir o negro pra não ser mais do mesmo", o viés acabou não sendo na visão de mostrar o atentado sofrido e muito mais uma ideia de que a vida é assim e vamos nessa. Posto isso, a letra é bonita e até termina bem em melodia. Só acho que a rima oração e proteção poderia ter sido mais desenvolvida pois acaba sendo um ponto baixo na reta final (-0,1 letra).

Chegando, enfim, ao refrão principal, a ideia é conectar a escola e o horário de desfile com o tema. Nisso o ótimo verso "Antes do galo cantar e a flor do campo nascer" é uma linda abertura. A questão é o que "vem semear a nossa eterna aliança e da semente, o amor, a nossa gente plantou: Mancha Verde de Esperança" é batido e até complexo. A ideia de aliança depois de ver dois lados de uma história unida pela agricultura é, talvez, a mais problemática do samba. Seria uma aliança entre o negro que plantava nos cafezais com o agricultor do hoje? Essa aliança é realmente possível? Além disso, ela significa amor ou um atentado ao que era uma cultura preta? Perguntas que o samba não responde e deixa no ar. Além disso, o "Mancha Verde de Esperança" é uma boa saída comum para citar o nome da escola. Depois de um início tão bom nesse pedaço, o restante deixa mais dúvidas e problemas que boas coisas (-0,2 letra). Na letra fria da coisa, a Mancha, definitivamente, não terá nem o pior samba da história, tampouco um grande samba, mas deixou uma impressão complexa sobre o que quis tratar no próximo desfile. Se buscou sair do lugar-comum, talvez não tenha sido feliz dentro do universo que criou e isso é o maior dos problemas que gerou.

Nota: 9,0

Letra: 4,4
Melodia: 4,6

Imperio de Casa Verde: O sucesso incontestável do samba-enredo da Império de Casa Verde no último Carnaval criou a difícil (quase impossível) missão de manter o nível apresentado no quesito. Muito por isso, é inevitável fazer uma comparação entre as composições, principalmente por se tratar do mesmo time de autores em ambos os anos. A questão é que a inspiração e a qualidade de uma trilha sonora depende de vários fatores que fogem das canetas dos compositores. O enredo, por exemplo, não tem a simbologia e a possibilidade de construção melódica similar ao do ano anterior dificultando a repetição do impacto atingido. Além disso, a estruturação da história - uma homenagem a uma personalidade - também sai completamente do pensado na apresentação anterior. Ou seja, por mais que seja compreensível que as comparações existam, é bastante injusto que isso afete a análise da composição como um todo.

Afinal, o grupo formado por André Diniz, Marcelo Casa Nossa, Samir Trindade, Fabiano Sorriso, Evandro Bocão, Darlan Alves, Gustavo Clarão e Tinga fez mais uma competentíssima composição que, certamente, vai embalar muito bem a Império de Casa Verde na defesa do enredo Fafá - A Cabocla Mística em Rituais da Floresta que narra uma exaltação aos cinquenta anos de carreira da cantora Fafá de Belém mergulhando profundamente nas lendas e mistérios do interior amazônico, inspiração maior e base que construiu o sucesso da homenageada. A temática procura sair do lugar-comum para dar um foco místico e, claro, de exemplo de sucesso da homenageada para tantas pessoas da região norte do país.

Assim sendi, quando entramos no verso a verso, percebemos como a letra tenta ser minuciosa no exaltar Fafá sem esquecer de tratar seus feitos com tons épicos e místicos. O início da obra vai na linha da introdução com "Vai meu Império // Se a vida enfrenta a ambição, defenda a floresta // Tigre guerreiro // O teu manto é a nossa proteção, nós somos a flecha" que traz um pano de fundo mais carregado de ativismo social convocando a Império e seus componentes para a defesa da floresta tão combalida por conta dos invasores que tentam destruí-la. A sequência carrega o misticismo apresentando a lenda que serve de justificativa para o surgimento de Fafá. Nesse pedaço, conta o enredo que ba cercania de seus maracás, as caboclas as caboclas, em sintonia, entoam um grito-delírio sinfônico para que os feiticeiros que atentam contra o equilíbrio brando da florestania sejam expulsos. No samba, isso é retratado com "Que avança na mata ao som dos maracás // Encanto mestiço no ar". O fim da estrofe reproduz que isso é "Destino sagrado e os sinos dobrados // Renovando sua fé, no Cirio de Nazaré". Afinal, ser uma cabocla defensora do seu lugar é um destino sagrado destinado na fé do Círio de Nazaré, mãe de Jesus, é símbolo forte na cultura paraense. Explicado tudo, confesso que eu acho que a dobra "Vai meu Império" e depois "Tigre Guerreiro" me faz gostar menos do trecho. Com tantas coisas a citar e mencionar, usar dois versos para dizer e convocar a mesma coisa é um desperdício de tempo (-0,1 letra).

Chegando ao refrão central, a composição mergulha no "mundo dos rituais". O início debate Fafá entre o indigenismo e o religioso. Conta a história que Fafá sente Kanapí que é a constelação mística que os jurunas ritualizam ligando no céu as pontas das estrelas mais brilhantes e belas. Assim sendo, Fafá quando olha o céu de Kanapí, duas forças se ligam: Nossa Senhora de Fátima e Nossa Senhora de Nazaré. Uma é cabocla meiga da mata, pureza-voraz. Já a outra, é cabocla da fé indígena, Maria dos Jurunas. São complementares. Ou seja, os versos "Estrela que nasce sob o céu de Kanapi // Senhora das águas, tem o lume de Jaci // Melodia dos romeiros, do vento e da chuva // É Maria dos jurunas, todo mundo quer ouvir" trazem o seguinte significado: Fafá, a estrela, nasce sob o céu dessa ligação umbilical. Nazaré, a senhora das águas, tem o brilho da lua. É a melodia para os devotos do Círio, é a força do vento e da água que cai do céu. É a maria dos jurunas e todos querem ouvir. No retrato mais direto: Fafá significa isso e é por isso que está sendo homenageada. É bonito e bem amarrado.

A segunda estrofe parte para as "encantarias indígenas". São lindos os versos "Sopro xamã caruana e marajoara // Solfejo sublime, voz de Yara // Na folha do amor e no boi-bumbá // Flor cunhã-poranga da aldeia // A magia que rodeia o carimbó e o siriá". Além do vocabulário rico com palavras que fogem do comum em samba-enredo como solfejo, a síntese é interessantíssima. Aqui, a temática busca contar que Fafá, com sua voz, é ritualizada entre a água dos caruanas e o fogo dos carajás, sendo filha do fogo e da água. Mas mais do que isso, ela também é a testemunha das história de Iara, é cunhã-poranga no festival do Boi Bumbá e é a voz que marca as danças do carimbó e do siriá. É como se ela estivesse em todos os lugares onde a cultura da região está. A sequência parte para narrar coisas mais "conhecidas" da vida de Fafá. "O hino entoou para raiar a liberdade // Se ajoelhou aos pés da santidade // Enamorou Portugal". Ela que cantou pelo direito do voto direto quando o país ainda estava na ditadura, também fez sua voz ser conhecida por três Papas e construiu sucesso no país europeu. Uma lista de feitos bem clara, mas introduzida com riqueza poética.

Fechando a estrofe, a obra embarca numa explosão mais na linha do "arrasta-povo" com "O sorriso que espalha o bem // E o talento de Fafá de Belém // Vão brilhar no meu Carnaval" e o bis de "Ê emoriô... Ê emoriô...". Nesse trecho, a ideia é uma exaltação mais simples e popular capaz de causar impacto no gélido público do sambódromo paulistano. A questão é "o sorriso que espalha o bem e o talento de Fafá de Belém" não fica bem ajustado por ser tratar de versos complementares que parecem opositivos dessa forma. O ideal seria "o sorriso que espalha o bem no talento de Fafá de Belém" para unificar a ideia (-0,1 letra). Já o verso final "Ê emoriô... Ê emoriô..." busca a referência no clássico entoado pela artista e consegue uma belíssima explosão sem perder unidade melódica com o que vem antes e o que vem a seguir.

Aliás, o que vem a seguir é o melhor refrão do ano. Simples, direto e cheio de variações inteligentes em desenhos melódicos, o trecho com "Cabocla serena iluminada // É Casa Verde vem ouvir a batucada... Amor // Sou Imperiano // Unindo o teu canto à expressão da minha cor" fecha com beleza e explosão a composição. A ideia aqui é um bom resumo de tudo que foi tratado. Fafá é serena e iluminada e chega a Casa Verde para ouvir a batucada que toca para exaltar seu canto a expressão do azul, cor do rival do seu Garantido, no Anhembi. É um bom fim para uma trilha que mesmo sem ser brilhante e fora do comum como o do ano anterior, segue sendo uma das coisas mais bonitas que o sambódromo paulistano irá escutar no próximo ano.

Nota: 9,8.

Letra: 4,8
Melodia: 5,0

Tatuapé: Padrão é uma das palavras que vem a cabeça de quem escuta o samba do Acadêmicos do Tatuapé para o próximo desfile. Não que a obra siga o estabelecido como regra na cidade, mas ela segue, sim, o perfil adotado como ideal pela agremiação nos últimos anos. O refrão principal é forte, a melodia é suingada, aparece muita nota alta para facilitando o encaixe para o cantor e muita variação de tom para dar respiro ao componente durante a avenida. Esse estilo também não invalida algumas coisas diferentes que foram feitas pelo quarteto Fabiano Tennor, Toninho Geraes, Chico Alves e Celsinho Mody. São quatro refrães espalhados pela obra, uma primeira muito curtinha e uma segunda muito mais longa. Isso, claro, sem falar nas viradas dos desenhos pra marcar cada fase do enredo. É um padrão e uma ousadia tudo na mesma obra para contar esse tema.

Tema, aliás, que merece um detalhamento. Assim como fez em 2020 e 2023, quando homenageou uma cidade (Atibaia e Paraty, respectivamente), o Tatuapé vai exaltar mais uma localidade. Mata de São João, município baiano que fica a 56km de Salvador, é conhecido como a "Costa dos Coqueiros" e é lembrado por abrigar as mais belas praias do estado. No norte, a Costa do Sauípe é o destaque. Já ao Sul, a Praia do Forte é a principal lembrança. Além da beleza natural, também se sobressai a Reserva Ecológica Sapiranga e o parque histórico do Castelo do Forte Garcia D'Ávila. Esses pontos chaves e a história da região serão abordados pela azul-e-branca.

Explicado o perfil da composição e o que a temática pretende explorar, vamos ao samba. A primeira estrofe que é "interrompida" por dois bis de um verso é bem curtinha e tem um perfil menos descritivo na comparação com o que veremos mais a frente. "E lá da mata o tambor anunciou // Na aldeia ecoou o toque do alujá" é um bom início em letra e melodia que prepara um desenho melódico mais carregado no bis do verso "Kaô ôôôôô kabecilê meu pai Xangô" que é complementado por versos que variam de tom em "É flecha Tupinambá // Canto forte de axé // Caraíba de além-mar… verde caeté". Nesse sentido, o balanço é bem feito por mudanças sutis que trazem respiro pro componente sem perder qualidade. A questão é que o verso seguinte "Ouro negro, feito a pele do meu povo" é um tanto atropelado no "feito a pele do meu povo" que parece ter muita letra para pouca melodia (-0,1 melodia). O fim com "Riqueza incorporada nesse chão e o bis do verso "Oh! Linda mata de São João" são corretos e seguem um padrão de variações de tom imposto até aqui.

