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Os sambas do Grupo Especial do RJ 2024 por Bruno Malta

Os sambas do Grupo Especial do RJ 2024 por Bruno Malta


NOTA DO EDITOR: O texto a seguir, com as análises do Grupo Especial do Rio de Janeiro para 2024, foi escrito por Bruno Malta por volta de setembro e outubro, antes do lançamento do CD. Na ocasião, o colaborador do site SAMBARIO se baseou nas versões concorrentes ou não-oficiais feitas pelas agremiações, além de
audições ao vivo nas quadras. Os comentários foram preparados exatamente para a publicação em nosso site.

Bruno Malta faleceu no dia 15 de novembro de 2023, vítima de um atropelamento no Rio de Janeiro. Antes do triste ocorrido, o colaborador repassou os textos para seu colega de SAMBARIO, Theo Valter Knetig. A postagem do material foi autorizada pelos familiares.

As avaliações e notas referidas apresentam critérios distintos dos utilizados pelo júri oficial, em nada relacionados aos referidos desempenhos que as obras virão a ter no desfile

Imperatriz: A atual campeã Imperatriz Leopoldinense segue se renovando. Com o carnavalesco Leandro Vieira no comando artístico, a verde-e-branca conquistou a taça do Grupo Especial após vinte e dois anos e reconquistou o respeito como escola grande. Mais do que trazer um troféu para a galeria do povo de Ramos, a impressão que é transmitida é que a nação leopoldinense, enfim, voltou a ser vista como uma peça fundamental para o tabuleiro de disputas e discussões. Nesse cenário, a escolha de enredo após uma bem-sucedida narrativa sobre o que teria sido o pós-julgamento para Lampião era uma missão complexa. A aposta foi ir na linha contrária do que se estabeleceu como regra para o próximo ano. Ao contrário de tantas agremiações que miraram a densidade, a profundidade e a conexão com coisas que não estão entre as mais populares, a construção gresilense é baseada em coisas que estão no nosso dia-a-dia.

"Com a sorte virada pra lua, segundo o testamento da cigana Esmeralda" narra uma história cotidiana para contar os ensinamentos de um folheto escrito há mais de cem anos. De autoria do poeta paraibano Leandro Gomes de Barros, o texto traz explicações sobre sonhos, sorte, leitura de mão, datas para sorte ou azar e muito mais. A proposta gerou uma composição de inteligentes soluções, fruto de uma junção de dois concorrentes oriudnos da disputa interna da agremiação. Com os compositores Jeferson Lima, Rômulo Meirelles, Jorge Goulart, Sílvio Mesquita, Carlinhos Niterói, Bello, Gabriel Coelho, Luiz Brinquinho, Miguel da Imperatriz, Antônio Crescente, Renne Barbosa e Me Leva, a opção de construção para letra e melodia foi tentar misturar o tom mais baixo e místico da energia cigana com a alegria e a popularidade dos ensinamentos do testamento. É como se a composição buscasse achar um meio do caminho entre os dois lados que a própria temática impõe para narrar esse conteúdo.

O início da composição é parte do delírio que norteia essa história. Diz a lenda que esse testamento foi trazido para o Brasil por um grupo de ciganos que, em caravana e ao redor de fogueiras, espalhou festa, música, circo, dança e a crença popular naquilo que o testamento guardava. Esse recorte é muito bem trazido por "Ê cigana, a caravana está em festa // Tem fogueira, dança e seresta // Nesta Avenida da ilusão // Ao som de violão e violino // O verso da mais pura inspiração // Descobri seu testamento e fiz um manual // Sonhei a vida feito carnaval // Em devaneios e magia". Os autores resumem a ideia da abertura. Conclamam a presença da cigana, recordam a festa através de uma caravana formada por fogueira, dança e seresta na avenida da ilusão - Sapucaí. Com som de violões e violinos, surge o verso que canta essa história descoberta. Do seu manual, surge as respostas para os sonhos que beiram devaneios e magia que serão contados pelo carnaval gresilense. Pensando exclusivamente em narrativa, não há exatamente ruim, mas a solução de "o verso da mais pura inspiração" como conectora de ideias é um pouco complicada. Afinal, a sensação é que isso está apenas para encher espaço e sem um sentido efetivo na reprodução do que está sendo contado (-0,1 letra).

