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Samba Paulistano
    
23 de abril de 2020, nº 39
O FIM DE UM IMPÉRIO
por Bruno Malta

Como um desfile sonhado, planejado e, sobretudo, grandioso sepultou o domínio do Tigre Guerreiro no Carnaval de São Paulo

Tigre no abre-alas da Império em 2007. Carro é o mais espetacular da história do Sambódromo do Anhembi (Foto: Gazeta Press)

Aproveitando-me dessa quarentena, tenho utilizado meu tempo para estudar e conhecer ainda mais, um objeto de estudo, passatempo e, sobretudo, prazer que é o Carnaval de São Paulo. Além de buscar inúmeras histórias que eu desconhecia nos anos 80, especialmente sobre os desfiles e as apurações, também tenho revisitado inúmeros desfiles de Carnavais passados, em especial, os realizados no Anhembi, principalmente ali nos anos 2000. Muitas escolas poderiam servir de base para esse texto. Camisa e seu domínio no começo dos anos 90, a Roseira de Royce, o Vai-Vai do fim dos anos 90, os Gaviões de Jorge Freitas, a Mocidade da Era Solange, a X-9 do desfile técnico… Mas, uma das escolas que mais me chamaram a atenção nessa visita ao passado, talvez, a que mais causou impacto, é a Império de Casa Verde.

Claro que já tinha visto os desfiles da então Caçula do Samba e tinha a noção de sua importância no contexto que vimos no Carnaval Paulistano nos últimos quinze anos, mas nessa revisitação, ela consegue prender a nossa atenção de maneira inigualável por dois fatores: uma conexão incrível entre escola e os enredos e sambas daquele período, especialmente entre 2003 e 2007 e, claro, pela enorme grandiosidade que impôs aos concorrentes e, de certa forma, a si própria.

A Império era um meteoro nos anos que antecederam sua chegada ao Grupo Especial. Com uma ascensão rápida, aos oito anos de vida, estava com a presença garantida na elite no ano seguinte, depois de conquistar o vice-campeonato do Grupo de Acesso em 2002. Após início cambaleante em 2003 e de um terceiro lugar surpreendente em 2004, a azul e branco conseguiu um bicampeonato consagrador em 2005 e 2006.

Além das conquistas, chamava a atenção pelo time que conseguia formar. Carlos Júnior, intérprete revelado pelo Camisa, foi o primeiro a chegar em 2004. Na sequência, chegou Zoinho, mestre de bateria, bicampeão nos Gaviões, para ajustar o quesito que impediu o título, ainda em 2004. Por fim, o casal de mestre-sala e porta-bandeira Renatinho e Fabíola, premiadíssimos no Vai-Vai, desembarcaram na Casa Verde, ainda em 2006. Junte a eles, o diretor de Carnaval, Júnior Marques, dentro do projeto da agremiação desde o início, o coreógrafo Robson Bernadino e o dinheiro do patronato de Chico Ronda -falecido em 2003 - e Alexandre Plumari e temos uma equação que transformou a Caçula do Samba na escola a ser batida em 2007.

Folha de São Paulo do dia 16/02, sexta-feira de Carnaval, anunciava as pretensões da Império (Foto: Acervo/Folha)

Foi nesse ano, na busca do tricampeonato, que a Império mais me chamou a atenção e motivou a construção desse texto. Com o maior orçamento da história dos desfiles paulistanos, a Nação Imperiana entrou para defender o enredo “Glórias e Conquistas, a força do Império está no salto do Tigre” que era o sonho do então diretor de Carnaval, Júnior Marques. O nível da Império chamava a atenção de todos desde o pré-Carnaval. Como era a atual bicampeã, a escola da Zona Norte era alvo de inúmeras matérias sobre sua apresentação e sobre como construía seu domínio. Muitos desses relatos, inclusive, falavam, claramente, de uma forte influência do tráfico da região, negada oficialmente pela escola, financiando e sendo financiado pela azul e branco.

Alheio a tudo isso, tanto a Império, na voz de seu cantor que pedia o tri, quanto seus componentes pareciam prontos para, como diz o repórter da TV Globo, Rodrigo Bocardi, no começo de seu desfile, “dar o terceiro bote e levar a taça do Carnaval”. O enredo era muito claro e tinha uma proposição óbvia: falar dos grandes impérios e mostrar que a escola Império gostaria de construir o “seu Império” no Carnaval Paulistano. A sinopse do enredo era muito completa e detalhava com muita riqueza, tudo que a escola queria apresentar e o samba não deixava por menos. A letra da composição era muito mais extensa do que era o padrão até então, mas nenhum trecho do que era contado no tema ficou de lado. Além disso, a comissão de Carnaval se utilizou do Tigre e de seus “saltos” para viajar pelos Impérios sem deixar a temática com falhas de conexão histórica.

Com um enredo bem amarrado e um samba de alto nível pela perfeição na adequação a proposta da escola, a Império ainda contava com seu conjunto plástico completamente acima do padrão da época para buscar mais um campeonato. Fora a organização absolutamente inédita até então em seu barracãobasta lembrar que a escola é a primeira em São Paulo a ter uma espécie de Hangar de Alegorias aos moldes do que veríamos na Cidade do Samba no Rio e na Fábrica do Samba, muitos anos depois, em São Paulo –, a agremiação dispunha de um orçamento também bem acima da realidade de suas concorrentes. Segundo matérias da época e da fala da apresentadora Renata Ceribelli, na transmissão da TV Globo, o investimento no desfile beirava os R$ 3 milhões de reais. Isso significa dizer que a escola gastou, corrigindo para os dias atuais, cerca de seis milhões de reais, mais que a Mancha Verde investiu em 2019 na conquista de seu primeiro campeonato, o que só demonstra o tamanho da diferença da azul e branco para o resto na época.