O refrão central com "Êêêêê baiana, baiana boa // Êêêêê baiana, baiana boa // Remexe mainha, tempere o vatapá // Tem quindim e acarajé
// Tabuleiro de iaiá" apresenta algumas questões de realização duvidosas. Primeiramente, o início já com um bis de um mesmo verso não é a melhor solução para o canto já que é uma sequência de um outro bis de duas repetições, cansando o componente nas repetições (-0,1 melodia). Além disso, a letra com várias citações coladas como "vatapá, quindim e acarajé e tabuleiro" traz a sensação de lista sem mostrar qualquer saída mais criativa para esse momento do enredo (-0,1 letra). Na segunda estrofe - ou sexta, se você for rigoroso - o samba engata uma construção mais descritiva, menos objetiva e também menos inspirada.

Ideias como as vistas nos versos "Senhora dos navegantes // Meu barco já vai pro mar // Eu vou pro mar, Iemanjá me chamou" e "E lá no mar, e lá no mar pescador // Quando a maré “braveia” // Balança “nego”, sorte “d'eu” ser capoeira" é muito ampla e serve para qualquer tema que fale de uma cidade litorânea por exemplo. Não há nenhum recorte que define que se trata especificamente de Mata de São João (-0,1 letra). A melodia, por sua vez, tem saídas interessantes por conta das soluções do "Vai pro mar/eu vou pra mar" e "lá no mar/lá no mar" que dá uma sensação de bis ou até um "caco" - fala improvisada - que cai muito bem ali. Esse caminho, inclusive, ainda é utilizado mais uma vez nos versos seguintes em "Que preserva a vida que Deus deu… Que Deus dá (Samba iaiá)" também com sucesso.

O problema é que o restante da letra é bastante pobre na formatação do que o enredo oferece. É uma lista sem profundidade com citações óbvias como Bonfim, alumia, sorriso, festeira, paraíso tropical, arruda e água de cheiro. Mais uma vez, é como o samba entrasse num ciclo que tudo isso serviria para qualquer cidade litorânea da Bahia. Afinal, quem nunca ouviu essas palavras quando tiveram composições sobre o estado? Parece até que os compositores, nesse sentido, abriram mão da tentativa de uma letra mais curta e profunda - como na primeira estrofe - para apostar no caminho de precisamos listar isso e aquilo para ser descritivo. É compreensível, mas decepcionante (-0,2 letra). Além disso, a melodia dos versos "E pra benzer arruda e água de cheiro na costa dos coqueiros, vou brincar o Carnaval" é explosiva - ótimo pois fortalece o canto no trecho - mas não apresenta um desenho tão aberto para que o refrão complemente, prejudicando a entrada do que está por vir. Com o passar das audições, isso é mais evidente e pode ser algo a ser observado nos ensaios e avenida (-0,1 melodia).

Dessa forma, o refrão principal com "A Bahia tem… Axé do meu Orixá // ”Oh meu rei”, eu fui lá buscar // A jóia mais linda do criador // Canta Tatuapé no toque do Agogô" que é bem simples, mas de fácil canto e de melodia bem feita. Mesmo com ressalvas feitas anteriormente, o refrão tem potencial para ser um dos melhores do próximo carnaval justamente por unir a descrição óbvia de parte da letra com execuções pouco usuais da outra parte. É um bom encerramento que mostra como esse samba teve uma missão difícil. Se o enredo é fácil para encontrar soluções melódicas pela Bahia oferecer uma diversidade enorme de possibilidades de células melódicas, o mesmo também acaba entrando num lugar-comum quase problemático por não trazer nada além do óbvio sobre uma cidade baiana. É como se a Mata de São João fosse apenas um grande estereótipo qualquer da região. Diante dessas questões, manter um padrão e ainda apresentar algumas soluções diferentes do que a cidade se acostumou não é um resultado ruim.

Nota: 9,3

Letra: 4,6
Melodia: 4,7

Dragões da Real: Apresentando uma temática africana pela primeira vez em sua história, a Dragões da Real busca a maturidade como entidade cultural, mas esbarra em questões ainda não resolvidas sobre identidade na hora de vestir sua proposta. Antes de entrar no samba em si, é importante contextualizar o que esse enredo significa para a escola. Desde que virou escola da elite do carnaval paulistano, a Tricolor da Vila Anastácio apresentou temas que traziam mensagens leves ou com um contexto mais regionalizado. Presentes, anos 80, tempo, riso, música sertaneja... a ideia era sempre ser feliz, solta e despretensiosa. Quando a escolha pelo enredo afro desse ano foi definido, uma dúvida pairava: A Dragões tentaria emplacar seu estilo leve numa proposta mais densa ou aceitaria o caminho mais profundo e iria buscar a maturidade de sua presença como escola de samba dessa maneira? Digamos que o resultado não foi nem um e nem outro. Ficou no meio do caminho.

A ideia da temática é de um resgate histórico do continente africano através das figuras africanas que através do poder de realeza conseguiram ser símbolos de luta, ancestralidade, coragem e inspiração para o seus pares. A questão é que tudo foi feito de um modo tão leve, tão solto que acabou - tirando o fato de ser ambientado na África - servindo para qualquer contexto que siga essa premissa. Desse modo, o samba - oriundo de uma junção de duas obras advindas do concurso interno - dos autores Igor Federal, Vaguinho, Mike Cândido, Afonsinho BV, Luizinho Ramos, Helber Medeiros, Thiago SP, Renne Campos, Rodrigo Atração, Darlan Alves, Jairo Cruz, Marcelo Adnet e Tigrão também ficou sem profundidade na letra apelando em diversos momentos para clichês como "Kizomba", "Ancestral", "terreiro", "Alma africana" e correlatos.

O início é muito "mais do mesmo" com "Ê Laroyê, Mojubá // Abra os caminhos para a negra voz // Coroada em cada um de nós, soberana África // A passarela é o terreiro e meu pavilhão, o manto ancestral". Repare: O samba em quatro versos ainda não conta nada do que a proposta vai trazer. Vamos entender o significado: Salve o mensageiro (Exú - subentendido aqui) abra os caminhos para a negra voz que foi coroada em cada um na África. A passarela, Anhembi é o chão e a Dragões é a capa que o protege. Tudo faz sentido, mas nada introduz com profundidade o que será feito a partir dali. (-0,1 letra). Além disso, a melodia do "a passarela é o terreiro e meu pavilhão, o manto ancestral" é curta para o tamanho do verso dificultando o canto (-0,1 melodia). No fim da estrofe, surge "Reluz no ventre da vida, a pele retinta em ritual // No céu de estrelas um legado, sagrado e de fé // Pra exaltar o continente: Axé!". Apenas no quinto verso, o samba tenta apresentar os preceitos expostos na sinopse narrando a abertura do tema com o ritual da cabaça partida que teria dado origem a terra e o céu. E do segundo, surgiria o brilho dos escolhidos para reinar nesse lugar. Mas é tudo muito raso, não há nenhuma mensagem mais profunda para determinar um recorte mais claro ao que está sendo narrado (-0,1 letra).

O refrão de meio tenta dar mais corpo - pelo menos nos desenhos melódicos - com o "Oh África // África de mama êêô // Ilu Ayê... ô África!// De reis e rainhas e grandes reinados // Que a história nunca quis contar". As células são mais pesadas, com balanço mais suingado que trazem ótimo respiro ao corpo do samba, mas a letra... perceba! África, África de mamãe, casa da terra, ô África. Tem reis, rainhas, grandes reinados, mas a história nunca quis contar. São três versos mencionando a palavra África (-0,1 letra) e mais um onde as palavras poderiam ser simbolizados num único termo dando mais espaço para mensagens mais detalhadas. O que a história não quis contar? Por qual motivo? Nada disso é respondido na letra (-0,1 letra). Nem mesmo no que vem a seguir.

Afinal, a abertura se dá com um "Mostraram para o mundo virtudes e nobreza // Generosidade, o cerne da riqueza // Fizeram justiça... ouvir é acolher // A diplomacia é o saber" que é uma quase antítese ao que foi dito no verso anterior. A história não quis contar, mas eles mostraram para o mundo virtudes, nobreza e generosidade. De que forma foi feito isso? Como isso anulou a tenativa de apagamento? Não sabemos e o samba também não explica. (-0,1 letra). Além disso, a melodia aqui fica muito irregular. As pausas para o respiro são em momentos que a letra não traz essa deixa como no "A diplomacia é o saber" dificultando a unidade do desenho (-0,1 melodia). A sequência ainda piora isso com "Faraó Mulher // Poder.. além da sedução // Paz... vem da reflexão" que traz esse efeito mais exacerbado sem traduzir isso em fortalecimento do canto por conta das variações de tom que são concluídas com o "temos um só pai, somos irmãos" (-0,1 melodia). (Aliás, o que esse verso quer dizer é um mistério que não dá pra decifrar nem na sinopse). Fechando o trecho aparece uma lista de citações que tentam ser disfarçadas em alguns conectivos. Preste atenção: "Conquistas de espíritos guerreiros // garra, luta e valentia // o luxo visita a sabedoria // coragem, resistência, comunidade // africanidade". São sete palavras soltas linkadas em dois versos soltos. Na tentativa de resumir a expansão territorial daqueles que tinham poder no universo criado pela escola, os compositores deixaram tudo muito aberto, sem um recorte bem feito. Tirando africanidade, nada - nada mesmo - é capaz de dar direção de um enredo afro aqui, tirando a fidelidade da proposta pensada (-0,1 letra). Além disso, a melodia do africanidade não conseguiu dar união com o refrão principal deixando um "buraco" que não é correspondido pelo que vem a seguir (-0,1 melodia).

O refrão principal, inclusive, é mais um símbolo da dificuldade da Dragões de saber o que desejava com esse enredo. A letra tenta dar peso com "é o povo, é o gueto // a força do meu cantar // tambores vão ecoar: Dragões" mas é seguido dos óbvios "vai ter kizomba, luz que emana // canto guerreiro, alma africana" e embalados por uma melodia que cabe para todo tipo de enredo não recortando - como é de costume até aqui - a obra para o universo pré-estabelecido (-0,1 letra) e (-0,1 melodia). Assim sendo, o fato é que as maiores dificuldades da composição como um todo é transcrever um enredo que não traz a intenção da profundidade do que quer contar. Pela falta de identidade da escola com o perfil temático, o carnavalesco e os compositores, por tabela, optaram por um caminho que tirou o peso da carregada história narrada. A questão é que isso não tirou apenas a força da temática, mas também deixou a Dragões em saber o que fazer com a escolha que fez.

