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Samba Paulistano
 
15 de novembro de 2021, nº 52

SAMBA-ENREDO DRAGÕES DA REAL 2022
Querendo voltar a brigar pelo título, a Dragões da Real mudou de enredo em relação ao anunciado durante o período da pandemia da Covid-19. Se a princípio levaria “O dia em que a terra parou”, tema que dialogaria com as mudanças que foram impostas durante o momento vivido desde Março de 2020, a opção com a mudança passou a ser uma homenagem ao sambista Adoniran Barbosa, um dos principais nomes de São Paulo no samba nacional.

Enredo: Adoniran
Carnavalesco: Jorge Silveira


Prestando homenagem a um dos grandes sambistas da cidade, a Dragões da Real traz o seu enredo de 2022

Sinopse do Enredo

DRAGÕES DA REAL — CARNAVAL 2022 — ADONIRAN

Desperta, São Paulo!

Desperta para ver sair do túmulo o filho único da canção eterna, umbigo nas quinas, torto querubim das esquinas, das cruzas e encruzas, o verso, o reverso e o verbo sentido no gerúndio. Contesta com vida e diplomacia de bar a profecia do poetinha Vinicius. Convoca os dragões e demônios do batucar miúdo, os homis tudo, caixas de fósforo e de ressonância d’uma poesia rueira — aí, sim, a sua perfeita tradução. Quais, quais, quais, quais colá. Adoniran Barbosa andarilho, candeeiro observador aceso, plantou a flor de sua arte até mesmo em viaduto. O homem que falava aquilo que as pessoas enrolam pra dizer. Vorta neste enredo como “arma penada” para outra vez balançar cadeiras na porta de casa, animar serestas, enfiar a colher de pau no caldeirão agridoce da Pauliceia. Eis os cacos ajuntados do tempo por João Rubinato — sua graça na certidão — porta-estandarte, mosaico, caleidoscópio dos causos de um século todinho e de gentes como a gente.

Sua palavra traz a dona, o vendedor, o engraxate, o doutô. Desfiou a cidade mezzo linho, mezzo desalinho, Gioconda enigmática a sorrir Itália, Mooca, Casa Verde, riqueza e piolho, contraste. Tudo e tutti na rima que arranha ruído de povo. . Plac ti plac plac. Di dirim dim, di dirim dom dom.A roçadura entre a lembrança romântica do palacete assobradado de outrora e a dor doída ante a selva de pedra que se impôs. Como é que faz? Rasgou o coração, mas o dono mandou derrubá. A metrópole que mais cresce pôs concreto nos afetos. Restou a maloca no peito, saudosa e querida, dim dim donde nós passemo os dias feliz de nossa vida. Quando bate onze da manhã, pouco antes do sol a pino na moleira, o enxadão da obra que traz o progresso econômico a poucos, e o retrocesso das quimeras a tantos, descansa. Hora de almoçá a marmita na calçada. Arroz, feijão, torresmo à milanesa. A vida é dureza, João.

Só que adiante um pouco, bãosis, a Lua se insinua, cicerone formosa das farras e dos amores que a noite atrai. Trabalhador também vadeia, vam s´embora camaradas.. Primeiro, o Arnesto nos convidou prum samba lá pros lados d’onde mora. Nós fumos, mas ao chegar no Brás… Não encontremos ninguém. Que baita reiva! Isto não se faz. Só que bamba que é bamba não balança, ensinou algum filósofo do copo cheio. A noite ainda criança solta as mariposas em vorta das lâmpidas malandras que dedilham o cavaquinho até a coisa isquentá. Esticam tanto a corda mi… Que, beijo em beijo, vira tudo aliança e prova de carinho. Difícil não se derreter com as frechadas do olhar, o peito parece táubua de tiro Álvaro, todo esburacado, nem tem mais onde furar. Poeta se apaixona de cruzamento em cruzamento, pede pro amor ficar mais um pouquinho, até o baile emudecer. Mas também para ele dá a hora, mora longe, o maquinista sempre entrega Jaçanã como destino. Se perder o trem que parte às onze, xiiiiii, só amanhã de manhã. A mãe nem dorme, coitada, enquanto o marmanjo não chega: o homem-menino é folião apaixonado, mas tem casa para olhar. E se o sujeito for casado? Aí só resta implorar: joga a chave, Matilde. Joga a chave, meu bem.