A sequência fecha a ideia da estrofe com "Riscando a fé no talão // Apostei na Coroa e no coração" e emenda no refrão central com "O destino é traçado na palma da mão // E a vida se equilibra em cada linha // Andarilho, sonhador // Na corda bamba do amor // Encontrei minha rainha (Ó Imperatriz)". A construção parte para narrar um pouco do que aquele testamento trazia. Nos versos que abrem esse trecho, a ideia é demonstrar que os delírios de quem sonha com urso ou macaco podem trazer o jogo certo (a fé no talão), mas a aposta certa é a coroa (Imperatriz) que está no coração desse povo. Já o quadrante seguinte mostra outro viés com o "jogo de mão" (as linhas que cruzam as mãos de qualquer pessoa) como a definição para o futuro. A vida que se equilibra entre a felicidade e a tristeza mostra que seguir sonhando com o amor é possível para quem ainda acredita nele. Mas, dentro do universo carnavalesco, essa paixão, claro, é a Imperatriz Leopoldinense. A narrativa é funcional. Se o início apresenta a história que dá origem ao que esse enredo, o que vem a seguir sempre conecta os ensinamentos desse testamento místico com a verde-e-branco de Ramos. O único senão é o rompimento melódico de "riscando a fé no talão" que acaba não conectando a unidade dos desenhos por inteiro, fazendo com que o canto e dança sejam menos fluídos (-0,1 melodia).

A segunda estrofe abre com mais menções ao apresentado naquele manual. Os astros, as estrelas, o céu... tudo pode explicar o futuro e definir a direção certa. Nos versos "Olhei o céu no infinito da constelação // A noite, o véu, eu vi os astros na imensidão // Fui sob à luz das estrelas // Buscar a certeza da minha direção", os autores demonstram essa parte do manual com clareza. Quando olhamos pro céu, surge o infinito, na noite, os astros na imensidão, mas a luz das estrelas dão a verdadeira direção. Até aqui, tudo certo. O verso seguinte "Ê luar de balançar maré" representa a conexão entre a parte astrológica do enredo com a entrada do calendário zodiacal da Imperatriz. Essa mudança aparece em "Meu cantar é um sinal de fé // Prenúncio da sina da minha Escola // O sol beija a lua no espelho do mar // Já está marcado no meu calendário // Verde-esmeralda é vitória que virá" que anuncia que o cantar da Imperatriz é um sinal de fé que avisa a sina destinada pela cigana. Afinal, o o sol entra em peixes, o brilho lunar avança em aquário e o calendário marca: É dia de vitória para o povo de Ramos. Ou seja, se os astros se alinham e dão a direção certa, o calendário zodiacal também traz a convicção da conquista verde-e-branca. A única ressalva é a melodia que além de ter problemas pelas rimas travadas no começo e meio (constelação, imensidão e direção/maré e fé) (-0,1 melodia), também rompe muito fortemente antes da chegada do duplo refrão, perdendo a unidade musical (-0,1 melodia).

