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Coluna do João Marcos

A NAVALHA NO OLHO

Nos últimos dias, assisti um DVD com os filmes Um Cão Andaluz/A Idade do Ouro, de Luis Buñuel. São dois clássicos que definiram a estética surrealista na sétima arte. Você já ouviu falar deles? Provavelmente, não. São duas obras interessantes, provocadoras. As cenas são chocantes – de cara, temos a cena de alguém uma navalha cortando o globo ocular de uma jovem. É um convite – o que se segue deve ser visto com um novo olhar, longe dos padrões convencionais.

Em outra cena, um homem tenta atacar uma mulher, mas para ir ao encontro dela, pega, no chão, uma corda. Presos a esta corda estão dois irmãos de um colégio cristão e dois pianos de calda de onde emergem cadáveres de burros. Ele arrasta tais objetos. É o desejo animal e instintivo sendo obstruído pela religião, pelas responsabilidades que carregamos voluntariamente e pela morte.

É um filme artístico, e por sua proposta de subverter os padrões estéticos e narrativos do cinema. O filme rasgou todas as fórmulas desenvolvidas pelos diretores até então. Sua influência não se restringiu ao cinema, alcançando, também, os vídeos clipes e comerciais de TV. Sem o cinema de Buñuel, talvez nem o Casseta e Planeta existiria.

Começo falando de cinema por duas razões. Inicialmente, porque a Universidade Estácio de Sá organizará um curso sobre cinema e carnaval. E a notícia deste curso me fez pensar em algo que, talvez passe longe do objeto das aulas que serão ministradas. E aí vem a segunda razão – ao assistir o filme de Buñuel, fiquei pensando no samba-enredo como arte e como produto. Se o cinema é arte e produto, o samba também pode ser.

Existem filmes como os de Buñuel – artísticos, influenciadores e importantes. Existem filmes para 99% da população, como os da Xuxa, p.ex. E existe um tipo de filme que, simplesmente, não agrada nem aos fãs de Buñuel, nem aos da Xuxa. São filmes cuja pretensão é maior do que a realização. Recebem meia dúzia de aplausos dos chatos que enxergam arte nas quatro horas de nada projetadas na tela, alguns elogios em revistas especializadas e... é isso. Provavelmente, você tem um amigo ou amiga que adora encher a boca para dizer que viu um filme existencialista do Uzbequistão numa mostra cultural qualquer. É desse tipo de filme que eu estou falando.

Sinceramente, é como se o samba-enredo atual fosse mais ou menos a mesma coisa – música de péssima qualidade, irrelevante do ponto de vista cultural. Não consegue agradar nem aos críticos um pouco mais exigentes, nem ao público em geral. As vergonhosas vendagens dos CDs mostram que o público de samba-enredo, além de estar diminuindo, está se tornando cada vez mais restrito. É um nicho específico de mercado. Se existe um grupo de pessoas que assiste a estes filmes pavorosos, sem qualquer qualidade artística ou apelo de qualquer espécie, agora existe também o público de samba-enredo.

E o pior é que esse grupo, além de consumir um produto de péssima qualidade, ainda se coloca numa postura arrogante, muitas vezes verificadas nos fóruns de internet. Vestem a imagem de grandes conhecedores e de sambistas só porque uma vez por mês visitam uma quadra qualquer para beber. Rodeiam “famosos” (famosos dentro daquele mercado específico) para conseguir credibilidade. Incensam compositores medíocres, grande parte deles componentes das terríveis firmas de samba enredo, que ganham 20, 30 sambas e não conseguem deixar qualquer marca na música brasileira.

Analisando a história, notamos que nem sempre foi assim. O samba enredo já teve valor artístico. Já foi influente, mesmo quando não existia o disco de sambas enredo. Basta lembrar que foi através do carnaval e do samba-enredo que figuras como Zumbi dos Palmares, Chica da Silva, Dona Beija e Chico Rei se popularizaram (e só estou falando de Salgueiro, hein). Sambas de valor artístico inquestionável, que influenciaram toda a MPB. Ou vocês acham que clássicos da MPB como “Vai Passar” ou “Mestre Sala dos Mares” não pagam tributo aos sambas-enredo?