Abre-alas da Império tinha cinco gigantescos tigres em pelúcia. Carro é lembrado até hoje (Foto: Reprodução/Internet)

Com todos os fatores, a impressão geral era de que o Tigre só precisaria apenas passar pela pista para faturar mais um troféu. E foi nisso que a Império se “atrapalhou”. Os carros, todos, eram lindos, espetacularmente bem acabados, totalmente condizentes ao tema, mas inacreditavelmente gigantescos. O abre-alas, o mais famoso do conjunto, era formado por nada mais, nada menos, que quatro grandiosos chasis. Dois chassis eram exclusivos para os espetaculares cinco tigres, forrados em PELÚCIA, que representavam cada um dos Impérios retratados pela escola. Além dele, o carro que representava o Império Macedônico recheado de cavalos lembrava uma carruagem e era todo bordado, o que causava um impacto digno de nota. Outra alegoria que também chamava a atenção era a última. O carro que falava da própria Caçula possuía uma cabeça de um tigre com um corpo recheado de itens carnavalescos e com uma coroa, representando o “tirando onda de rei do samba” que o samba mencionava em sua letra. De movimentos impressionantes, tudo era muito impactante e reforçava outro patamar em termos de riqueza e acabamento.

O investimento ia além das alegorias. Em fantasias, a escola levou tudo do que tinha de mais luxuoso na época em praticamente todos os setores. Na comissão de frente, as doze fantasias custaram cerca de 300 mil reais, o que representava 10% do custo total do Carnaval da agremiação, algo absolutamente impensável na época. Somam-se a isso, as fantasias dos componentes mesmo que reforçavam um luxo inigualável. Todas as alas estavam muito bem vestidas, com um bom gosto absurdo, mas recheado de detalhes gigantescos e que causavam bastante peso em cada desfilante. Por conta desse luxo e do gigantismo, a azul e branco tropeçou fortemente nos quesitos de pista.

Já no Domingo de Carnaval, a Folha alertava dos poréns que poderiam afetar o desempenho do Tigre (Foto: Acervo/Folha)

O ótimo casal Renatinho e Fabíola não conseguiu a nota máxima e as justificativas dos jurados partiram pelo ponto que a dupla não exerceu sua coreografia por completa por conta da grandiosidade de sua indumentária. Já um jurado do item Fantasia descontou da escola por conta de costeiros quebrados que se acumularam na passagem pela pista. Só que nada disso chegou perto do estrago causado em Harmonia e Evolução. Absolutamente todos os seis jurados descontaram a Casa Verde com décimos preciosos, justificando com espaçamentos causados pela demora no andar das alegorias e o canto tímido, pelo excesso de peso trazido pelos componentes nas roupas. Os muitos descontos em quesitos fundamentais foram fatais. Nem mesmo o luxo das alegorias e a fantástica apresentação da bateria impediu o fim do sonho do tricampeonato. A taça do Carnaval, tão sonhada pelo “rei do samba” para a construção do Império carnavalesco nos desfiles paulistanos, foi parar no furacão de cores e risos da Mocidade Alegre, que começaria, ali, curiosamente, a realizar o sonho da azul e branco, tendo um era de domínio na disputa do Anhembi.

Além da doída derrota, a azul e branco começou a sentir os efeitos do fim do domínio nos anos seguintes. Ao fim daquele Carnaval, o cantor Carlos Júnior sairia rumo ao Vai-Vai, onde seria campeão em 2008. Os carnavalescos da comissão de Carnaval, Renato Lage, Márcia Lávia e Carlos Lopes também sairiam e não voltariam mais.

Para o ano seguinte, os substitutos foram Bruno Ribas (intérprete) e André Machado (carnavalesco) que fizeram parte da equipe imperiana na apresentação sobre a MPB. Novamente, se repetiram os erros do ano anterior em harmonia e evolução, mas sem o mesmo luxo em plástica, ocasionando numa posição bem aquém do esperado, um pouco comemorado nono lugar. Desde então, apesar da reconquista da taça em 2016 já com outros nomes e outra gestão, a Império de Casa Verde nunca mais repetiu, em momento algum, o que foi visto entre 2003–2007. Sem a mesma linhagem de enredos, de samba e, sobretudo, de gestão, o Tigre parece ainda viver em busca do Império perdido, para azar do Carnaval Paulistano que tanto deve a escola da Casa Verde.

Desde 2007, a Império nunca mais foi a escola que era em seus cinco primeiros desfiles na Elite. Nem mesmo em 2016 (Foto: GettyImages/Maurício Lima)

Com isso, fica evidente que o desfile de 2007, que foi tratado pela escola como o momento definitivo para elevá-la ao patamar das gigantes do carnaval, acabou sendo o marco do fim de uma era, muito mais curta do que deveria. A partir dali, o corpo técnico, as decisões de gestão e a abordagem temática nunca mais foram as mesmas, o que afetou a maneira com o que o Tigre passou a ser enxergado pelo mundo do carnaval paulistano. Aquele Império ruiu, e outro ocupou o seu espaço, talvez sem tanta pompa. Mas qual o “lugar” da Império? Se a inesquecível apresentação tivesse saído como planejado pela azul e branco, certamente teríamos essa resposta. Mas os caminhos tortuosos da folia reservaram um outro destino para o Tigre, e para sabermos onde ele irá conduzir, só “quando o desfile acabar”. E ainda estamos no abre-alas, dessa vez, bem menos grandioso.