Finalizando a obra, surge o duplo refrão. O primeiro faz referência ao ponto de Umbanda Barraca Velha. Os versos "O que é meu é da cigana, o que é dela não é meu // Quando chega fevereiro meu caminho é todo seu" são funcionais e efetivos para dar força ao canto e a dança. A questão é que a letra é um pouco complexa. Se o que é a da Imperatriz já é da cigana, por qual motivo, é necessário reafirmar que em Fevereiro, o caminho da escola é dela? Redudante, claro. (-0,1 letra). Já o segundo menciona o horário de desfile - o amanhecer da manhã de segunda-feira - com "Vai clarear... Olha o povo cantando na rua // A Imperatriz desfila com a sorte virada pra lua". Esse pedaço conclui a composição fazendo uma espécie de "festejo". No clarear do dia, o povo de Ramos canta na rua do sambódromo da Marquês de Sapucaí. A Imperatriz desfila com a sorte virada pra lua que ilumina os ensinamentos do testamento centenário. É funcional e tem pegada suficiente para arrastar uma multidão atrás da verde-e-branca no fechamento do primeiro dia de desfiles. O conjunto demonstra a clareza de ideias e conceitos que os compositores tiveram na tradução desse enredo. Além disso, sintetiza como essa temática foge do lugar-comum de densidade dos enredos do ano. Mas, apesar de tudo, expõe alguns problemas que a junção gerou como a dificuldade de unidade melódica em alguns trechos e uma letra mais vazia e excessiva em alguns passagens.

Nota: 9,5

Letra: 4,8
Melodia: 4,7

Viradouro:Desde 2020, a Unidos do Viradouro se notabilizou a construir uma identidade musical de densidade com toques de explosão ou encantamento. Foi assim com o refrão pulsante do Ensaboa Mãe ou com o padrão incomum da carta e até com as múltiplas facetas que o samba sobre Rosa Maria apresentou. É seguindo esse perfil que a composição de Claudio Mattos, Claudio Russo, Julio Alves, Thiago Meiners, Manolo, Anderson Lemos, Vinicius Xavier, Celino Dias, Bertolo e Marco Moreno enredou a história de uma força que se manifestou nas épicas batalhas na Costa ocidental da África. Durante a jornada, vemos como esse poder influenciou as lutas das guerreiras Mino, do reino de Daomé, que foram iniciadas espiritualmente pelas sacerdotisas voduns. Esse grupo também ficou conhecido como a dinastia de mulheres escolhidas por Dangbé. No fim, o enredo também apresenta a chegada do culto ao Brasil, com a instalação de terreiros na Bahia através de Ludovina Pessoa.

Antes de entrar no verso a verso, é importante destacar que essa temática também mantém a linha de histórias que a agremiação de Niterói vem apresentando nos últimos carnavais. As ganhandeiras de Itapuã, o Carnaval de 1919, a saga de Rosa Maria Egipcíaca também traziam relatos profundos sobre coisas não necessariamente populares. Ou seja, além do desafio de musicar o tema, os autores também precisaram tomar o cuidado de transformar em algo mais palpável para o grande público, sem que fique exageradamente didático, fazendo com que permaneça o padrão poético e, principalmente, o respeito ao cenário por onde os ocorridos se passam. Um outro adendo importante é a mudança de intérprete. Wander Pires, muito mais melódico em seu canto, subsituiu o aguerrido Zé Paulo Sierra no comando do carro de som da vermelha-e-branca. Adaptar a composição ao estilo do cantor também era uma missão para o time de poetas.

Dito isso, vamos ao samba. A primeira estrofe narra as duas primeiras fases do culto à Dangbé. O início é com "Eis o poder que rasteja na terra // Luz pra vencer essa guerra, a força do Vodun // Rastro que abençoa Agoye // Reza pra renascer, toque de Adarrum". O último verso, inclusive, é marcado melodicamente como "fechamento" da primeira fase. No enredo, isso significa que a força (serpente) que rasteja foi vital na vitória de Uidá contra Aladá na épica batalha na Costa da Mina. Esse sinal enérgico abençou as escolhidas (Agoyes) e é cultivado nas procissões que evocam os tambores que a convocam. É um bonito ponto de partida.

A sequência traz "Lealdade em brasa rubra, fogo em forma de mulher // Um levante à liberdade, divindade em Daomé // Já sangrou um oceano pro seu rito incorporar // Num Brasil mais africano, outra areia, mesmo mar". Nesse pedaço, a ideia é transmitir como essas iniciadas passavam por processos de "fortificação" do seu sobrenatural. As mulheres-soldados, esposas e guardiãs do Rei de Daomé, são frutos da língua de brasa e do cipó de fogo que a entidade as entregou. No rito que as consagrou, os valores místicos que as formaram - junto com a força da serpente - viajaram pelos mares rumo ao Atlântico, mais especificamente ao Brasil. Nesse lugar, mesmo distante, a força africana parecia estar na sua futura casa. Esse pedaço é de fácil compreensão e tem um lindo verso em "Num Brasil mais africano, outra areia, mesmo mar", mas peca nas finalizações. Mulher/Daomé e incorporar/mar acabam pelo conceito paralelo cansando com o passar das audições na parte melódica. (-0,1 melodia).

