PRINCIPAL    EQUIPE    LIVRO DE VISITAS    LINKS    ARQUIVO DE ATUALIZAÇÕES    ARQUIVO DE COLUNAS    CONTATO

20 ANOS DE UMA APURAÇÃO QUE TEM MUITO O QUE FALAR
      
   
20 ANOS DE UMA APURAÇÃO QUE TEM MUITO O QUE FALAR


Coluna anterior: Sapucaí veio contar pra Vocês: 22 Anos Depois, Campeã mais uma Vez



5 de março de 2023, nº 77


“A Vila Isabel não tem nem o que falar”; “O Walter tá enchendo o rabo de dinheiro”; “o grupo de acesso deveria terminar!”; “A São Clemente tá melhor do que a Beija-Flor, 10 em tudo!”; “Tira um defeito da São Clemente, bota um defeito” são frases conhecidas do imaginário carnavalesco há 20 anos. E que vão povoar nossa memória por mais 20, 40, 80 anos...

 

O dia 5 de março de 2003 parecia ser mais uma quarta-feira de cinzas normal. Parecia. Após a apuração do Grupo Especial que consagrara a Beija-Flor após quatro vices consecutivos – em resultado que até hoje também é alvo de polêmica e contestação – era a hora de saber qual escola venceria o Grupo de Acesso A e substituiria a Santa Cruz (vinda de um acesso cercado de polêmica no ano anterior) no Grupo Especial do carnaval seguinte. Candidatas, haviam muitas: a União da Ilha de um belíssimo desfile sobre Maria Clara Machado, a Vila Isabel com sua exaltação ao arquiteto Oscar Niemeyer e o Paraíso do Tuiuti de um criativo Paulo Barros que despontava para o mundo do carnaval com um abre-alas formado por latas de tinta no enredo sobre Portinari. Mas, no mundo das mumunhas e remandiolas que cercam a folia, o comentário geral era que as favoritas não seriam páreo para a São Clemente, de um humilde desfile sobre o município fluminense de Mangaratiba.

 

Comentário certeiro.




O desfile da São Clemente sobre Mangaratiba. Escola venceu o Acesso em 2003 com todas as notas 10. (Foto: Gabriel de Paiva/O Globo)


E começa a leitura das notas. O primeiro quesito, Mestre-Sala e Porta-Bandeira, tem como uma das julgadoras uma tal Antônia Fontenelle de Brito. Abre parênteses: sim, acertou quem pensou se tratar da mesma que futuramente viria a se casar com um conhecido diretor de televisão, brigar por sua herança depois de morto e passar a vida a soltar impropérios que nem valem a pena descrever aqui. Fecha parênteses. Os quesitos passam, as favoritas vão perdendo décimos e a São Clemente lá, intacta, ganhando 10 atrás de 10.

'

“Isso aí tá no dedo e não tem jeito. Só muita sorte pra gente derrubar isso aí.”, brada um desconfiado Jorge Gazelle, o Peixinho, presidente da União da Ilha. A desconfiança aumenta quando a São Clemente continua recebendo nota 10 atrás de nota 10, as favoritas deixando décimos pelos envelopes e um jurado deixar de conferir nota à tricolor insulana em Fantasias – deixando Jorge Perlingeiro perdido a ponto de pedir um óculos emprestado. A desconfiança começa a virar revolta.

'

Revolta que foi levada aos microfones do lendário Carnaval do Povão da CNT:

'

“A Vila Isabel não tem nem o que falar, ô! Bota um carnaval desse na rua, um gasto danado, pra eles já terem escola que ganha antes, com uma porra de fantasia daquela tá ganhando de mim. Eu vou fazer o que? Isso é o presidente da Associação! Por isso, não tem credibilidade porra nenhuma, prefeito não dá aumento porra nenhuma com um filha da puta desse ladrão aí. O carnaval tá na merda que tá, por causa de um ladrão filha da puta desse aí”, diz Evandro Bocão, então presidente da Vila Isabel, num protesto sem qualquer filtro. Tudo sendo mostrado ao vivo pela televisão à luz das seis da tarde.


Evandro Bocão, na famosa entrevista em que desfere palavrões em rede nacional (Foto: Reprodução/YouTube)

'

Numa entrevista ao Blog Ouro de Tolo, em 2020, Bocão afirmara que a desconfiança começou já no dia da apresentação dos jurados:

'

“Eu fui na Associação no dia da apresentação dos jurados. Fui eu e o Marcelo Coxinha. Cheguei lá e eu não conhecia ninguém. Eu não conhecia um periquito daquele. E eu sentado lá, olhando, eu falei: “quem são esses periquitos?”. Virei pro Marcelo e falei: “estamos aqui de bobo da corte”. Depois eu fui saber que era lavadeira da casa de um, que era cozinheiro do outro, que era amigo do outro... e as escolas tomaram” – na mesma entrevista, Bocão diz que faria tudo de novo, quando se refere a famosa entrevista.