Nota: 8,8

Letra: 4,3
Melodia: 4,5

Tom Maior: Carnavalizar uma história como a de Orfeu e Eurídice não é uma das coisas mais difíceis. Além do roteiro muito conhecido por todos, a narrativa é de fácil realização em imagens e contextos de fantasias. Isso é tão verdade que o desfile da Viradouro que tratou do tema em 1998 é um dos mais bonitos da história da Sapucaí. Além disso, o samba virou uma obra atemporal, capaz de emocionar mesmo sendo reproduzida mais de vinte cinco anos depois da sua construção. Ou seja, a história que a Tom Maior irá apresentar no próximo desfile é conhecida e com ótimas opções para reprodução visual e musical. Mas para ir além do já feito, a opção de ambientar o roteiro num universo indígena mostra que o caminho é tentar surpreender através do já conhecido. É oferecer novos recursos em um contexto familiar. Isso era missão para o carnavalesco e para os compositores. Após a escolha do samba-enredo, dá pra dizer que 50% da missão está feita. A trilha sonora assinada porGui Cruz, Turko, Portuga, Rafa do Cavaco, Imperial, Fabio Souza, Anderson, Willian Tadeu e Vitor Gabriel é surpreendente e impactante até para ouvidos que cansaram de ouvir esse relato através de outras canetas.

Aliás, é importante registrar uma coisa antes de irmos pro verso a verso. O samba da Tom Maior é uma das músicas mais inspiradas que o Carnaval de São Paulo apresentou no histórico recente. É impactante tem desenhos melódicos que fogem do costumeiro para samba de enredo e ainda traz uma letra muito bonita e emocionante dentro do plausível para o que quer contar. O único senão é que esses desenhos melódicos fogem tanto do costume para o gênero que, talvez, sejam mais bonitos dentro do ambiente de música do que numa avenida com 2000 componentes e 250 integrantes de bateria tocando. Dito isso, vamos ao samba.

O início é maravilhoso com uma melodia desenhada em acordes mais sombrios para narrar "Lá pelas matas juremá // São caminhos de Rudá, divino senhor // É flecha certeira no peito // Anahi, um sentimento que Monã me entregou". Aqui, Orfeu, ou melhor, Abaeté, narra que nas matas juremá, o Deus do amor, Rudá, impôs um sentimento certeiro em seu peito para que ele se apaixonasse por Anahí que era Eurídice na história original. A letra aqui é perfeita e não traz nenhuma ressalva. A virada do verso seguinte modifica o tom da melodia que ganha um contorno mais alegre em "Ressoa em mim, supremo dom em cada alvorecer // O som da paz compõe o meu viver // No coração da aldeia sonha um curumim" que narra que Abaeté não era apenas movido pelo amor. Ele tinha um destino de tocar uma flauta capaz de trazer o som das manhãs, a paz para aldeia e os sonhos de todos os curumins. No fim da estrofe, após a conexão através do alvorecer, Guaracy - Deus do Sol e responsável pela iluminação do dia - é citado diretamente com "Guaracy iluminou lendas que o tempo ensinou // O erro e a dor são o destino // De quem foge do amor" que serve de inspiração para o a história de amor que vivia Abaeté. Isso é mais bem retratado a seguir no refrão central quando a lenda no citada anteriormente é detalhada em "Numiá... Arrapiá // A sede do poder que cega o olhar". O resumo aqui é que Numiá e Arrapiá era apaixonados e geraram quatro filhos, mas por conta da sede de poder, eles ficaram cegos e foram castigados por Monã que os transformaram em Guaracy (Sol) e Jacy (Lua) e os impediram de ficarem juntos justificando que o erro e a dor são destino de quem foge do amor. Repare que o samba faz várias associações interessantíssimas entre momentos do enredo sem ficar naquela coisa de tudo ficar preso na sinopse. É poesia na letra e desenhos variados para apresentar cada fase na melodia. Excelente!

A seguir, o samba parte para narrar a morte de Anahí (Eurídice) e o faz com uma beleza quase inacreditável. O início é ainda no refrão central que traz "Oh Deus tupã, em seu afã // Vê nas sete Deusas, toda forma de amar" - repare que aqui existe uma célula melódica com um brilho especial para que remeta ao brilho do arco íris - criação divina surgida dos sete elementos que eram protegidas pelas Deusas de Tupã. Isso é tão raro que chega a impressionar. Depois, o soturno ganha espaço com os tensos "Quando a luz do dia no Yby se apagou // A Noite, um mistério de Guarandirô // Boiuna lança a jovem pro abismo da saudade" que apresenta a ida de Anahí para as profundezas. A melodia é tensionada com vários desenhos mais profundos no "Quando a luz do dia no Yby se apagou". É quase como se o samba proporcionasse uma trilha de suspense ou terror dentro de uma história de amor. É forte e bonito! Esse clima continua com "Abaeté, meu nome é coragem
// Levado em um sopro de esperança // Desafia a solidão da eternidade" que apresenta a tentativa de Abaeté em continuar com sua amada. Num sopro de coragem, ele desce até as profundezas e faz um acordo para recuperar a vida de Anahí. O acordo era ele leva-lá de volta, mas sem trocar olhares durante o trajeto. Não conseguiu. Iludido pelo Deus da noite Guarandirô, olhou pela última vez Anahí antes dela cair no abismo das profundezas. Era o fim. Depois disso, seu retorno foi apenas de não aceitar que o mal havia vencido e a tristeza o tinha dominado. Se antes, vivia no paraíso, agora era o caos e a destruição que o cercava com a invasão de homens brancos que propagaram peste, cobiça e fome aos nativos. De novo, os compositores trazem outro arranjo absolutamente pesado para "No meu silêncio vejo o caos, destruição // Os Karaíbas sangrando esse chão" que narra esse pedaço.

Para fechar o samba, uma esperança. Depois do caos dominar o antigo paraíso, Abaeté, ainda abalado e chorando sem parar, não perdeu a esperança no seu Aysú por Anahí e propôs um novo acordo através do seu instrumento. Tocando a flauta initerruptamente, Abaeté foi da tristeza sem fim para a felicidade de uma mágica eternidade. O samba traduz isso com "Mas do meu pranto (choro ininterrupto), renasce o amanhã // despertando nos braços de cunhã (AnahÍ)" com foco e bis no segundo verso. Confesso que esse bis é, talvez, o momento onde a melodia seja menos criativa e até mais banal, mas faz sentido por dar fôlego ao refrão principal que chega com "Ecoa na aldeia, um canto parajá // Em Tom Maior, bate o meu mangará // É Aysú quando vejo o seu sorriso // Ybimarã, meu sonhado paraíso" que é forte nos desenhos melódicos como todo o samba, mas também é feliz como uma verdadeira história de amor contrastando com muita beleza o que vinha anteriormente. Na letra, o significado é simples. Depois de chegar ao Paraíso (Ybimarã) e despertar nos braços de seu amor, Abaeté traz o canto da bondade, paz e justiça no ecoar de sua flauta, fazendo o Aysú (amor) bater forte em seu mangará (coração). É um final bonito para o samba que beira o irretocável e o impactante em quase todo o tempo. Em meio a uma safra tão cheia de sambas com problemas mais claros, até mesmo a sensação de que o samba da Tom Maior pode não ser tão funcional para uma avenida é menor para ouvidos mais criteriosos. Mesmo com algumas ressalvas com mudanças tão bruscas nos desenhos que podem dificultar o canto e o trabalho da bateria, a composição é tão acima da média para o ano presente que não pode levar uma nota diferente da máxima.

Nota: 10,0

Letra: 5,0
Melodia: 5,0

Independente Tricolor: O maior impacto do samba da Independente Tricolor para o próximo desfile é a capacidade de contar um enredo denso de modo descritivo sem deixar a poesia escapar nas linhas objetivas. A obra é excelente pela sua maneira direta de narrar a complexa saga das agojies, um exército feminino composto por mais de seis mil mulheres que protegiam o Reino de Daomé, sem perder o cuidado com cada palavra, com cada rima e com o desejo de surpreender o ouvinte. O delicado padrão de "dois lados" que é imposto em quase toda a composição é uma demonstração evidente dos compositores André Diniz, Maradona, Chitão Martins e Evandro Bocão em trazer uma trilha com poder de impactar até ouvidos mais exigentes.

Antes de entrar no verso a verso, é importante destacar o que é a temática que a escola traz. A saga das Agojies ganhou fama atualmente graças ao filme estrelado por Viola Davis que narrava um pouco da história vivida por essas guerreiras. Ainda no Século XIX, as anteriormente conhecidas como "esposas do rei" ficaram conhecidas por defenderem o Reino de Daomé de invasores europeus. Na época, essa trupe foi chamada de Amazonas em comparação as mulheres do mito grego e se destacaram por uma bravura capaz até de decepar cabeças em nome da sobrevivência de seu povo. Para a Tricolor, em seu enredo, essa narrativa pode ser trazida até para os dias atuais fortalecendo o empoderamento do povo preto, mas, principalmente, da mulher preta que sempre esteve marginalizada na sociedade.

Dito isso e sem mais delongas, o samba. O início na primeira estrofe abre com os versos "Na cor da pele // o clamor da igualdade  // toda a ancestralidade // Que Mãe África nos entregou // Esse encanto ronca em meu tambor" que já tenta fazer o enlace da história que vem a seguir com o momento atual. Esse trecho também apresenta o perfil "dois lados" que é o conceito base da obra com ancestralidade e entregou. Afinal, a Mãe África entregou a ancestralidade que é presente até hoje tendo como resultado o "encanto que ronca no tambor".

Na sequência, os versos "Na essência de guerreiras // Anciãs e feiticeiras // Guardiãs da nossa gente" começa a narrar, efetivamente, a história das Agojies. Para resumir o que significa as Agojies, os compositores resolveram que o eu-lírico da composição se vestiria de "fruto" desse exército e sendo assim, ele as resume como "anciãs, feiticeiras, guardiãs com essência de guerreiras". A tríade é inteligente pois traz várias palavras que poderiam significar uma lista, mas como foram colocadas sempre em par, antecendente ou complemento, acaba minimizando esse efeito. É bom! O fim da estrofe é muito bem embalado pela ótima melodia dos versos "Voz que nunca se calou ôôôô // Feito canto independente".

O refrão central tem uma saída absolutamente inteligente em letra, mas que acaba servindo de alerta pra melodia. A costura que divide o trecho em dois com a resultância de oposição/diferenças é muito bem sacada. Os versos "Agojie! // Neta do axé de Amani // Filha da fé da ginga // Amina e Agotime! // Agojie! // Lança da liberdade // A dignidade, mãe da força mais sublime" são permeados pelos dois Agojie! que partem o trecho em dois. Se no primeiro aparece neta, filha, no segundo aparece mãe. Se no primeiro axé e gignga, no segundo liberdade e força. É o passado e o futuro. É o que foi e o que vai ser. O único senão é que a medida que as audições vão acontecendo, uma intensa repetição de "Agojie" - quatro vezes por passada de samba - com uma mesma célula melódica acaba cansando quem escuta tirando peso do trecho (-0,1 melodia).