A partir dos anos 70, os sambas-enredo encontram um público fiel, que ia das camadas mais populares até a classe média alta. Popularizou-se, tornando-se um dos produtos mais importantes da indústria fonográfica brasileira. Inúmeros sambas enredos entraram para a memória coletiva – da mesma forma que a cena do chuveiro, do filme “Psicose” de Hitchcock.

E hoje? Bem, temos 60, 80 mil que ainda compram os CDs. Levando-se em consideração que o alcance dos desfiles, os comerciais e as vinhetas da Globo (que atingem milhões de espectadores por dia e não fazem qualquer efeito) e o fato de que todo mundo sabe que existe carnaval e o CD das escolas de samba, tais números são  ridículos.

E a vendagem só está neste patamar pela exposição na mídia. O produto é muito ruim. Não é a toa que, quando avaliado por críticos de MPB, o CD é massacrado, não recebendo mais do que um “regular” ou “duas estrelas”. O CD, para quem não faz parte desse público específico de samba-enredo, é chato, enfadonho e traz letras que não tem qualquer ligação com o nosso dia-a-dia. Como alguém vai se identificar com um samba sobre mitologia nórdica e bacalhau?

Samba-enredo, hoje, é para uns poucos doidos, que não conseguem mais separar o joio do trigo. Como separar o que é bom ou ruim se é tudo a mesma coisa, tudo segue a mesma fórmula, a mesma estrutura? Nenhum dos sambas influencia outros estilos, nenhum dos sambas sobrevive na voz do povo. O CD de sambas enredo é o DVD do filme do Uzbequistão. Tem gente que gosta, não se sabe bem por qual razão. Se ainda está vendendo o que está vendendo, agradeçam. Porém, a tendência é diminuir e se tornar, cada vez mais, um estilo musical para um pequeno grupo.

* * * * *

Por outro lado, a tecnologia tem sido amiga dos sambistas. Num gênero condenado ao “descarte”, seja nos concursos das escolas, onde milhares de sambas-enredo são eliminados todo ano, seja pela própria máquina criada pela LIESA, que levou à criação desta fórmula de samba-enredo previsível e chato, a tecnologia acaba servindo para que tenhamos como registrar e guardar para sempre grandes sambas que não tiveram oportunidade de brilhar.

E para os “sambistas de internet”, discos rígidos e CD-Rs repletos de sambas concorrentes hoje são fatos comuns. Além disso, a própria indústria fonográfica traz os CDs de sambas de todos os grupos, de todas as cidades, fazendo com que a cada ano, nosso arquivo de sambas seja maior.

Até bem pouco tempo atrás, isso não acontecia. Se voltarmos aos anos 70, 80 e 90, a coisa ficava restrita aos discos oficiais. Alguns concorrentes, só aqueles que chamavam muito a atenção, acabavam em LPs de grandes sambistas - principalmente, quando estes eram os compositores de tais obras.

E se voltarmos mais ainda no tempo, nem estes registros existiam. Até 1968, os sambas enredo de cada ano não eram registrados em LP. Foi o sucesso nacional de “Mundo Encantado de Monteiro Lobato”, que fez sucesso nacional, que acordou as gravadoras. Antes disso, muita pouca coisa foi registrada. Um dos poucos exemplos é um disco do Jamelão, que registrou os sambas campeões e vices dos três grupos de escolas de samba existentes em 1961, salvando do esquecimento “Seca no Nordeste”, da Tupy de Brás de Pina.

Alguns sambas enredo anteriores a 1968 acabaram sendo regravados anos depois. Porém, a grande maioria se perdeu. As escolas de samba nunca tiveram grandes cuidados com suas histórias. E o resultado é o desconhecimento total, até mesmo de colecionadores, de uma parcela gigantesca da história dos sambas enredo.

Felizmente, nem tudo está irremediavelmente perdido. Através da internet, o que se salvou está sendo disseminado e passado para as novas gerações. Basta observar o trabalho do SAMBARIO, que disponibiliza para download uma quantidade gigantesca de sambas enredo obscuros. Vídeos de desfiles antigos pipocam pelos fóruns de carnaval.