O refrão central, finalmente, coloca o enredo no Brasil. "Ergue a casa de Bogum, atabaque na Bahia // Ya é Gu rainha, herdeira do candomblé // Centenário fundamento da Costa da Mina // Semente de uma legião de fé". Ludovina Pessoa, sacerdotisa do candomblé, chegou ao país com a missão de perpetuar a crença nos voduns. Na Bahia, essa líder ergueu o templo religioso dedicado à serpente Dangbé. No samba, os versos transcrevem esse momento. A serpente chega ao território brasileiro erguendo seu templo e convocando o rito com o atabaque. Ludovina Pessoa é rainha, a herdeira do Candomblé. O local escolhido é o Bogum, casa centenária que remetia a um aldeamento próximo à Costa da Mina, mas também servia como local de apoio à Revolta dos Malês, ocorrida em Salvador na primeira metade do Século XIX que foi primordial para a união das sacerdotisas, verdadeiras irmãs de fé.

A segunda estrofe começa com "Vive em mim // A irmandade das irmãs de cor // A força, herdei de Hundé e da luta minó // Vai serpenteando feito rio ao mar // Arco-íris que no céu vai clarear" que transmite exatamente o que o trecho anterior começa como ideia. A união agora era de dupla-face. Os voduns protegiam as mulheres e elas protegiam as entidades. Vive na serpente, a irmandade das irmãs (mulheres, guerreiras, agojies) através da força que herdou de Hundé (Seja Hundé, terreiro localizado em Cachoeira na Bahia) e na luta minó (das batalhas da Costa Ocidental da África). Vive a serpente no caminho rumo ao mar vindo dos rios, vive a serpente no arco-íris, símbolo do encantamento, que brilha como uma fio que liga céu e terra. Por fim, os versos "Ayi! Que seu veneno seja meu poder // Bessen que corta o amanhecer // Sagrado Gume-Kujo // Vodunsis o respeitam, clamam Kolofée // Os tambores revelam seu afé". A serpente pede que (Ayi) o vodun da terra seja seu poder e que a energia das cores, da luz após as chuvas (Bessen) corte o amanhecer (horário de desfile da Viradouro) no sagrado terreiro (Gume-Kujo) da Sapucaí. Por fim, a força conclama que as guerreiras (Vodunsis), preparadas, o respeitam, clamam pela benção (Kolofée) e os tambores revelam o ritual que as consagraram. Por mais difícil que a interpretação seja, o enredo está bem amarrado e contado. A única questão é que a letra tem alguns poréns nas finalizações e aberturas. Além do bis de "A e A" no começo, o fim com "mar, clarear e poder/amanhecer é bastante prejudicial para o funcionamento da obra com o passar do tempo e transmitem pobreza por repetir saídas já apresentadas. (-0,1 letra) (-0,1 melodia).

Nos dois trechos finais, o samba explode com "Ê Alafiou, ê Alafiá, é o ninho da serpente // Jamais tente afrontar // Ê Alafiou, ê Alafiá, é o ninho da serpente // Preparado pra lutar" e "Arroboboi meu pai, arroboboi Dangbê // Destila seu axé na alma e no couro // Derrama nesse chão a sua proteção // Pra vitória da Viradouro" que consegue ter uma facilidade para o canto, mesmo com uma letra complexa. Na letra, os autores trazem a ideia de caminho aberto, é o ninho da serpente, não é possível deter, pois ele está sempre preparado pra lutar no primeiro bis. É como se a serpente avisasse a todos que a Viradouro é o seu ninho e ele é insuperável, pois a escola vestiu sua energia abrindo seus caminhos para essa força. No segundo, a tradução é Salve meu pai (Meu pai aqui é: Oxumaré, orixá da terra e da água, onde a energia da serpente se faz presente), salve a serpente, é hora de seu axé estar na alma - o corpo dos componentes -, no couro - o toque da bateria - e no chão da pista sagrada para abençoar o sonho do título da Viradouro. Aqui, tudo perfeito. Refrães fortes, com poder de funcionamento na Sapucaí e, principalmente, com a característica de garra e luta que a escola se acostumou.