A segunda estrofe é composta por três leves divisões. A abertura traz um resumo dessa luta e do que ela significou no passado. Ali já no meio, aparece o enlace com o futuro. Nos últimos versos, o ensinamento que o passado traz para o empoderamento no futuro. Vamos aos versos pra explicar cada momento. "Ghezo, sua guarda feminina // O vodum e a serpente protegiam Daomé // Escudo para mil escravizados // O espanto dos soldados // Resistência de mulher". Nada melhor que esses cinco resumem tão bem o tema. Ghezo, o rei, criou sua guarda feminina. O vodum, a religião, era o ritual de iniciação dessa guarda que protegia o reino. Elas serviram de escudo para escravos, causaram espantos em outros reinos e significaram a resistência do gênero. Quer algo mais simples e direto que isso? É excelente! Raro de ver. Depois do passado ser contado, hora de conectar ele com o futuro. Aí entra "A vitória e o legado // É resistência de mulher // A luta e o fundamento vieram de lá // A lâmina é o exemplo do futuro que virá" que reforça os "dois lados" que sempre são a marca nessa composição. Vitória e legado? Resistência. Luta e fundamento? Do passado. A lâmina, marca das guerreiras, exemplo de empoderamento pro futuro. Tudo conectado. Passado e futuro. A única falha é na conjugação verbal do "vitória e legado" que não é bem complementado com "é resistência". O ideal seria que fosse no plural (-0,1 letra). Além disso, a palavra lâmina, pela célula melódica mais acelerada servindo como "subida final" fica encaixotada sem a dicção completa e dificultando o canto mais fácil (-0,1 melodia). Para fechar a estrofe, os ótimos "Preta, tenha a cabeça sempre erguida // Seja valente destemida em teu valor // Orgulho dessa cor!" sintetizam o que a mensagem da escola espera pro futuro. É com a cabeça erguida que a mulher preta seguirá valente, destemida e orgulhosa de quem é. É bem bonito e simbólico.

Concluindo a belíssima obra, chega o refrão principal com "Ilu-Ayê // É ginga que vem de lá // É força que vem de cá // Africanidade // Sou Independente quebrando correntes // Um grito de liberdade" que reforça os dois lados com "ginga de lá/força de cá" e "quebrando correntes/grito de liberdade" e é bem sucedido melodicamente - apesar da repetição do padrão visto no refrão central. É um encerramento simples, direto e bem feito para uma composição que traz a simplicidade sofisticada como marca. Se não há nenhuma grande inovação - nem mesmo o conceito dos dois lados - existe, em todo momento, um desejo de mostrar um refino e um preparo especial para cada verso encantando ouvidos exigentes e atentos.

Nota: 9,7

Letra: 4,9
Melodia: 4,8

Águia de Ouro: Ano após ano, o Águia de Ouro demonstra um perfil muito particular de fazer Carnaval. Desde o rebaixamento em 2017 quando falou da causa da defesa animal, a escola da Pompeia se "fechou" num mundo mais seu afastando-se dos comentários positivos ou negativos que estão em outras praças. Esse distanciamento evidente fez com que a agremiação mergulhasse ainda mais em temas de difícil aceitação popular, mas que não tiram a chamada zona de conforto que sua comunidade gosta e sente segurança. O tema sobre a história do Rádio com uma homenagem ao radialista Eli Corrêa é uma das demonstrações mais evidentes desse alinhamento.

O enredo de 2024, aliás, é uma reverência aos cem anos do rádio, mas com um viés muito particular de homenagem por exaltar uma figura que, apesar de famosa, não é nacional e tampouco atemporal. Por exemplo, apesar de contar cronologicamente a trajetória do meio de comunicação mais resistente da história, a agremiação fez questão de simbolizar o veículo na figura de Eli Corrêa. É como se o protagonista da temática fosse essencial para a história aqui exposta. É uma coisa peculiar, mas que apresenta muito do que o Águia gosta e se sente bem em fazer. O samba que embalará essa apresentação é fruto também desse estilo da azul-e-branca em fazer desfile. O concurso interno que definiu a trilha-sonora foi fechado e sem espaço para divulgação das obras e o resultado foi a terceira junção de samba em cinco anos na escola. Os dezessete compositores que assinam a composição são Tales Queralt, Aquiles da Vila, Lucas Queralt, Chanel, Marcelo Dores, Salgado Luz, Luccas Barroso, Abílio Jr, André Ricardo, Bruno Ribas, Nando do Cavaco, Ivanzinho, André Filosofia, Caio Ricci, Cauê Ricci, Edson Lins e Ronny Potolski.

Falando diretamente da composição, é bastante nítido que o grupo, mesmo separado inicialmente, seguiu bem o formato utilizado nas últimas trilhas que embalaram o Águia no Anhembi. Pouco compromissado com rimas de impacto e com melodias mais voltadas para o canto mais "gritado" e menos "sambado", o estilo é voltado para que o componente passe com garra na avenida e ponto. Entrando no verso a verso, o início é interessantíssimo com "Ah, quanto tempo passou // E minha voz eternizou // Marcantes as lembranças // Heranças a encantar" que tem uma célula melódica que remete ao clássico som da "Voz do Brasil", um dos maiores símbolos do rádio, é uma abertura bacana e sintonizada com o espírito do enredo. A sequência traz "O Padre criador abençoado // Na ciência e na fé, injustiçado // O Guarani, o violino anunciou // No Centenário que o brado ressoou // Ao povo iletrado, sabedoria e esperança ao escutar" que resume várias passagens do tempo. O padre Landell de Moura, pioneiro na transmissão sem fios, deu origem a transmissão de voz via ondas de rádio no Brasil. No centenário da Independência em 1922, a Ópera Guarani com seus violinos foi a primeira transmissão oficial realizada. Essa revolução significava inclusão para aqueles que não detinham o poder da alfabetização. Em termos de enredo, tudo bem amarradinho, mas é pobre. Além de rimas óbvias e marcadas como "abençoado, injustiçado, brado, iletrado" (-0,1 letra), a melodia também cai bastante com respiros repetidos no meio de todos os versos, demonstrando falta de criatividade nos desenhos (-0,1 melodia).

Chegando ao refrão central, a obra mergulha na chamada "Era de Ouro" do rádio com as conquistas do futebol (Copas do Mundo de 1958 e 1962) e o despontamento das vozes que marcaram décadas como Carmen Miranda. O samba narra isso com versos insólitos (-0,1 letra) como "É gol... é gol... é gol // A torcida vai delirar (Olê olá) // Era feita de ouro, o nosso tesouro // O dom de cantar (Lalaia)" que traz rimas como ouro/tesouro e delirar/cantar que impactam negativamente na melodia (-0,1 melodia). A estrofe seguinte apresenta um pouco do que o rádio significou nas décadas seguintes. "Palavra, o som que toca a alma // Unindo a nação num só lugar // A crença em Maria é sagrada // A nossa oração nos salvará // Chorei feito amante apaixonado // Dancei e você foi o meu par". É um resumo sobre o que o veículo trouxe como vertentes para seus ouvintes. A palavra no rádio traz leveza, humor, notícia, momentos marcantes e tem alance nacional com a popularização, mas a fé não é esquecida na Hora do Angelus, tampouco o entretenimento com as cartas de amor e as músicas de sucesso que embalam a vida dos brasileiros. A questão é como isso é feito. A letra e a melodia seguem extremamente pobres e previsíveis. Repetições de "A crença" e "A oração" e "Chorei" e "Dancei" nas aberturas de versos dão pouco fôlego para variações de melodia (-0,1 melodia). Além disso, a criação simplória e sem profundidade incomoda quem quer uma descrição mais poética do tema. É tudo tão literal que chama a atenção negativamente (-0,2 letra).

Fechando a estrofe e preparando o refrão principal, os versos "Águia de Ouro: A sua estação // Ligada no meu coração // Esse amor não se acabou // E no futuro assim será!" trazem mais uma característica dos sambas que a escola apresentou nos últimos anos. Todos, no fim da segunda estrofe, trazem a explosão no "Águia". Foi assim em "Águia, razão do meu viver" em 2020 e "Águia guerreira, teu samba é imortal" em 2023. Além disso, também reforça a imortalidade do rádio dizendo que o amor pela "caixinha" não acabou pois o futuro está garantido. O problema é que esse "futuro" fica pouco claro na letra, sendo uma descrição mais óbvia do que isso significa (-0,1 letra). Além disso, as rimas com estação e coração também travam a melodia, servindo apenas como incentivo ao canto e pouco a dança (-0,1 melodia). Mas aí vem o fechamento e aí que o samba se complica um pouco.

Ok, a ideia é revelar o eu-lírico do samba (Eli Corrêa) nos versos "Alô! Alô! É hora de sintonizar // O show vai começar // Oiiiii gente... o "sorriso do rádio" está aí // Vila Pompéia vem pra sacudir" que trazem o bordão "Oiiii gente" clássico em suas intervenções no rádio paulistano para criar empatia com o ouvinte, mas... é tudo muito, mas muito pobre e vazio. É hora de sintonizar (mas a Estação Águia de Ouro já não estava ligada no coração?), o show vai começar (sintonizar, começar, é hora, o show vai... tudo tem praticamente o mesmo significado e não introduz nada de diferente. Além disso, o verso "Vila Pompéia vem pra sacudir" tem exatamente o mesmo sentido com a diferença apenas do bairro da escola estar destacado. Ou seja, três dos quatro versos do refrão não dizem nada para o tema e nem servem como grande incentivo ao canto e a dança (-0,1 letra) e (-0,1 melodia). O único destaque positivo é a boa sacada de colocar o slogan do radialista e seu apelido mais conhecido que trazem boas referências sem apelar ou perder criatividade. É a melhor saída da letra do samba e um dos destaques da obra junto da melodia inicial já citada. Como resumo, é evidente que o Águia está longe, muito longe de ter um samba de grande destaque. Pelo contrário, a obra possui tantas limitações que chama mais atenção pelos problemas que possui do que por suas poucas virtudes de criatividade. A questão é que o Águia, apesar de tudo, ainda trouxe uma obra mais sintonizada com o que vem apresentando e isso, mesmo com tudo que acarretou, ainda é uma diferença grande diante da crise identitária que a cidade de São Paulo passa em seu Carnaval.

Nota: 8,9

Letra: 4,4
Melodia: 4,5 

Gaviões da Fiel: A busca pela utopia misturada com o desejo pelo reviver o passado é o que move o enredo e o samba dos Gaviões da Fiel para o próximo desfile. Depois de viver mais um ano em relacionamento sério com o meio da tabela por conta das limitações financeiras que seu caixa impõe ao barracão, a alvinegra luta para voltar ao topo com um ar retrô através do enredo "Vou te levar pro infinito". O título, aliás, é uma referência ao famoso verso do samba de 1995, o mais famoso da história da escola, e dá bem o tom do que a agremiação se propõe mostrar. Delirar, viajar, brincar... tudo dentro do que é possível fazer no imaginário infinito é o que será retratado pela Fiel Torcida. A composição de autoria de Grandão, Sukata, Guga Pacheco, Cláudio Mattos, Juliano, Souza da Cuíca e Japa Ovelha JB constrói uma letra curtinha, de pouco impacto criativo, apostando tudo numa construção estética e melódica que remete a fase áurea da entidade no Carnaval.qua

Antes de tudo, é importante ressaltar a dificuldade que esse tipo de temática impõe a quem tenta compor um samba de enredo. É um tema amplo, aberto e sem um fio condutor claro. Afinal, as visões de infinito são incontáveis e quase todas sem pé na realidade fria da caneta no papel. É complexo demais. Além disso, a sinopse em formato quase de poesia também não ajuda a determinar limites, digamos assim, ao que será posto na letra do samba, dificultando o caminho para o compositor. Muito por isso, creio que a aposta da escola foi naquilo que a mais deixava a vontade em termos musicais. No que era mais familiar para o veterano intérprete Ernesto Teixeira. E isso, sem dúvida, encaixa bem no vencedor do concurso interno e futura trilha-sonora no Anhembi.