A internet está aí justamente para isso. É um instrumento fascinante. Nunca, na história da humanidade, foi tão fácil ter encontrar informações. É um universo a ser explorado. Se por um lado, este poder pode ser mal explorado, como foi constatado por pesquisadores ingleses, que descobriram que os trabalhadores chegam a perder o equivalente a dois dias de trabalho por mês com “navegação inútil”, provocada pelo mar de informações oferecidas pela grande rede, por outro lado, nós, sambistas, agora temos um excelente meio para conseguir ter acesso a raridades ligadas ao samba e ao carnaval.

E foi através da internet, por intermédio de um amigo, que eu tive acesso ao LP “Escolas de Samba em Desfile”. Neste LP, provavelmente da década de sessenta, três escolas mostram seus sambas: Império Serrano, Aprendizes de Lucas e... Padre Miguel. Mocidade Independente ou a Unidos? Não sei. Infelizmente, as informações do LP são pouquíssimas e imprecisas.

Cada escola mostrou quatro sambas. Os do Império Serrano, eu descobri facilmente, até porque os conhecia – “Exaltação a Bárbara Heliodora”, que deu o vice-campeonato à escola, em 1958; e “Conferência de São Francisco” ou “Paz Universal”, samba-enredo da Prazer da Serrinha, comentado por mim na seção de sambas até 1967. Para vocês terem idéia de como as informações deste LP são imprecisas, no encarte, “Paz Universal” é intitulado “Brasil Gigante”. Além destes, dois sambas de quadra aparecem no LP.

Já com relação às outras escolas, fica difícil tecer quaisquer informações. Acredito que nenhum dos sambas da Aprendizes de Lucas seja samba-enredo. Todos me parecem sambas de quadra. Um deles é assinado, inclusive, pelo fantástico Elton Medeiros.

Com relação à escola de Padre Miguel, a coisa é mais engraçada. Dos quatro sambas, três são sambas enredo. O primeiro, é em homenagem a Carlos Gomes; o segundo fala da “redentora” Princesa Isabel e da libertação dos escravos; o terceiro, é sobre os bandeirantes. Nenhum dos sambas tem assinatura de compositores famosos da Mocidade. Nas listas de enredos da Mocidade e da Unidos de Padre Miguel existentes nos sites Academia do Samba e Galeria do Samba, nenhum se encaixa com as temáticas dos sambas. Não posso nem afirmar de qual escola de Padre Miguel esses sambas pertencem.

De qualquer forma, os sambas estão sendo disponibilizados e resgatados para o deleite dos amigos leitores. Quem tiver como saber estas informações entre em contato conosco. Os links:

http://www.4shared.com/file/16745559/23bb5f91/Escolas_de_Samba_em_Desfile_1.html

http://www.4shared.com/file/16745910/3711db55/Escolas_de_Samba_em_Desfile_2.html

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Falando em Padre Miguel e continuando a série de sambas obscuros que poderiam ter uma sobrevida em discos de sambistas e de artistas da MPB, disponibilizaremos o samba de 1970, da Unidos de Padre Miguel.

A escola desfilou no segundo grupo e conseguiu o vice-campeonato, com um enredo exaltando o poema “Primavera” de Casemiro de Abreu. O samba, apesar da gravação muito cadenciada, com um ar melancólico (típico das gravações da época), tem uma melodia doce e uma letra poética, simples e despretensiosa.

Com isto, já temos 3 sambas indicados: o primeiro, o samba da Acadêmicos da Orgia, escola de Porto Alegre, de 1981; o segundo, o samba concorrente de Eduardo Medrado e cia. para o Salgueiro, em 2003; o terceiro, o samba da Unidos de Padre Miguel, de 1970. Em breve, o quarto samba da série. 

Link:

http://www.4shared.com/file/16745007/bfbf4438/03_unidos_de_padre_miguel_70-_primavera.html

Abraços a todos!

João Marcos
joaomarcos876@yahoo.com.br