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AULA DE HISTÓRIA REGADA A SAMBA

RESENHA SAMBARIO

AULA DE HISTÓRIA REGADA A SAMBA
HISTÓRIA DO BRASIL ATRAVÉS DOS SAMBAS DE ENREDO – O NEGRO NO BRASIL

por Marco Maciel

Gravado originalmente em outubro de 1976, a Som Livre relançou em CD, exatamente trinta anos depois, o álbum “História do Brasil Através dos Sambas de Enredo – O Negro no Brasil”. Este título é um dos produtos da louvável iniciativa do baterista dos Titãs, Charles Gavin, dono de um vasto acervo fonográfico e que há algum tempo comanda o processo de relançamento de vários bolachões em CD.

“O Negro no Brasil” é uma grande pérola então perdida inexplicavelmente. O disco, da gravadora Som Livre, reúne doze sambas de enredo clássicos - cantados por sambistas não tão conhecidos, mas renomados nas escolas de samba cariocas - que remetem a história do Brasil através das situações vividas pelo negro desde a escravidão encarada até o grito de liberdade ecoado. Na concepção histórica, pode-se dividir os assuntos predominantes nos sambas em três: sofrimento, luta e libertação. A ordem das faixas é cronológica, de acordo com o tema discutido na letra do samba-enredo.

Com riqueza harmônica, arranjos impecáveis e cadência emocionante, o álbum abre com “Navio Negreiro”, samba cantado pelo Salgueiro em 1957, inaugurando a época de sofrimento dos nativos africanos retirados à força de suas terras para serem escravizados numa terra estranha denominada Brasil. O samba, além de exaltar as descrições feitas por Castro Alves aos macabros navios, explica poeticamente que “os negros amontoados e acorrentados em cativeiro / no porão da embarcação / com a alma em farrapo de tanto mau trato / vinham para a escravidão”. Notável a participação do clássico Coral Som Livre, que atuou nos programas e nas trilhas sonoras das novelas da Rede Globo nos anos 70.

E prossegue o infortúnio do negro nas duas faixas seguintes, da Unidos da Tijuca: “Leilão de Escravos” e “Negro na Senzala”. Sugestivamente, as melodias desses sambas são tristes. O primeiro, cantado em 1961, é aberto pelo refrão “quem dá mais, quem dá mais / negro é forte rapaz” e tem como ponto forte seu estribilho central “ôôôô / tenha pena de mim meu senhor / tenha por favor”. Era uma época em que era possível passar a mensagem de forma simples, didática e poética no samba-enredo. Exemplo disso está no trecho “E na senzala / o contraste se fazia / enquanto o negro apanhava / a mãe preta embalava / o filho branco do senhor que adormecia”. No segundo samba, de 1958, o negro evoca seus escassos momentos de diversão com as lindas danças e cantorias na senzala, após trabalhar até cair (trecho marcante da letra). Também fica clara a crítica aos brancos opressores, donos dos engenhos de açúcar e das plantações de algodão, no trecho “a casa grande / requinte de grande fidalguia / mas sem o labor do negro / o senhor nada fazia”.

A fase de luta do negro se inicia na quarta faixa, através de um samba também da Unidos da Tijuca. “Magia Africana no Brasil e seus Mistérios”, de 1975, tem em seus quatro primeiros versos a lembrança da escravidão. Mas o foco da letra está na exaltação às origens do negro, repleta de termos e saudações afro e cantada com melodia mais valente. Nos dois sambas seguintes, é exaltada a luta de Zumbi, o grande líder da fuga de escravos em Palmares. “Quilombo dos Palmares” foi o enredo que resultou no primeiro título salgueirense em 1960 e pioneiro na lembrança a Zumbi, um personagem então obscuro que se tornaria posteriormente um dos mais homenageados nos desfiles das escolas. A interpretação do samba é de Dinalva, que também estampa a capa de “O Negro no Brasil” segurando um retrato dos sambistas que participam do disco, fotografados em frente à antiga quadra de ensaios do Salgueiro localizada no morro. “Ganga Zumba”, cantado pelo então bloco Canários das Laranjeiras em 1970, reforça que Zumbi “foi um negro, foi um bravo / que o Brasil abençoou / na senzala foi escravo / no quilombo foi senhor”.