O início do samba já apresenta o eu-lírico da obra no gavião, símbolo da escola e referência para o que significa componente na entidade. Os versos "Vai meu gavião ôô... voa pro espaço sideral // Vai meu gavião no infinito Carnaval" são uma boa introdução para o que vem a seguir. Mesmo sendo bisados, eles são fortes, possuem uma célula melódica criativa e passam bem como finalização/abertura da obra. Depois que o Gavião pisa no espaço sideral, é hora do samba começar sua viagem. O início com "Quem sabe um dia, quando a mente delirar // Vou te levar pro céu, eu vou (eu vou) // Atravessar o tempo // A imensidão do universo me guiou" faz referência ao início do enredo que tenta misturar o imaginário com o passado. A mente delira, a viagem é pro céu (referência, de novo, a 1995), atravessando o tempo (será futuro ou passado?) a imensidão guia. É bonito por trazer um diferencial de não se prender num universo delimitado, podendo se encaixar em qualquer aspecto temporal e contexto histórico.

A questão é que o samba volta pro "pé no chão" com "Delirei, sonhei com a grande explosão
// Me fiz um arlequim nessa viagem // Fui desbravar o lume das estrelas //Colombina a embarcar nessa viagem // Onde reina o esplendor da natureza" que aperta bem o calo na questão enredo. Se a história vinha sendo contada de maneira meio que superficial, sem pé na realidade, esse trecho tenta colocar o gavião no prumo, mas faz a poesia ir embora. Palavras seguidas como delirei/sonhei e rimas repetidas como nessa viagem/nessa viagem e misturas como lume das estrelas com esplendor da natureza tiram o brilho da letra (-0,2 letra).

No refrão central, o samba apresenta alguns pequenos problemas como frases soltas e uma melodia meio travada. "Grão de areia no deserto, gota d'água no oceano // Ambição do ser humano pode pôr tudo a perder // Já é hora de pensar... // Pro futuro renascer". O início é uma continuidade das citações sobre a natureza, mas não diz nada, repare. Esplendor da natureza, grão de areia no deserto, gota d'água no oceano, ambição do ser humano pode pôr tudo a perder. Aqui, a ideia é tentar criar um alerta para todos que nem isso é exatamente infinito, mas a forma como os compositores - muito por causa do enredo travado - retrataram é jogada, sem devida conexão. (-0,1 letra). Além disso, a melodia do versão "já é hora de pensar...pro futuro renascer" ajustada após a disputa ficou sem um encaixe ideal no restante do samba, parecendo um elemento alheio (-0,1 melodia). Isso, claro, sem falar que as frases tão marcantes em curto espaço também dificultam o canto não dando espaço pra respiro pro componente (-0,1 melodia).

A segunda estrofe tenta seguir o caminho das frases soltas e perde ainda mais o que a primeira parte do samba tentou trazer. "Ser a criatividade infinita // Ver a pintura mais bonita // O dom de uma arte surreal // No tom de um acorde genial // Brilha no meu verso amor e emoção // Infinito que habita o coração". Aqui, o samba embarca na parte das artes e da música para falar do que é infinito. Cita a criatividade, a pintura, a música, aquilo que depende da genialidade para deixar marcas. O problema é que tudo muito vago, sem nenhuma profundidade ou referência mais clara. Além disso, a letra cai muito em qualidade com rimas como infinita/bonita, surreal/genial, emoção/coração (-0,2 letra) e a repetição de palavras como infinita/infinito que marcam a melodia tirando beleza e energia (-0,1 melodia).

No fim, o refrão principal (ou seria pré-refrão?) termina o samba falando do infinito Corinthians. Em "Quem dera... // Meu samba nas constelações (Eu sou! Eu sou!) // Eu sou Fiel, eu sou Corinthians // Eternamente Gaviões" a composição vai pra linha de retratar o que seria o infinito alvinegro. O amor pelo Corinthians e a ligação eterna com o Gaviões são símbolos disso por aqui. Mas aí o samba também escorrega em repetições cansativas com "Eu sou Fiel" e "Eu sou Corinthians" que empobrecem a letra e travam a melodia (-0,1 letra) (-0,1 melodia). O conjunto quando olhado no detalhe é mais pobre do que parece inicialmente, muito por dois pontos. O primeiro é óbvio: A melodia, apesar de escorregões leves, é bem feita e ainda tem um alma de anos 90 com uma estruturação que prepara a explosão nos dois refrães colados. Além disso, a letra dividida em três refrães e bem mais curta que a média atual também traz a linha do que a escola sempre foi lá atrás. Por fim, o enredo útopico também traz uma vaga lembrança de outros temas que foram retratados nesse caminho como os enredos de 1996 (Quem Viver Verá o Vinte Virar) e 2001 (Mitos e Magias na Triunfante Odisseia da Criação) que também divagaram de forma lúdica pelo que seria o futuro e o que tinha sido a criação. É nesse embalo, mesmo com os problemas, que a Fiel Torcida vai pro próximo desfile.

Nota: 9,0

Letra: 4,4
Melodia: 4,6

Barroca Zona Sul: Depois de conseguir uma estabilidade inédita no Grupo Especial do Sambódromo do Anhembi, a Faculdade do Samba mira o salto definitivo de patamar com uma reverência a si própria e sua história no ano em que completa cinquenta anos de existência. Nesse cenário, a tentativa de emocionar quem escuta é a tônica da composição que irá retratar essa luta recheada de altos, baixos e mudanças. Em toda a letra, a busca dos compositores Thiago Meiners, Claudio Mattos, Sukata, Cacá Camargo, Fernando Negão, Pixulé, Turko, Rafa do Cavaco, Júlio Alves, Rodrigo Alves, Wilson Mineiro e Dilson Marimba é fazer com que o ouvinte se sensibilize com a saga de uma escola que apesar de jamais ter conquistado uma taça no Grupo Especial ou até uma posição de relevância, traz muita bagagem e tradição. A questão é que o enredo, apesar de tocar muito quem fez parte dessa trajetória, poderia ter sido melhor desenvolvido em alguns trechos.

O tema em si é interessante e sempre gera uma perspectiva positiva. Afinal, falar de si mesmo e de suas referências sempre mexe com o coração de quem ama a entidade e o samba em geral. A questão é que algumas coisas não foram tão bem exploradas. O Barroca é uma escola que sempre teve dificuldades de estrutura e, muito por isso, o enredo reforça isso em algumas passagens como a citação ao barracão feito apenas com Juta e Sisal e a menção sobre o momento onde tudo parecia perdido e o futuro parecia apenas destinado ao fim. Por outro lado, algumas relações como a parceria histórica com o Vai-Vai e até o grande momento na era Tiradentes em 1985 passam despercebidos ou em são citados de forma superficial, trazendo um conflito sobre qual é o universo que a agremiação busca apresentar nesse ano. De qualquer forma, o samba acaba - em determinados momentos - sofrendo com isso e com algumas saídas previsíveis em letra e melodia. Sem mais delongas, vamos ao verso a verso.

A narrativa da obra é através da visão de Pé Rachado, baluarte número 1 e fundador da agremiação. É ele quem traz os trechos rememorados em sua ótica. O início já é uma apresentação com "Prazer, eu nasci Sebastião // A memória da canção que me fez um baluarte // Prazer, sobrenome Pé Rachado // Um sambista eternizado, fiz valer a minha arte // Fui aprendiz dos passos de Cartola // Fundei a minha escola" que resume bem o que ele significa e como a agremiação surgiu. O Sebastião virou o baluarte Pé Rachado, aprendeu com Cartola e assim fundou o Barroca. Particularmente, eu não gosto do bis da palavra Prazer que acaba trazendo uma trava melódica logo de cara não ajudando o samba a pegar firme no acelerador (-0,1 melodia). A continuação antes do refrão de meio tem uma outra sequência em formato de falso bis com "Se o mundo é um moinho, ele dizia // Onde aflora poesia vive o sangue verde e rosa // Sonho sob as bênçãos de Mangueira // Eu bordei tua bandeira de verde e rosa" onde a repetição do verde e rosa é a baixa mais grave (-0,1 letra). Além disso, algumas expressões como dizia/poesia e Mangueira/bandeira também chamam atenção por travar a melodia com desenhos mais simples e cansativos (-0,1 melodia).

Chegando ao refrão central, o samba conduz a história pro início da trajetória da agremiação. Depois de falar como surgiu a fundação e do que a inspirou, vamos pra ver como foi o começo de tudo. É interessante a ideia de retratar isso através da bateria com "Se tem pandeiro, o cavaco e o tamborim // A batucada sempre falou por mim" sendo uma excelente síntese de que tudo começou numa simples batucada. Depois, o primeiro ambiente é citado em "Lá na Vila Mariana assentei o teu terreiro // A casa e a raiz do partideiro". Nesse pedaço, o samba faz boas associações e consegue matar duas coisas em poucos versos, mas apelando um pouco para soluções fáceis como lista do "pandeiro, cavaco, tamborim" e de frases esticadas para citar uma mesma coisa como "casa e a raiz do partideiro". (-0,1 letra).

A segunda estrofe parte para citações sobre momentos da história da agremiação. Em versos como "Desfilei na Tiradentes, quanta emoção // Com juta e sisal fez o teu barracão // Em versos, um cantar de liberdade // Compus um samba pra falar do meu amor // De um povo que jamais te abandonou // De quem bambeia, mas é ruim de derrubar", a ideia é retratar fases dessa trajetória. Desfilou na Tiradentes, fez o barracão apenas com dois materiais simplórios (juta e sisal), compôs um samba pra falar de Liberdade (Asas Para a Liberdade - 1987) e agora está compondo um samba para retratar essa luta, esse amor, principalmente de quem nunca largou a escola nos piores momentos. É bonito, mas poderia ser mais bem explorado. Principalmente uma citação mais direta ao grande sucesso da agremiação que foi o enredo sobre Chico Rei (1985) quando a primeira estrela quase veio para a Zona Sul (-0,1 letra). No fim, o samba prepara bem a explosão com "Barroca, inesquecíveis carnavais em tua história // Fez renascer da tua glória // Um jubileu de ouro pra comemorar" que é bastante emocionante até pra quem não é íntimo da verde e rosa.