'

'

Outra escola “tirada” do páreo, o Tuiuti também protestou, mas de forma contida. Nas palavras do – até hoje – presidente Renato Thor: “Tamo no páreo mas um páreo complicado ao longo do tempo do carnaval. Os comentários sobre certa escola de samba... (“Que comentários são esses?”, interrompe Paulo Corrêa, repórter da transmissão) De que já tinha campeã... (“E quem seria a campeã?”, Corrêa o interrompe novamente) É um assunto muito delicado devido aos irmãozinhos que são amigos de trabalho. Não sei se de repente estou falando demais, mas pelo que eu estou vendo aqui... sem dúvidas.

'

Seguiu-se a apuração e tudo continuava como está: Vila, Ilha e Tuiuti perdendo pontos e a São Clemente colecionando notas 10. Com uma revolta do tamanho da Ilha do Governador, a diretoria insulana decide por deixar a Praça da Apoteose na bronca.

'

Isso é um roubo, isso é uma sacanagem, rapaz! Todo mundo já sabia que a São Clemente ia ser campeã. A São Clemente é melhor do que a Beija Flor, 10 em tudo! E todo mundo viu a São Clemente desfilar. Agora o Walter... a culpa disso é da Liesa, que tem que intervir. Todo mundo sabe da idoneidade da LIESA, tem que intervir, que o Walter, é o último ano dele, tá enchendo o rabo de dinheiro, a verdade é essa. Tá levando dinheiro de todo mundo. Botamos carnaval na rua com R$ 13.700 porque ele deixou a diretoria passada levar o dinheiro todo. Fizemos o carnaval que fizemos em homenagem ao povo da Ilha, fizemos carnaval pra ganhar que vocês todo viram que foi o melhor carnaval da avenida – sem desfazer das coirmãs. Agora vem aqui... 9,9... 10! 9,9... 10! 9,9... Isso é sacanagem, pô! Um ano de trabalho... A Liga tem que intervir nisso!”, diz um agora exaltado Peixinho ao microfone da CNT.

'

Peixinho: outro revoltado com as notas (Foto: Reprodução/YouTube)

'

Mais algumas notas e a revolta ecoa de novo para os lados de Vila Isabel. Perguntado por Bárbara Campello, outra repórter da transmissão, o então diretor de carnaval Índio devolve: “O que que está havendo? Deveria perguntar ao Walter e essa cachorrada que julga essa m… é... o Grupo de Acesso. Isso é uma pouca vergonha! Já no passado fomos garfados e esse ano não foi diferente. Achamos que fizemos um carnaval belíssimo, elogiado até pela própria emissora que transmitiu o desfile, e no entanto estamos ouvindo esse tipo de nota. Isso é uma pouca vergonha! O Grupo de Acesso deveria terminar! Ou então, a Liga assumir esse grupo porque não aguentamos mais”.

'

Pra ninguém ficar perdido: o Walter que é “saudado” pelos dirigentes é Walter Teixeira, presidente da Associação das Escolas de Samba da Cidade do Rio de Janeiro, então organizadora dos desfiles do Acesso. O dirigente faleceu em junho de 2016.

'

Mas afinal, por que a revolta com a São Clemente ganhando 10 de ponta a ponta? A explicação está numa reportagem do Jornal O Dia publicada em outubro de 2002 (!) onde afirmara que a escola de Botafogo seria campeã com nota máxima e eventuais “acertos” financeiros com a Associação – falava-se em 35 mil dólares em valores da época. Infelizmente, o jornal não disponibiliza seu acervo e por isso não se tem registro. Se houve acerto, jamais foi provado. Está há 20 anos – mesmo tempo da apuração – no campo das lendas urbanas do carnaval. Mas há quem diga que é um caso raro em que a parte envolvida não nega e nem confirma.

'

E a São Clemente, não vai se defender? Claro que sim. Próximo de conquistar o título, Renato Almeida Gomes (que assumira a escola naquele ano e está até hoje como presidente da aurinegra) rebate as críticas e até dá aquela tripudiada nos adversários...

'

“Eu fiz o meu carnaval. São 37 anos sem um título. Sempre me sacanearam, nunca chiei. Cada um faz o seu. A São Clemente desfilou... tira um defeito da São Clemente, bota um defeito... Vê onde ela errou aí, quero ver quem fala”, devolve Renatinho.

'

Renatinho: defendendo-se das reclamações (Foto: Reprodução/YouTube)

'

Com dois 10 em Bateria, a confirmação do título com nota máxima e o acesso de volta ao Grupo Especial garantido, Renatinho desabafou ao microfone: “37 anos! A São Clemente tá viva! É família! Me sacanearam a vida toda! 37 anos! Quero ver onde tem meu erro, me diz! Faz carnaval, porra!”

'

No resumo da ópera: a São Clemente subiu, a vice-campeã Ilha foi colocada pra abrir os desfiles do Acesso em 2004 (até hoje juram que por retaliação da AESCRJ pelas reclamações de 2003), o Tuiuti vagueou entre o Grupo A e o Grupo B pelo restante da década e a Vila esperaria mais um ano para conquistar o acesso. 14 anos depois daquela tarde, as quatro estavam juntas no Grupo Especial – e foi assim até 2020.

'

E assim foi uma apuração que, mesmo 20 anos depois de acontecer, ainda dá muito o que falar na galhofa e imaginário do carnaval. Ah se dá...