Na sétima faixa, o extraordinário cantor Abílio Martins abrilhanta “Valongo”, samba-enredo do Salgueiro de 1976 que conta a chegada dos negros ao Rio de Janeiro, com o desembarque no cais do Valongo, porto de entrada para mais de um milhão de escravos entre 1780 e 1831. A simpatia da escola Em Cima da Hora também marca presença com o lindíssimo “A Festa dos Deuses Afro-Brasileiros”, de 1974, em antológicas interpretações de seu autor Baianinho e do coral. Nas festas ocorridas na Bahia, cantos eram ecoados nas noites de lua cheia, festejando os deuses a fim de amenizar a dor e o sofrimento do negro: “Arerê, caô meu pai arerê”.

Um casal de personagens representativos da escravidão aparece nas duas faixas seguintes. “Chico Rei”, na minha opinião o melhor samba-enredo da história do Salgueiro (de 1964), descreve a saga do escravo que, ao trabalhar nas minas de Vila Rica, escondeu pó de ouro entre os cabelos até conseguir juntar a quantia necessária para comprar sua alforria. Noel Rosa de Oliveira, intérprete salgueirense nos anos 60 e 70, dá vida a esta obra-prima de letra totalmente didática, aliada a uma melodia emocionante. Em seguida, a escrava que se torna rainha, “Chica da Silva”, também gera outro samba-enredo fantástico para o Salgueiro (cantado em 1963). Na história, a mulata é arrematada como escrava, mas acaba se casando com seu proprietário João Fernandes de Oliveira. Destaque para os versos “E a mulata que era escrava / sentiu forte transformação / trocando o gemido da senzala / pela fidalguia do salão”.

As duas últimas faixas simbolizam a liberdade do negro. E estes dois sambas-enredo fazem parte de todas as listas dos melhores de todos os tempos. “Sublime Pergaminho”, da Unidos de Lucas de 1968, tem sua estrutura dividida em duas partes. Na primeira, descreve com melodia triste o sofrimento, inclusive reforçando que os negros eram iludidos com quinquilharias. A partir do refrão central “E de repente / uma lei surgiu / que os filhos dos escravos / não seriam mais escravos do Brasil”, a melodia passa a ser mais valente e otimista, com a descrição da Lei dos Sexagenários (de 28/9/1885) que liberta os escravos com mais de 60 anos. Seria um passo importante para a assinatura da Lei Áurea menos de três anos depois. E, por fim, para fechar com chave de ouro este álbum esplêndido, reaparece o timbre marcante de Abílio Martins cantando “Heróis da Liberdade”, do Império Serrano. Este samba-enredo, que particularmente considero o melhor da história do Carnaval, foi composto para o desfile de 1969. Em plena época de anos de chumbo, com o país sob o vigor do AI-5. O samba causou a indignação dos censores, que pediram que a palavra “revolução” fosse trocada por “evolução” no trecho “Já raiou a liberdade / a liberdade já raiou / essa brisa que a juventude afaga / essa chama que o ódio não apaga / pelo universo é a revolução / em sua legítima razão”. O fim da faixa – e conseqüentemente do disco – é apoteótico, com o refrão “ôôôô, liberdade senhor” sendo entoado no momento em que o coral canta triunfalmente: “liberdade, liberdade”. Um momento de levar qualquer bamba às lágrimas.

“História do Brasil Através do Samba de Enredo – O Negro no Brasil” é uma autêntica aula de história regada a samba. É um registro singular do autêntico samba, que não pode faltar no acervo do aficionado pelo ritmo. Você aprende, saboreia o samba numa admirável cadência e ainda se emociona. Sem contar que o CD também pode servir para garantir boas notas na escola. Embora Noel Rosa tenha evidenciado que “ninguém aprende samba no colégio”. Mas que o samba, nesse caso, seria fundamental... isso não tem como negar. Uma exceção à regra do poetinha da Vila.