O pré-refrão antes do principal é, de muito longe, o melhor momento da obra. Citando orixás, o Barroca consegue se conectar de uma forma criativa e sem parecer pedante. Além disso, a melodia é forte e bem embalada em "É a flecha de Oxóssi, filha de Odé // Demanda de Exu, abençoada por seu Zé" que traduz tudo que foi essa trajetória em cinquenta anos e principalmente nos últimos anos com enredos que exaltaram Oxóssi (2019) e Zé Pilintra (2022). É bem feito demais. Já o refrão principal, infelizmente, não mantém essa linha com "Ôôô, firma ponto nesse chão // A velha guarda é minha religião // Barroca, onde aprendi a ser bamba // És minha vida, Faculdade do Samba" que contrasta em criatividade e desenhos melódicos. Se o ápice vem antes, aqui parece aquela citação feita apenas pra fechar. As rimas chão/religião e bamba/samba passam sem criatividade e ainda perdem o embalo que vinha do trecho anterior (-0,1 melodia) e (-0,1 letra). O olhar geral é que o Barroca, outra vez mais, apresenta um samba competitivo e com alguns grandes momentos - principalmente quando saiu das citações naturais de um tema assim - e ainda consegue emocionar seu próprio componente por retratar uma história assim com um viés de superação. A questão é que dentro do contexto letra, melodia e samba-enredo, talvez isso pudesse ter sido melhor embalado para conquistar, de novo, o posto de um dos melhores sambas do Grupo Especial.

Nota: 9,3

Letra: 4,6
Melodia: 4,7

Tucuruvi: O Acadêmicos do Tucuruvi seguindo sua ideia de dar uma guinada temática em sua história, apresenta um enredo afro após doze anos. Indo além, é um enredo afro muito mais profundo, dado o viés mais religioso que mergulha no detalhe dos relacionamentos de amizade dos orixás Exú e Orunmilá para poder cantar o oráculo de Ifá como uma filosofia de vida seguindo os preceitos e princípios Yorùbá. Ou seja, a ideia da dupla de carnavalescos Dione Leite e Yago Duarte e dos enredistas é dar um viés mais denso para uma escola que se acostumou com temáticas leves e de apelo mais popular. Mudar isso de um ano para o outro não é exatamente fácil e ainda causa certa estranheza em todos os contextos sejam de comunidade, quanto de público e crítica.

O samba de Macaco Branco, Carlos Bebeto, Djalma Santos, Chiquinho Gomes, Dr. Marcello Medeiros e Denis Moraes deixou ainda mais "carregada" a missão de conta essa história. A letra abusa de palavras em iorubá para marcar cada momento do enredo e dar uma cara ainda mais "profunda" ao que a história se propõe contar. É como se quando o Tucuruvi tivesse aceitado a missão de cantar essa relação dos orixás para apresentar a filosofia de Ifá, a azul-e-branca também assinasse um desejo de mergulhar nesse universo sem concessões para o que era sua cara até então. O rompimento de perfis é tão claro que até a melodia, de nuances leves sem viradas ou desenhos mais inspirados, também contrasta com o estilo quase "natural" dos últimos sambas do Zaca quando a letra era mais "simples" e as células melódicas eram mais trabalhadas para facilitar e incentivar o canto dos componentes.

Dito isso, vamos ao samba. Narrado em primeira pessoa por Exú, um dos protagonistas do enredo, o início é uma frase bonita em iorubá. Com "Epá Ojú Olorún Ifá Ó!" o samba quer dizer "Viva os olhos de Deus, Ele é Ifá!" e continua com "Labareda de ifé, a força igbadú" que significa labareda de amor, a força da existência. A sequência com "Ilumina meu caminho e fundamentos de Odú // Poesia de Irofá soprou além-mar // Tem dendê nos mistérios de Orun" fecha a estrofe com uma realização até simples. Depois da abertura que traduz tudo, vem o detalhamento de Ifá. Ele é labareda da criação e do amor (Ifé), a força de existência (Igbadú), a luz do caminho e do destino para o futuro (Odú), a melodia da felicidade (Irofá) e o conectar com o habitar sagrado (Orun). É um ótimo resumo em curtos versos. A questão é quando analisado no detalhe, falta alguma profundidade - marca desse tema - para detalhar sem criar o efeito lista cenários que conectem o ouvinte ao tema. As frases são inteligentes, mas causam a sensação de estar faltando algo ali para dar mais peso no que está sendo contado. (-0,1 letra).

O refrão central segue essa linha curtinha com "Irukerê, Irukerê // Simboliza a realeza, aos olhos de Opelê // Irukerê, Irukerê
// Ilê Brasil aiê aiê". Nesse pedaço, a composição aposta na força da palavra "Irukerê" para contagiar. O atributo sagrado do orixá Oxóssi é usado como ligação para traduzir a chegada de Ifá ao Brasil. O atributo de Oxóssi, o rei de Ketu, é o símbolo de realeza aos olhos de Opelê Ifá, rei colar ou rosário. O atributo de Oxóssi, o rei de Ketu, é a casa ancestral de ifá na terra Brasil. A tradução literal marca bem essa transição. Porém, esse pedaço é um pouco cansativo com "Irukerê" repetido dentro do refrão e através do bis do mesmo que joga a melodia para um tom quase arrastado, o que contrasta com a ideia de usar a expressão como respiro para trazer força e incentivo ao canto (-0,1 melodia).

A segunda estrofe ainda fecha o conceito apresentado com "Ori canta o filá, salve meu Babalawô" e mergulha na parte mais "Brasil" do tema. Os versos "Terra, fogo, agua e ar... Obará // Nos olhos de Opón Ifá vejo o fim da minha dor", o samba apresenta a ideia de que Ifá se enraizou no Brasil através dos elementos e eles que são os olhos de Opon Ifá significam o caminho para a superação, afinal, são neles que vemos vidas e possibilidades para enxergamos a dor e a delícia que é ser humano, com acertos e erros. A questão aqui é que o verso inicial que apenas cita os elementos não é bem construído justamente pois o verso seguinte já significaria tudo que é mencionado anteriormente (-0,1 letra). A seguir surge "E na gira das Yás... Odara // Respeitem minha ancestralidade // Tolere a diferença na raiz // Meu samba luta pela igualdade // No Ilê da Cantareira, sou feliz" que mergulha, enfim, Ifá no contexto sambista. As Yás (Baianas) são as mães ancestrais e o respeito é a premissa base de Orunmila, outro protagonista da temática. O samba e o Tucuruvi, claro, são bandeiras para chegar nesse fundamento. Até aqui, tudo ótimo. A questão é que "Negra cultura, nossa essência // Na filosofia, na religião" que complementam a ideia de servir como base do que o samba significa para Ifá acaba ficando solto, como se fosse apenas uma citação apenas para "encher linguiça" e não para dar mais peso ao argumento (-0,1 letra). Tanto é que os últimos versos "Herança de Ifá é resistência // Me abraça somos irmãos" já encerra muito melhor e promove o encontro "no abraço" entre os protagonistas Exú e Orunmilá.

O refrão principal fecha o samba com "Olori, Alagbará, Olodunmaré // Axé Orunmilá // A ponta da lança Igbá de Ifá // Tucuruvi Laroiê Mojubá" é resumido como uma saudação inicial a Olodunmaré, como o senhor supremo, o Deus dos Deuses. No verso, uma benção a Orunmilá que é traduzida pela frase de "Você é o olho de Deus". Ou seja, depois de saudar o Deus dos Deuses, hora de convocar seus olhos. A sequência com a ponta da lança Igbá de Ifá é traduzida através do tridente do narrador Exú que anuncia o momento de Ifá e termina pedindo para que o Tucuruvi olhe por ele pedindo respeito e saudação. É um bonito fim mesmo com mais um leve efeito lista quando observado sem a tradução. Aqui, a questão é que a melodia do "Igbá de ifá" é atropelada e acaba criando o prejudicial sintoma do "muita letra pra pouca melodia" (-0,1 melodia). Quando chegamos ao fim do samba, percebemos que o Tucuruvi acabou trazendo um desafio para si mesmo no próximo desfile. A difícil letra somada a uma melodia de poucos momentos explosivos contrasta com uma comunidade que sempre se notabilizou pela alegria no evoluir e a narrativa fácil para o cantar. Conquistar a comunidade rompendo esse padrão será o primeiro ponto para que a trilha sonora tenha sucesso no Anhembi.

Nota: 9,5

Letra: 4,7
Melodia: 4,8 

Rosas de Ouro: A palavra desprentensioso é a que melhor define o samba da Sociedade Rosas de Ouro para o próximo desfile. Voltando a cantar São Paulo, sua maior inspiração, a Roseira traz para o Anhembi uma obra leve, de soluções que não trazem nenhum grande rebuscamento, mas que acaba encantando em alguns momentos por isso.

Antes de detalhar o samba e o enredo, é importante fazer uma espécie de levantamento prévio do que a parceria composta por Vaguinho, Marcus Boldrini e Rapha SP já fez na agremiação. Vencedores em outras disputas (2016, 2017, 2018 e 2020) esse trio sempre se notabilizou por composições que mesmo sem brilhos de sacadas geniais em letra galgavam seu sucesso nas melodias de mais pressão nos desenhos para arrebatar a comunidade. Ideias como "eu quero ver um banquete de alegria", "amor, chame as crianças" e "eu sei que o tempo voa e vai voar" são vistas como excelentes por grande parte do público pela melodia envolvente, daquelas que tira a gente da cadeira. Na obra de 2024, o trio dobrou a aposta. Foi pro tudo ou nada. Versos como "Que tal a gente agradecer a Deus" dividiram opiniões - veremos mais a frente - mas a linha de desenhos na melodia continua aqui. É tudo muito feito com força para que a medida que o verso seguinte chegue, a sensação de explosão aumente. Ou seja, mesmo com o aumento de risco na letra, a identidade musical continua aqui.

Dito isso. vamos ao enredo e ao samba. O enredo é um resgate de conexão da azul e rosa com sua temática favorita. Campeã em quatro oportunidades falando da cidade de São Paulo, a flor da Brasilândia exalta a Selva de Pedra através de um dos seus maiores cartões postais. Os setenta anos do Parque do Ibirapuera serão festejados em 2024 e celebrados no sambódromo. É uma proposta bem panfletária que irá, sim, exaltar de forma ostensiva a diversidade e a pluralidade oferecidas pela capital paulista através de um símbolo que representa isso por completo. O samba, por sua vez, também traz um "resgate" de identidade da escola com a linha de melodias que a mais fez feliz nos últimos anos. Como dito acima, o trio de compositores conseguiu outras quatro vitórias nos últimos seis concursos da agremiação seguindo essa linha de arrebatamento musical e simplicidade no cantar. Com isso, é evidente que a letra do samba de 2024 passa longe da perfeição, mas, ainda sim, não está longe do nível apresentado em outros anos.