O conjunto da obra é de um resultado que mantém o padrão estético de composições da escola que mistura a possibilidade de se popularizar com a fortaleza melódica dos dois últimos refrães com o perfil mais erudito que a segunda estrofe, trabalhada com várias expressões em iorubá, apresenta. Além disso, apesar do resultado manter a linha de garra e luta que a escola trazia com muita identidade com o antigo cantor, os compositores também conseguiram várias saídas para se adequar ao estilo mais melódico do novo intérprete que brilhou em mais uma gravação de sucesso.

Nota: 9,7

Letra: 4,9
Melodia: 4,8

Vila Isabel: A conquista do campeonato é o grande objetivo da Unidos de Vila Isabel. A questão é que a taça segue escapando nos detalhes. Em alguns momentos foi o visual, outros foi o musical e, por vezes, a questão temática. Muito por isso, no próximo ano, a escolha da azul-e-branca rompeu um paradigma criado no mundo do samba. O histórico negativo dos resultados das escolas que reeditaram desfiles antigos não impediram que essa opção fosse a definição da agremiação para o próximo desfile. Com o carnavalesco Paulo Barros no comando artístico, o povo do samba apresenta "Gbalá — viagem ao templo da criação". Elaborado inicialmente por Oswaldo Jardim, em 1993, a narrativa fictícia utiliza a cultura Yorubá como base criativa, propondo uma reflexão sobre nosso planeta, as mazelas que os humanos fazem à Terra e a possibilidade de nos salvarmos através das crianças e sua candura.

A proposta para o Carnaval traz o seguinte cenário. Certa vez, cachoeira, rio, mina, orvalho, mar, lagoa e chuva revelaram a existência de sete cores. E esta visão fez com o que os grandes artistas da criação entendessem que sua missão é a beleza do mundo. Desse modo, a Vila conta a história de quando o Criador adoeceu após sua geração ter se perdido. Assim, os Orixás, sob o comando de Olorum, guiaram as crianças para o Templo da Criação, onde elas receberiam os ensinamentos primordiais e os valores que deveriam ser passados adiante. O samba levou a assinatura de Martinho da Vila, histórico nome da agremiação, que compôs sozinho uma obra atemporal e que trouxe a simplicidade do que está sendo contado como principal marca de estética e musicalidade. A única ressalva é como uma trilha sonora feita para trinta anos atrás será vista e entendida por público e crítica na Marquês de Sapucaí de 2024. Afinal, em meio a tantas músicas que buscam duplo-sentido, imagens alegóricas e densidade como características de qualidade e criatividade, ver uma composição diametralmente oposta nesses aspecto, despera, no mínimo, curiosidade.

Dito isso, o samba. A obra narra o início de tudo. Com "Meu Deus // O grande criador adoeceu // Porque a sua geração já se perdeu
Quando acaba a criação // Desaparece o criador", o ponto de partida é dado. Dentro da história pensada, Oxalá, o grande criador, está adoecido. Sua geração está perdida e o mundo corre perigo. Sua preocupação é o que fim do planeta, também significa seu time. Seu sumiço do universo. Mas ainda existe uma luz no fim do túnel. Afinal, para salvar o mundo e a geração, só o amor e a esperança são capazes disso. Isso é transcrito em "Pra salvar a geração // Só esperança e muito amor". Em termos de narrativa, tudo muito bem feito. Os significados são claros e nem é necessário uma sinopse para traduzir tudo. A poesia de Martinho é bastante didática e acaba sendo funcional e efetiva até para quem não está familiarizado com o universo iorubá.

