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Akará – Dos Baribas a São Salvador da Bahia de Todos os Santos
SINOPSE ENREDO 2020

Akará – Dos Baribas a São Salvador da Bahia de Todos os Santos

Introdução – Justificativa do Enredo

Em tempos onde acontecimentos relacionados a intolerância religiosa revisita frequentemente as manchetes dos jornais impressos e televisivos do Brasil – atos legitimados a todo momento por discursos defendidos por grupos políticos brasileiros de extrema direita – A Floripa do Samba, em sua décima participação na Liga Independente das Escolas de Samba Virtuais, traz em sua temática um enredo que evidência a narrativa perpassada através da história do Acarajé – desde um símbolo relacionado a religiosidade de matriz africana até os tempos atuais, como elemento de resistência, libertação e emponderamento das mulheres baianas vendedoras do acarajé.

Setor 01: Origem e Lenda sobre o Acarajé

Bolinho que se compra cantando; carvão; tocar fogo e incendiar – torcida que o povo come, mecha de algodão embebido em dendê que se incendeia. Rito de confirmação dos devotos de iansã. Uma única palavra, vários significados e diferentes origens. Assim sou – Akará, Kosai, Koose ou Acarajé.

Iniciamos minha história nas rotas áridas do Saara – que foi, por muito tempo, importante caminho comercial de produtos e especiarias carregadas por camelos, percorrendo longos trajetos vencendo o clima árido da região e adentrando o deserto. Assim, as cidades foram se estabelecendo através das rotas comerciais, fazendo surgir contatos entre as populações orientais e o norte das Áfricas. É a partir desses contatos entre essas populações que o Falafel, meu antecessor, foi introduzido na região de Áfricas durante os século VII.
 
Chegando em África, na região Ocidental, o Falafel foi adaptado aos costumes das populações locais – novos ingredientes e sabores faziam surgir um novo tipo de alimentação na região – Surge então o Akará, como fiquei conhecido nessa região – para a alegria e os festejos dos povos Iorubás.

Ojé midô, kê Oiá ô
Ojé midô, kê Oiá ô
Okutá urenerê
Ojé midô, kê Oiá ô
Os eguns não conseguiram passar pela montanha
Os raios de Iansã lhes davam medo
O trovão de Iansã os dominava
(Ponto Cantado de Iansã)

Em África, onde a língua falada e passada entre as gerações possui extrema importância, minha origem é relacionada a Iansã, Orixá regente do fogo, dos ventos, das trovoadas e das tempestades – Guerreira do corpo de fogo, ekun ti njé ewe atá 2 . Assim, conta-se – na tradição local – que depois de se separar de Ogum, detentor dos saberes da metalurgia e da forja de metais – e se casar com Xangô – marcado pelo afã guerreiro e de justiça -, Iansã foi enviada a terra dos Baribas para buscar um preparado que lhe daria o poder de cuspir fogo. Curiosa, Iansã desobedeceu Xangô e experimentou o preparo antes dele, também se tornando capaz de lançar chamas de fogo pela boca. Assim, é a origem dessa lenda, que nos rituais dos deuses do fogo, Xangô e Iansã disputam para me saborear, fazendo surgir-me no imaginário local e me propagando em várias gerações.

Setor 02: Chega ao Brasil – A Bahia Nagô Oitocentista

“Acarajé veio pra rua
Garantindo obrigação
Dinheiro pra Iaô
Que fazia devoção
Agora ele é vendido
Como prato preferido De toda a população”

Cruzando o atlântico, enfrentando as tenebrosas tormentas – os perigos dos mares tenebrosos e as péssimas condições do tumbeiro flutuante – chegavam ao Brasil diversas populações de África, retiradas de seu território a força para servirem de mão de obra escravizada no Brasil, carregando consigo não somente a marca da violência imposta pelo colonizador – Traziam novos olhares, novas experiências e o conhecimento de suas atividades em Áfricas. O destino, após longos dias nos porões dos navios negreiros era São Salvador da Bahia de Todos os Santos.
 
Chegavam ao Brasil pessoas de diversas regiões de África – Iorubás da Nigéria, do Reino de Daomé, da Costa de Mina; Cabinda; do Reino de Angola; do Novo Redondo; de Benguela; de Cabo Verde, gente de etnia nagô. Trouxeram consigo suas práticas culinárias, das quais me insiro. Aqui, tal me tornei símbolo de resistência – ora por matar a fome da população pobre e escravizada ou como ferramenta na busca pela liberdade.

Assim, me apregoava pelas ruas da cidade, que adentrava o século XIX, através dos cânticos dos escravizados de ganho, pronunciados em nagô, que me vendiam, assim como outros quitutes buscando adquirir sua liberdade. Equilibrados sob a cabeça – tabuleiros e gamelas envolvidos por suas vestes brancas, saia rodada e panos bordados, todos regidos sob balanceio de seus balangandãs abençoados, ao fundo, pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e dos Homens Pretos.

Setor 03: O Acarajé e o Candomblé – A Comida do Santo (Iansã)

A venda do acarajé pelas ruas de Salvador durante o século XIX realizadas pelas escravizadas de ganho não era a única forma de resistir ao sistema escravocrata, colonial e posteriormente imperial. Tal prática está relacionada a manutenção das religiões de matriz africana no Brasil – Era por meio do vendei-o dos acarajés que as filhas de santo custeavam suas obrigações com o seu orixá, neste caso com Iansã.