O início com "bom dia, é carnaval" é uma sacada legal por conta do horário de desfile da escola. Já no amanhecer do dia, a Roseira dá seu "bom dia" para o público. A sequência com "vem ver a esperança renascer // eu vi um lindo sonho florescer // nós todos somos um" é uma introdução interessante para conectar a Roseira ao espírito do Parque. Vindo de resultados ruins, a escola se enche de esperança e floresce junto da sua maior inspiração. Talvez o verso "nós todos somos um" pudesse ser mais inspirado, mas passa dentro desse contexto. A partir daí, o samba engata em uma solução espetacular para falar do lugar. "Trazer a paz no caos // fazer a nossa essência se expressar // o avesso do avesso ser normal" tudo ainda continua na ideia de "serve pro Ibirapuera, mas também dá pra encaixar na escola", mas fica ainda mais bonito pensando no que significa. No meio da caótica São Paulo, uma paz. No lugar de tantas vertentes, a essência base. Onde tudo é pressa, a calmaria é o avesso sendo normal. É lindo demais. É poesia pura! O que peca - gravemente - é o verso "nesse solo ancestral" que não fecha bem essa ideia e acaba trazendo um impacto de "já vi isso em outro lugar" (-0,1 letra). Você que deve estar lendo isso, deve estar se perguntando da melodia que eu tanto falei antes. Ela segue um padrão impressionante dessa parceria. É tudo conectado para que o próximo verso seja mais explosivo. O tom sobe a medida que os versos avancem. O renascer empurra o florescer que empurra o um que empurra o caos que empurra o expressar até que tudo deságua no fenonemal refrão central.

Aliás, esse refrão merece um destaque especial. No meio de tantas coisas mais do mesmo por aí, o trio encontrou um "Nasce com as flores, quase Primavera // Árvore de Amores, meu Ibirapuera" que é o resumo de quase tudo que o local significa. É simples, bonito, básico e poético. Parece até refrão dos anos 70. O "Nasce com as flores // quase Primavera" é uma coisa tão bacana que chega a surpreender. O Parque foi concebido através dos desenhos de jardins pelo paisagista Otávio Augusto Teixeira Mendes e inaugurado em 21 de Agosto de 1954 a um mês do início oficial da Estação Primavera. Ou seja, nasceu com as flores de um jardim numa quase primavera. Maravilhoso!

Na segunda estrofe é que o samba fica mais forte na melodia e perde um pouco na letra. Para descrever o que o espaço representa, os compositores apostaram numa linha mais descritiva nos versos "É presente que o passado nos deixou // futuro para sempre a preservar // espaço verde onde o tempo para // transforma toda energia do ar // reduto do esporte, da arte, cultura // saúde mais pura, corpo e mente sãos". É uma aposta de simplicidade que dá mais uma marca clara da caneta deles, mas que poderia ter sido melhor desenvolvida. Há versos mais inspirados com "é presente que o passado nos deixou, futuro para sempre a preservar", mas nem tanto em "reduto do esporte, da arte, cultura, saúde mais pura, corpo e mente sãos". O contraste entre a poesia que mistura elementos pouco triviais com uma lista de elementos é uma baixa aqui (-0,1 letra). Na melodia, tudo segue impecável. Mesmo cantando rápido, as variações de tom seguem claríssimas nos desenhos como na pausa do "Para" que encaixa perfeitamente no universo da composição. Fechando a estrofe, vem a explosão espetacular.

"É tão bonito contemplar o inifinito // Rosas pra comemorar, cantar pra você // Chegou a Brasilândia com toda humildade // mostrando a sua identidade" é um atropelo. Daqueles que a placa precisa ser anotada. Quem está desatento é levado pela melodia por horas e horas. É um ápice incrível ainda consegue ter sacadas inteligentes como "contemplar o infinito" e o "Rosas (flor) pra comemorar". Aliás, a solução desse verso é excelente pois serve como no sentido literal da flor sendo usada como presente para comemoração ou da escola de samba Rosas de Ouro sendo o elo da comemoração do Ibirapuera. É bem feito demais. Só não gosto do "toda humildade" que acaba contrastando com essa parte mais simbólica e menos literal da letra (-0,1 letra). Até aqui, o samba, apesar de pontuais problemas de letra, vai muito bem. Mas ainda tem o refrão principal.

E é nele que mora o grande problema desse samba. Assim como em 2018 quando essa parceria fez um samba que terminava com o eu-lírico voltando pra casa após viajar de caminhão antes do refrão, agora, o samba "termina" antes do refrão principal com a chegada da Brasilândia mostrando sua identidade paulistana no Anhembi fazendo com que os versos seguintes sejam dispensáveis. Vejam: "Amanheceu // Que tal a gente erguer as mãos pro céu // E agradecer a Deus o prazer de estar aqui // Prepare o seu coração // Sou capaz de apostar // Minha Roseira vai te emocionar". Nenhum dos seis versos se conecta com qualquer coisa que o samba trouxe antes. Nem mesmo o "Amanheceu" pode ser usado como justificativa pois o "bom dia" lá do primeiro verso já faz a abertura. Forçando muito a barra dá pra dizer que isso é uma introdução para o que a escola apresenta anteriormente, mas ainda, sim, não é das melhores já que nenhum elemento do enredo é citado para que sirva como aviso do que vem a seguir. É muito, muito triste tirar mais pontos de uma letra tão bem feita por um erro tão bobo quanto esse (-0,2 letra).

Quando o olhar é posto no conjunto, fica claro que o trio de compositores não fez uma obra tão diferente do que já tinha apresentado. As virtudes, as ideias mais primordiais e até os erros já apareceram em outros contextos de composições do time no próprio Rosas de Ouro. É o jeito deles de fazer samba para essa agremiação. Isso é tão raro que merece elogios. Numa cidade tão cheia de fórmulas, essa parceria também tem a sua, mas de um modo especial que acaba encantando mesmo com defeitos. Não, o samba da Roseira para o próximo desfile não é o mais inspirado da história, tampouco dessa parceria, mas é, sem dúvida alguma, o mais "Roseira" que essa escola poderia ter e isso não é pouca coisa no Carnaval de São Paulo.

Nota: 9,5

Letra: 4,5
Melodia: 5,0

Vai Vai: O novo retorno do Vai-Vai ao Grupo Especial apresenta uma escola diferente da que passou pela elite em 2022. Se naquele ano, a intenção era apenas festejar a volta e tentar a manutenção dentro de um cenário repleto de limitações financeiras e estruturais, agora, a caminhada é diferente. O carnavalesco Sidnei França, campeão em cinco anos por Mocidade Alegre e Águia de Ouro, é um dos maiores responsáveis pela retomada da confiança nas bandas da Saracura. Dono de um estilo autoral e repleto de referências claras sobre o que deseja apresentar na avenida em termos de conceito, o artista conseguiu unir inúmeros grupos dentro da agremiação em prol do objetivo de fazer a preta-e-branca brilhar entre as principais escolas da cidade.

O enredo para o próximo desfile é uma proposta de debate sobre como a arte de rua e o hip-hop foram marginalizados pela sociedade como um todo, mas nunca deixaram de se fazer presentes dentro da estrutura da capital paulistano. A ideia é deixar claro que apesar de nunca terem sido plenamente aceitos entre a elite, os dois movimentos se misturam e são representações do que é a São Paulo da periferia, do povo preto e, claro, do Vai-Vai, uma entidade que nasceu na rua e sempre fez dela a sua verdadeira casa. O samba vencedor do concurso interno na alvinegra é dos compositores Danni Almeida, Vagner Almeida, Marcinho ZS, Clayton Dias, Luciano Bicudo, Claiton Asca, Rodrigo Atração, Edson Liz, Anderson Bueno, Bira Moreno, Mario Lucio, Leandro Martins e Reinaldo Papum e construiu um padrão que une a força melódica do Vai-Vai com o estilo mais rebelde proposto pela temática.

O início da composição apresenta a abertura do enredo onde, Exú, o dono da rua, abre os caminhos para o Vai-Vai, um dos legítimos representantes dessa cultura, passar para contar a história. Os versos "Laroyê, Axé! Me dê licença // Saravá, "seu" tranca-rua // Eu não ando só, o papo é reto // E a ideia não faz curva" transmitem esse ponto de partida já com o estilo "paulistano" de falar com frases como "papo é reto" e a "ideia não faz curva". A sequência mostra a rebeldia proposta pelo tema. No enredo, o ponto de partida para a marginalização da arte de rua é a semana de arte moderna em 1922 quando a elite definiu o que era a verdadeira arte moderna excluindo aqueles que não faziam parte do seu grupo. O samba traduz isso em "Renegados da moderna arte // Não faço parte da elite // Que insiste em boicotar // "Acharam que eu estava derrotado // Quem achou estava errado" // Corpo fechado, sou cultura popular // Meu verso é a arma que dispara // E a palavra é a bala pra salvar". Aqui, a composição resume essa ideia e ainda utiliza a referência da música 509-E do Oitavo Anjo para reforçar a ideia. Por fim, a utilização de frases fortes como "verso é a arma" e "palavra é bala" que recorrem de pré-conceitos negativos como associações para demonstrar a força dessa arte. Se todos que fazem arte de rua são vistos como "bandidos", a resposta é que a arma e a bala são verso e palavra. No entanto, por maior que seja a força aqui e a referência clara do verso "minha palavra vale um tiro, eu tenho muita munição", acredito que as duas frases acabam trazendo um mesmo significado ocupando espaço que poderia ser consumido de outro modo (-0,1 letra).

No refrão central, o samba apresenta a definitiva chegada do hip-hop a cidade de São Paulo. Ali, pelo anos 1980, a música desembarcou na Selva de Pedra servindo como manifesto revoltoso na região central da capital. "Balançou balançou o Largo São Bento // Moinho de vento, a ginga na dança // Grande triunfo do movimento // No breaking, o corpo balança". O extrato transpõe esse conceito: A música chegou balançando o Largo São Bento (região central da cidade) com grande influência de Nelson Triunfo, um dos percursores do movimento hip-hop no país, fazendo que o breaking, estilo de dança de rua, se proliferasse nas ruas. Melodicamente, gosto muito da referência do verso "balançou, balançou" para o "O Bixiga balançou" de 2001, mas a repetição de balançou/balançou com balança empobrece a letra (-0,1 letra). A segunda estrofe é extensa e expressa duas fases do hip-hop em São Paulo. A primeira é um resumo do que esse movimento viveu desde sua chegada a cidade, a segunda já é um alerta social e as evidências do que o comportamento e os ensinamentos dessa arte servem como exemplo de rebeldia para contestar o estado e a arte pré-definida pela elite. A primeira parte dessa divisão acontece no "Solta o som, alô DJ // Que eu mando a rima pra embalar manos e minas // Na batida perfeita, meu rap é a voz... // As cores da minha aquarela, no muro a tela // Que o tempo desfaz, mas apagar jamais". O som se prolifera e os DJs são fundamentais, a rima embala os homens e as mulheres, fundamentais e resistentes no cenário do hip-hop, o rap é o som que move o grafitti que colore os muros da cidade em busca da afirmação de uma identidade que é constantemente silenciada pela sociedade elitizada. Os versos que trazem rima/minas e aquarela/tela são travados melodicamente pela proximidade das palavras e a métrica curta (-0,2 melodia). Além disso, a letra com dois versos começando em "Que" acaba carregando falta de criatividade na letra (-0,1 letra).