A sequência ganha um conectivo interessante com "e então" que abre a estrofe que narra a chegada da "inocência" no "templo da criação". Os versos "Então foram abertos os caminhos // E a inocência entrou no Templo da Criação // Lá os guias protetores do planeta // Colocaram o futuro em suas mãos // E através dos Orixás se encontraram // Com o Deus dos deuses, Olorum". Nesse pedaço, Martinho criou soluções para narrar as crianças servindo como esperança. Com os caminhos abertos por Exú, regente da comunicação entre os deuses e os homens, a inocência (criançada) entrou no templo da criação universal. Por lá, os orixás (Ogum, Ossain, Oxóssi, Xangô, Oxum, Iansã, Omolu e Iemanjá), seguindo os preceitos de Olorum, colocaram na luz e nas virtudes dos jovens, a proteção e a salvação do que estava em jogo: o universo. Em termos gerais, mais um acerto do autor. Além de sintetizar ideias com clareza, a didática de colocar a sutileza como protagonista evitando palavras difíceis é uma sacada de mestre. O único ponto que merece ressalva é a melodia de "Com o Deus dos deuses, Olorum" que é apertada e acaba fazendo com que as palavras não sejam cantadas com clareza. (-0,1 melodia).

A estrofe seguinte mantém o padrão de conectivos através de cacos. Com "E viram", a composição repete um padrão e consegue marcar a nova fase da história. Assim sendo, surge "Viram como foi criado o mundo // Se encantaram com a mãe natureza // Descobrindo o próprio corpo compreenderam // Que a função do homem é evoluir // Conheceram os valores do trabalho e do amor // E a importância da justiça" que mostra como essa viagem das crianças no templo foi produtiva e recheada de ensinamentos. Lá viram a criação por inteiro, se encantaram com a floresta e mãe natureza de Oxóssi e Ossain, descobriram o próprio corpo e sua evolução com Omolu e Ogum, conheceram a necessidade de trabalhar e amar com Oxum e tiveram a certeza de que justiça é fundamental com Xangô. A letra é brilhante e segue padronizando a ideia de que não é preciso detalhar as mensagens com citações nominais. Tudo é sublinhado, tudo é desenhado de forma menos literal para que os contornos poéticos sejam os atores principais da trilha.

Fechando a obra, surge "Sete águas revelaram em sete cores // Que a beleza é a missão de todo artista" que menciona como as sete águas (cachoeira, rio, mina, orvalho, mar, lagoa e chuva) sob a batuta de Iemanjá, a rainha delas, e o brilho de Oxumaré, revelaram que essa visão fez com o que os grandes artistas da criação entendessem que sua missão é a beleza do mundo. Estava cumprida a tarefa direcionada as crianças e o mundo, enfim, tinha esperança para sua salvação. E é isso que narra o refrão principal. Com "Gbalá é resgatar, salvar // E a criança é a esperança de Oxalá", o eu-lírico conclui essa viagem pelo templo da criança com a resposta para o fim das dores do mundo. Gbala - resgate do passado através do futuro - é resgatar, salvar. A criança é a esperança para o cessar do mal que sofria o criador Oxalá. Pronto. Tudo bem amarrado e bem feito. A única questão é que a melodia aqui, principalmente pelo andamento mais acelerado dos anos modernos, acaba fazendo com tantas rimas em mesmo tom e semelhante terminação acabe cansando. Com muito mais repetições que o natural dos anos 90, um refrão nesse formato pode acabar trazendo sensação de "arrastamento" com o andar da escola na Sapucaí (-0,1 melodia). No conjunto, fica evidente que a genialidade de Martinho ainda é capaz de trazer uma letra impecável mesmo no exigente padrão atual, mas a musicalidade, pensada para outro estilo de bateria e evolução, ainda deixa dúvidas sobre a funcionalidade no século XXI. Resolver isso é o desafio para Tinga, Macaco Branco e o time musical da escola de Noel.