Contam os sabidos que quando o ébrio ainda engatinhava, Pirapora de Bom Jesus se esparramou São Paulo adentro com o samba de bumbo a tiracolo. Sim, cordões caipiras forjados em cruz, curimba e raízes rurais foram o berço da fuzarca no estado. Já crescido, Adoniran viu-se um pouco em Geraldo Filme balançando o terreiro com a mão na zabumba, bebeu Dionísio Barbosa, o revolucionário folião da Barra Funda, fez ecoar o tambu de Henricão, que escreveu a glória do Bixiga e partiu levando saudades. Sambistas romeiros a encantar o espírito da Pauliceia e inspirar as fricções urbanas da obra do demônio sagrado que, ao contrariar a morte, regressa à sua Vila Esperança, aurora dos carnavais. A partir de um fevereiro em que amou Maria Rosa, a primeira colombina, sua arte foi o abrigo para tantos gênios primeiramente chamados de vagabundos.

E se a metrópole teimava em crescer na carona de espigões e contradições, o couro paulistano não titubeou quando chamado ao toque. Rompidos os cordões umbilicais, viraram escolas de samba. Camisa, Vai-Vai, Peruche, Vila Maria. E o Nenê, óbvio. Sujeito pessoa física e jurídica. Cartorial forma de dedicação, ares de crônica musical de Rubinato. Sampa do matriarcado também. Sua bênção, Madrinha Eunice, fundadora da Lavapés, a pioneira. Saudades, Dona Olímpia. Saudades, Tia Zefa. Saudades todas. Mas ói nois aqui traveiz pra arrumá um batuque campineiro, de rua, de bar, de Avenida.

Adonirando aqueles que encontra, o poeta ajeita o chapéu, passa o dedo no bigode fino e capricha no acento italiano para rever a sua São Paulo bem no capítulo final do espetáculo ainda inconcluso. Cruzou a fronteira e venceu o que os homens do lado de cá desconhecem porque é carnaval, delírio fantasiado de liberdade — nome de bairro e mantra. Ele brinca, faz estrelá ou chuvê, as horas vareiar, pita e dedilha até triunfar o Sol da vida real, este que entrega o adeus à escola e o tamborim respeitado ao melhor dos ritmistas.

Canta, enfim, pra subir, mas deixa um recado: já fui e sou uma brasa. Se assoprarem, posso acender de novo.

Será?

Bem, não convém duvidar: este aí, ah, nem garoa apaga.

Quaisgudum, tchau!

Adoniran.

Carnavalesco e enredo- Jorge Silveira
Sinopse — Fábio Fabato

Samba-Enredo

Gravação do Estúdio



Samba ao vivo



Compositores: Thiago SP, Léo do Cavaco, Renne Campos, Marcelo Adnet, Darlan Alves, Rodrigo Atração, Alemão do Pandeiro, Wanderley Monteiro, Paulo Senna, André Carvalho e Tigrão
Intérprete: Renê Sobral

Letra do samba

“Dá licença de contar”
No raiar dessa manhã
Que essa gente feliz: é Adoniran!
Na passarela, o povo diz no pé!
“Nóis” vai sambando até quando Deus quiser

“Acorde”, foi dizendo o cavaquinho
Uma “prova de carinho”
“Tá” gravada nesse chão…
Desperto no romper da madrugada
Abraçando a batucada, saudade vou cantar
Botei torresmo no verso, na contramão o amor
Fiz da miséria poema, “se alembra” disso Doutor?
“As amizade” deu samba e numa cena cruel…
Saudosa maloca virou arranha-céu