Na segunda metade, o alerta social apresenta-se com "A força do conhecimento // No gueto, procedimento // Atitude de gente bamba // Tem hip-hop no meu samba // É preto no branco // No tom do meu canto // Preconceito nunca mais // Fogo na estrutura // Justiça, igualdade, paz". Nesse pedaço, a composição relembra que depois de se afirmar, era precisa se politizar. A força do conhecimento político faz com que o procedimento seja mais forte, tenha atitude de confronto trazendo a semelhança entre o que o hip-hop viveu com o que o samba passou no início do século passado. E esse encontro é reforçado pelo Vai-Vai, um verdadeiro ponto de resistência da cultura popular, que pede pelo fim do preconceito, a desmobilização da estrutura pré-estabelecida, mas sempre com os ensinamentos de justiça, igualdade e paz. Em termos de letra e melodia, esse trecho é o de pior elaboração. As rimas conhecimento/procedimento, bamba/samba e branco/canto tentam fazer um perfil mais "rap", mas acabam tirando brilho das células melódicas (-0,1 melodia) (-0,1 letra). E os finais acabam se contrastando se o "fogo na estrutura" pede rebeldia para quebrar os preconceitos, o "paz" quer contemporizar e dirimir esse ato, invalidando, de certo modo, o que a passagem anterior propôs (-0,1 letra).

No refrão principal, a canção traz "Olha "nóis" aí de novo coroa de rei // Capítulo 4, Versículo 3 // Vai-Vai manifesta o povo na rua // É tradição e o samba continua" que menciona o retorno da agremiação ao Grupo Especial, a inspiração do título do enredo, uma síntese do que a temática significa e o bordão da escola que reafirma sua tradição no samba. É uma passagem mais curta e menos "enredada" que o restante da obra, mas acabou sendo um final interessantíssimo por conta da força que o verso "Vai-Vai manifesta o povo na rua" possui no complemento ao "Capítulo, Versículo 3". É como se os compositores transmitissem que a alvinegra servindo de manifesto do povo da rua fosse um pedaço complementar da música do Racionais. É bem bonito e bem forte! No conjunto, a Saracura desfilará com uma obra forte, cheia de frases marcantes, mas que escorregou no momento onde deixou de lado a capacidade de criar imagens de impacto para o ouvinte para ser mais literal e descritiva, perdendo, desse modo, o que poderia ter de diferencial: O dom de emocionar.

Nota: 9,2

Letra: 4,5
Melodia: 4,7

Camisa Verde e Branco: Retornando ao Grupo Especial, após doze anos, o Camisa Verde e Branco vem cercado de expectativas e dúvidas do grande público. A escola é uma das mais tradicionais da cidade, dona de nove campeonatos na disputa principal, mas passou por maus bocados nos últimos anos, chegando ao ponto de ficar mais próxima do Grupo de Acesso II (terceira divisão) que de um retorno aos dias de glória. Nesse cenário, a promoção no último Carnaval acabou sendo vista com surpresa e entusiasmo. Se por um lado, a estrutura e a parte financeira ainda preocupam, a retomada de uma comunidade preta, tradicional e repleta de ancestralidade no que há de mais alto no samba paulistano empolgam. Mas essa dualidade acabou gerando um problema para a temática. Durante o período no Acesso I, a diretoria da verde-e-branco definiu que assim que conseguisse a vaga na elite, faria uma homenagem ao seu padroeiro Oxóssi.

Isso estava definido, mas a falta de dinheiro ainda pesa demais nos cofres da alviverde. Com isso, surgiu a possibilidade de uma reverência ao ex-atacante Adriano, conhecido pelas passagens por Flamengo, São Paulo, Inter de Milão e seleção brasileira. O apoio de seus patrocinadores pessoais ajudaria no fluxo de caixa da agremiação e daria mais suporte para um retorno mais grandioso em termos plásticos. Assim sendo, a solução para a temática conseguir cumprir a promessa ao orixá e ter o aporte financeiro das marcas que apoiam o ex-jogador foi unir os dois pontos, inicialmente distantes, numa proposta que narrasse personagens que vieram debaixo para atingir o grande sucesso e a plena realização. Com isso, além de Oxóssi e Adriano, o faraó Piye, primeiro faraó preto da história, e o Sultão Mansa Musa, homem mais rico no século XIV também ganham espaço no enredo da verde-e-branco.

Nesse sentido, o caminho curioso do enredo escolhido para unir Oxóssi e Adriano Imperador como personagens principais gerou uma situação inusitada e difícil para os compositores Fabiano Sorriso, Marcos Vinicius, Márcio André, Diogo Corso, Aquiles da Vila, Salgado Luz, Chanel Rigolon, André Cabeça, Tomageski e Biel. Afinal, com uma temática que acaba sendo ampla e repleta de várias pequenas histórias com começo, meio e fim dentro de uma história ainda maior, é difícil defender um viés que consiga correlacionar tudo dando espaço para o que está sendo contado. Nesse sentido, o grupo acabou optando por um caminho diferenciado na construção dando um foco maior no que proporcionava mais qualidade melódica e de letra. Com isso, a primeira estrofe inteira é dedicada ao padroeiro Oxóssi e como sua trajetória serve de referência para a escola e para os outros personagens do tema.

Os versos "Barra Funda! // Sua voz jamais será calada // Enquanto a flecha certeira de Oxóssi // Encontrar a caixa rufada // A negritude traz no sangue a realeza // Pede licença a Exú, o guardião", a ideia é transmitir a sintonia entre a escola e seu padroeiro. A Barra Funda, o quilombo Camisa, nunca vai deixar de se fazer presente por conta da eterna simbiose entre Oxóssi e a bateria Furiosa do Trevo. Desse modo, a negritude, essência dessa escola que insiste em resistir traz o sangue de rei e pede licença a Exú, guardião dos caminhos do rei da mata, para contar como ele surgiu. É lindo, é poético e é, acima de tudo, simbólico. É exú abrindo a passarela para Oxóssi e para o  retorno da alviverde ao Especial. Na sequência, o mito de como o caçador virou o rei da mata é traduzido em versos magníficos com "Orunmilá, em busca do feitiço // Ao guerreiro ordena a missão // Valente caçador, carrega o seu ofá // Oxum foi seu amor... Oro-mi-má! // Dono da mata, rei de Ketu, ele é! // Okê, mutalambô! Odé! Odé!". Conta a lenda que Orunmilá precisava de um pássaro raro para fazer o feitiço de Oxum, Oxóssi e Ogum buscaram a ave por dias seguidos. Até que quando só restava uma flecha, o futuro rei da mata se deparou com o animal e o atingiu com uma tenativa apenas. Quando retornou para aldeia, Orunmilá, encantado, lhe condecorou com a cidade de Ketu o transformando em Rei das matas e das florestas. O único senão que esse pedaço traz é o verso "ao guerreiro ordena a missão" que fica extremamente apertado dentro da melodia, faltando respiro e clareza no canto (-0,1 melodia).

O refrão central já muda de personagem e volta o foco para o segundo personagem do tema. O Faraó Piye, primeiro faraó preto. A letra tenta resumir sua trajetória dentro do quadrante com "No Egito, a luta por liberdade // Um novo Império se organizou // O Faraó liderou uma dinastia // Pra dominar quem um dia te escravizou". A história conta que ainda no século VIII antes de Cristo, Piye, filho de Kashta, foi o escolhido para derrubar a dinastia de Tefnakht, o rei da 24ª dinastia do Egito. Em busca de liberdade, os liderados pelo faraó preto conseguiram vencer as batalhas para ocupar o domínio do local tirando quem o antigo líder e seus aliados. Esses aliados, aliás, acabaram aceitando o domínio do novo conquistador para salvar suas vidas. Ou seja, os versos trazem um resumo interessante para esse momento da temática - apesar de não citar o nome direto de Piye -, sem deixar a qualidade poética cair. O início da segunda estrofe parte na apresentação do terceiro personagem: o sultão Mansa Musa. Esse que ficou conhecido pela maior fortuna da história da humanidade é mais um trazido pelo Camisa na temática. A síntese apresentada é em "Quando a nobreza africana // Escreve em ouro a sua trajetória // Brilha o leão de Mali // Luzindo a riqueza da negra história" que tenta resumir a trajetória do protagonista. O então nobre Rei de Mali ficou conhecido pela fortuna incalculável em barras de ouro, sendo o negro de maior riqueza em todos os tempos. A questão é que esse momento ficou muito mal sublinhado pelos autores. Por mais que a própria inserção dessa figura seja complexa no contexto do enredo, o modo de contar aqui - repetindo o efeito de não citar o nome do inserido - não ficou bem-feito como no anterior, tornando tudo muito superficial, sem uma contextualização mais clara. (-0,1 letra.)

Quando o enredo avança para o Brasil e para Adriano, o verso de transição é excelente. Se as barras de ouro deixaram legado na negra história, existe uma herança ainda maior para o povo preto. A ancestralidade. Nisso o verso "Herança enraziada nas favelas do país" é maravilhoso e prepara bem essa conexão para "Em cada sonho de quem nunca perde a fé // Black Power da cabeça aos pés // Um craque de bola, no jogo da vida // A simplicidade em forma de lei" que reflete a trajetória de Adriano como exemplo de vários outros meninos pelo país. É bonito demais isso. O único problema é que o "Black Power da cabeça aos pés" fica meio deslocado. Claro que a referência é usar o estilo de cabelo como se fosse a coroa do menino preto - como a que carrega Oxóssi, Piye, Musa e Adriano - mas isso poderia ter sido mais bem detalhado de uma forma que tornasse esse verso como protagonista do espírito do tema no país e não apenas um ponto de argumento para dar mais peso ao trajeto de Adriano (-0,1 letra). Por fim, a falsa dobra final com "Eis o Imperador... Pra ser coroado nas terras do rei! // Lá vem o Didico... Pra ser coroado nas terras do rei!" é maravilhoso pela melodia envolvente e, principalmente, por criar uma intimidade entre o personagem e a escola. Afinal, Adriano, agora, será coroado como Imperador da Barra Funda nas terras do rei Oxóssi. Bom demais!

Finalizando a obra, o ótimo refrão principal consegue uma das coisas mais raras para um enredo desse porte. É funcional e ainda traduz bem a ideia da união de Oxóssi e Adriano. Os versos "Axé! A verde e branco voltou... // Axé! Okê arô! // Enfim a promessa se realiza // "Que Deus perdoe" quem não é Camisa!" são incríveis. A alviverde, de volta, brada que sua promessa está paga e pede a Deus, através do icônico bordão de Adriano Imperador nos tempos de Flamengo, que ele perdoe quem não é Camisa. É fantástico e funciona demais. Além da beleza da ideia da letra, a melodia é muito bem amarrada com respiro fundamental entre "voltou" e o segundo "axé" evitando aquele cansaço que marca tantas composições que utilizam desse recurso. Quando analisado na completude, a composição fica ainda mais digna de elogios. Afinal, a missão era difícil e os poetas transcreveram com qualidade e criatividade o enredo. Mesmo com alguns trechos menos inspirados, muito por culpa dos pedaços de menor inspiração da temática, é fato consumado que a beleza e a força do samba-enredo é o primeiro e maior trunfo para o Camisa Verde e Branco continuar na elite por mais um ano.

Nota: 9,7

Letra: 4,8
Melodia: 4,9