Buscando subverter esse sistema e buscando a sociabilidade entre as populações escravizadas irá começar a surgir a organização de grupos compostos por africanos escravizados e libertos – com o objetivo de cultuar seus ancestrais africanos. Assim surgia o Candomblé – envolto de danças, cânticos e regido pelo som dos atabaques – Reverberava no Brasil as práticas e costumes dos africanos em África – ganhando ritmos, sons e aspectos da cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos.

É desta forma, através dos terreiros de Candomblé que vou ganhando contornos de um elemento sagrado – sendo preparado em rituais como oferenda a Iansã, senhora dos ventos e das tempestades. Ritos que são envoltos de diversos elementos sagrados – Desde o akalá, carregando consigo marcas e referências étnicas; a colher de pau, sob a regência das ialorixás, cozinheiras chefes dos rituais do Candomblé e o azeite de dendê – derivado das folhas das palmeiras e usado para mergulho das oferendas.

Por fim, antes de servido a Iansã, sou oferecido a Exu, o orixá mensageiro, que faz ligação entre os dois mundos. As ofertas são colocadas nos pejus – os altares sagrados, em respeito aos seus deuses. Assim, Iansã pode saborear-me. O ritual está concluído.

Setor 04: Intolerância Religiosa em relação a práticas do Candomblé e as vendedoras de Acarajé.

Já no início do século XX, com a solidificação de um regime republicano no Brasil, buscava-se ares de modernidade – Era preciso remodelar as cidades e esquecer o passado que lembrará ao Império. Assim, diversas cidades no Brasil passaram por um processo de reformas urbanas em seus centros históricos. Na antiga São Salvador da Bahia de Todos os Santos, agora conhecida apenas como Salvador, tais reformas implicaram diretamente nos espaços de comércio das vendedoras de Acarajé. Essas transformações urbanísticas também buscam uma mudança moral nos centros da cidade. Cria-se então uma série de propagandas buscando desmoralizar as vendedoras de acarajé, sendo representadas através dos jornais como mal educadas, briguentas e desarrumadas. Acreditava-se que a presença dessas mulheres poluía o ambiente e atrapalhava o trânsito da cidade; vinculava-se uma campanha sanitarista, excludente e racista que falavam que os produtos vendidos pelas mães de santo nas ruas de Salvador eram fontes de transmissão de doença – vinculadas a contaminação ao “suor do preto”.
Seguindo tal discurso contrário a venda de acarajés pelas mães de santo em Salvador, surge – logo em seguida – a venda de acarajé feito por neopentecostais – O Acarajé de Jesus.

Mais uma vez o bolinho de feijão fradinho é ressignificado, buscando demonizar os elementos simbólicos da religião afro brasileira e suas relações com a prática de vender o acarajé – Começa-se então uma batalha espiritual pela legitimidade do acarajé. Assim como os médicos sanitaristas e os veículos de imprensa no início do século XX, as vendedoras do “acarajé de jesus” irão deferir discursos preconceituosos e etnocêntricos referente as vendedoras de acarajé relacionadas ao Candomblé. Demoniza-se então tais vendedoras e suas práticas para dar legitimidade ao novo negócio dos neopentecostais. Desta forma, símbolos e emblemas relacionados ao candomblé e a figura de Iansã são modificados – Os tabuleiros de venda do Acarajé ganham novos contornos – são ornamentados por bíblias, adesivos e faixas relacionadas ao cristianismo – Novas cores também são implementadas, o preto é destacado nas vestimentas das vendedoras neopentecostais, justamente por ser uma cor refutada pelo candomblé. Assim a intolerância religiosa ganha novos contornos, trajes e cores.

Os acontecimentos relacionados a intolerância das práticas religiosas de matriz africana no Brasil e das baianas vendedoras de acarajé não se restringem somente a este fato – Recentemente, no final do ano de 2019 – uma estátua representando uma baiana vendedora de acarajé foi incendiada no centro histórico de Salvador – Mais um exemplo evidente de intolerância religiosa, tão presente nos tempos atuais no contexto brasileiro. É preciso que se reafirme o respeito a todas as religiões, é preciso dizer: Respeite o meu Axé!

Contudo, embora o acarajé e as práticas do candomblé relacionadas ao seu preparo e devoção tenham sofrido perseguições e continuam tendo que se reafirmar enquanto prática cultural, social e religiosa, hoje o acarajé é considerado patrimônio imaterial brasileiro, buscando a preservação das práticas e das memórias que envolvem essa iguaria.

Essas mulheres, vestidas com seus trajes relacionados a suas práticas religiosas e com seus tabuleiros repletos de quitutes marcaram presença na cidade. Assim como os monumentos históricos, hoje, as “baianas” vendedoras do Acarajé passaram a ser um dos símbolos da cultura brasileira.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAÚJO, Carlos. ABC Dos Orixás. Editora Nordica, Rio de Janeiro, 1993.

BORGES, Florismar Menezes. Acarajé: tradição e modernidade. Dissertação de mestrado
apresentada no curso de pós-graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Faculdade de
Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia. Salvador: 2008.

LODY, Raul. Joias de Axé: fios de conta e outros adornos do corpo: a joalheria afro-
brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

MARTINI, Gerlaine Torres. Baianas do Acarajé: A uniformização do típico em uma
tradição culinária afro-brasileira. 2007.

SANTOS, Vagner. O sincretismo na culinária afro-baiana: o acarajé das filhas de Iansã
e das filhas de Jesus. 2013.

Autor do enredo: Fernando Constâncio