Levei “frechada” do olhar, chorei no pé do fogão
Vi o progresso chegar, sem dó nem educação
A vida é dura, mas a rima é sempre boa
Em cada “canto” dessa terra da garoa

E além disso, tem outra coisa, meu bem
Às 11 parte meu trem nos trilhos da inspiração
Rumo à “Esperança” onde nasce o carnaval
Berço de nossas tradições
Dragões, amanheço em teus braços
Eternizando os nossos laços
Adeus, Escola! Eu vou me embora
Mas meu nome vai ficar
“Feito uma BRASA que jamais se apagará”


Análise

A Dragões da Real é a única das catorze escolas do Grupo Especial de São Paulo que mudou de enredo durante a paralisação da pandemia da Covid-19. Inicialmente, o tema era baseado na música “O dia em que a terra parou” de Raul Seixas que buscava dialogar com as lições que o mundo tiraria do isolamento social imposto pelo vírus. Teve disputa, samba vencedor, mas desfile, não rolou.

O passar dos meses trouxe a sensação de que o enredo perdia o sentido, fazendo com que a Tricolor resolvesse modificar o tema e apostar numa, muita aguardada, homenagem a Adoniran Barbosa. Para não ser injusta com os compositores da disputa de samba-enredo anterior, a agremiação optou por encomendar a trilha-sonora que embalará o próximo desfile aos mesmos vencedores. De autoria de Thiago SP, Léo do Cavaco, Renne Campos, Marcelo Adnet, Darlan Alves, Rodrigo Atração, Alemão do Pandeiro, Wanderley Monteiro, Paulo Senna, André Carvalho e Tigrão, a nova composição é superior ao samba do enredo anterior e cumpre o papel de traduzir o que é proposto.

Particularmente, a obra me chama atenção por dois pontos que são um mérito e um demérito do enredo. Primeiro, a qualidade. A ideia de trazer Adoniran Barbosa “de volta” é uma coisa muito legal. Até pelo fato de que a pista do Anhembi leva seu nome, numa das maiores reverências que esse artista recebeu. Portanto, nada mais justo que a apresentação o transporte para o “seu local”. O demérito não é bem um demérito, mas algo que me incomoda. Ao longo da construção do enredo, se fala muito de suas obras, de como foi importante para abrir o caminho do samba em São Paulo e até resvala de como ele foi fundamental na narrativa histórica da evolução da capital paulistana, mas pouco da figura. O homem João Rubinato, o seu amor pelo Corinthians e até o refino de seu humor são deixados de lado. Num recorte de tanto cuidado quanto o desse enredo, as falhas ou os problemas desse tipo — como o leitor preferir — chamam atenção.

Feita a ressalva e sem mais delongas, o samba. A trilha começa justamente conclamando a presença de Adoniran e relembrando sua presença como nome da pista do Anhembi. Com “acorde, foi dizendo o cavaquinho // uma “prova de carinho” // “tá” gravada nesse chão” o samba faz referência clara ao sambódromo e pede a presença do homenageado. A partir daí, começa um verdadeiro passeio por seus sucessos e por tudo que ele proporcionou para São Paulo e ao gênero que o consagrou. “Desperto no romper da madrugada // abraçando a batucada // saudade vou cantar // botei torresmo no verso, na contramão, o amor // Fiz da miséria poema, “se alembra” disso Doutor?” transmitem o início da trajetória do artista.

O sonho de ser famoso encontra no samba e na batucada um meio possível para a realização, mas sempre através das coisas populares e da contramão do imposto até então — a narrativa em segunda pessoa. Adoniran sempre fora inventivo e buscava, com suas músicas, uma outra categoria de linguagem, conseguindo aproveitar-se também da exclusão social dos sambistas. Em letra, a obra vai bem. Melodicamente, não tanto. Com um tom mais dolente, a audição se torna arrastada. Os finais de versos não ajudam com “madru-ga-da // “batu-ca-da”, “can-tar” // “a-mor” // “dou-tor” próximos e com tom de lamento (-0,1 div. mel). Isso também acontece nos últimos versos “As amizade” deu samba e numa cena cruel // saudosa maloca virou arranha-céu” com “Aaaaaa-s” e “arraaaaaanha” esticados para caber na melodia.

No refrão de meio, surge o melhor momento. Com boas referências a dois dos grandes sucessos da trajetória do compositor (Tiro ao Álvaro e Iracema), aparece a virtude de conseguir traduzir bem o progresso tão da Selva de Pedra em poucas palavras. O trecho “Vi o progresso chegar, sem dó nem educação e a vida é dura, mas a rima é sempre boa” é o de melhor síntese de toda a composição. Você sente um resumo rápido e direto do proposto. O problema é a obviedade de “em cada “canto” dessa terra da garoa”. Além de ser desnecessário faz com que o samba perca em riqueza poética (-0,1 riq. poé). Na segunda estrofe, há a continuação da narrativa através das canções; “E além disso, tem outra coisa, meu bem // às onze parte meu trem nos trilhos da inspiração”, a referência é óbvia e cristalina ao grande sucesso “Trem das Onze” imortalizado pelo grupo Demônios da Garoa.

Até então, apesar de alguns problemas aqui e acolá, a narrativa era correta. Mas na tentativa — do enredo, reforço — de ligar Adoniran ao samba paulistano das escolas de samba, a coisa complica bem. Com “Rumo à Esperança, onde nasce o Carnaval // berço das nossas tradições”, o elo entre o homenageado e o início da festa das escolas de samba é feito. O Esperança citada é a Vila Esperança, palco, lá atrás, da folia. Mas, na sequência, surge o “Dragões, amanheço em teus braços eternizando nossos laços” que ARREBENTA essa ideia. Afinal, com todo respeito do mundo a escola e a homenagem prestada, relembrar os primórdios da festa e na sequência citar que uma agremiação nascida em 2000 “eterniza os laços” é forçar muito a barra. (-0,1 fid.) O final do trecho traz “Adeus, Escola! Eu vou me embora // mas meu nome vai ficar // feito uma brasa que jamais se apagará” que relembra, novamente, eterna presença de Adoniran na vida dos desfiles das escolas de samba através da pista do sambódromo. Só que por mais que seja, de fato, relevante, penso que duas citações na mesma obra, demonstra como alguns pontos do enredo poderiam ter sido melhor explorados pela ótima turma de compositores ajudando no entendimento da temática. (-0,1 adeq.)

Quando chega o refrão principal, o samba, mais uma vez, cresce. Com o excelente “Dá licença de contar” no raiar dessa manhã // que essa gente feliz é Adoniran”, o samba traz referências do homenageado o conectando na própria escola sem ficar forçado como na segunda estrofe. O derradeiro trecho com “Na passarela, o povo diz no pé // nóis vai sambando até quando Deus quiser” é correto, apesar de um leve problema de melodia, onde fica corrida para o encaixe da letra na célula. Um clássico erro de muita letra para pouca melodia (-0,1 div.mel).

É evidente que quando analisamos o todo, a sensação é de que o resultado poderia ser mais emblemático ou classudo, no entanto, definitivamente, não é uma trilha que fica aquém do que uma escola como a Dragões, favorita ao título, espera apresentar. É uma obra boa, melhor que o histórico recente da agremiação e serve bem ao proposto, mesmo que esteja longe de encantar.

Nota: 9,5

Falhas:

⦁    Adequação: -0,1

⦁    Fidelidade: -0,1

⦁    Riqueza Poética: -0,1

⦁    Divisão Melódica: -0,2

Bruno Malta
Twitter: @BrunoMalta_