Nota: 9,8

Letra: 5,0
Melodia: 4,8

Beija-Flor: Os títulos dos anos 2000 e a sensação de soberania com cinco títulos em seis anos construíram uma Beija-Flor ideal na cabeça dos componentes, torcedores e amantes do samba. A escola densa, recheada de africanidade e identidade social pairam como um objetivo anual para que a agremiação se sinta em casa e confortável para desempenhar o melhor desempenho possível. Com isso, os últimos três anos onde a irregularidade foi uma marca acabou trazendo a insegurança no caminho que a azul-e-branca deseja seguir para os próximos desfiles. Se por um lado, o perfil mais profundo, mais carregado sempre pareceu sedutor, uma mudança de horizonte e de ideias parecia urgente. A posição de desfile no sorteio - apenas a segunda de domingo, algo complicador na disputa por mais um caneco - acabou tornando a dúvida ainda mais latente.

O enredo também gerava uma divisão. O lado mais denso que conta a história do engraxate Benedito, filho de escravizados, que acreditava ser descendente da realeza etíope. Mas há a saída mais "festiva" que permitia mais "alegria" na apresentação. Esse personagem também ganhou a alcunha de Rás Gonguilla e fundou um bloco carnavalesco em Maceió, capital das Alagoas. Ou seja, se a africanidade e a densidade estavam ali, o perfil mais festivo, leve e carnavalesco também apareciam com força. O que ajuda a responder a rota adotada pela agremiação nilopolitana é o samba. De autoria de Kirraizinho, Lucas Gringo, Wilsinho Paz, Venir Vieira, Marquinhos Beija-Flor e Dr. Rogério com participações especiais de Chacal do Sax, Ramon Quintanilha e Naldinho, a composição é leve, despretensiosa e muda radicalmente o estilo adotado como "a cara" da escola nos últimos anos.

Uma mudança narrativa pautou a composição após a vitória no concurso interno. Se antes era construído em terceira pessoa, após ajustes da agremiação, o contar da história foi pra primeira pessoa, na visão do homenageado Benedito. A questão é que isso não ficou exatamente perfeito como veremos mais a frente. O início por exemplo fica assim "Em Maceió // O paraíso deu à luz a um menino // À beira-mar nasci um rei // E o senhor das ruas deu o meu caminho // Eu acreditei!" que remete ao início de tudo. Ainda no início do século XX, nasceu o herói desse enredo. Benedito, ainda moleque, ouviu duas coisas que mudaram sua vida: A primeira era de que seus antepassados eram reis e rainhas na Etiópia, o que levava de volta para Palmares, quilombo que se conectava com a sua Maceió. Além disso, também ouviu que no dia de festa, as armas desencansavam. Assim, seu destino era honrar as tradições de seus ancestrais para manter a festança. Em termos de enredo, tudo certo. Mas repare que os dois primeiros versos não conseguem manter o tipo de narração. Saindo da terceira pessoa (primeiro e segundo) para a primeira pessoa (nos últimos) de forma abrupta, sem escalas (-0,1 letra.).

A seguir a obra continua com a narração no olhar do homenageado nos versos "Herdeiro da dinastia e das lutas de Zumbi // De Palmares às palmeiras e marés // Da cultura e bravura dos Tupis e Caetés // De nobre engraxate ao novo horizonte // Real cavaleiro dos montes" que segue trazendo mais detalhes de seu destino. Ele foi herdeiro da dinastia etíope, das lutas do quilombo de Palmares que se conectam com as palmeiras de Maceió. Além disso, também trazia a bravura dos guerreiros caetés, mas a cultura dos rituais da Mãe África. E por fim, foi engraxate, mas descobriu que seu horizonte era ser o líder do Cavaleiro dos Montes, bloco histórico na capital alagoana. Em termos de enredo, perceba que tudo tá bem amarrado, mesmo trazendo a sensação de lista. O problema está em algumas soluções. Além de vários versos iniciados e tendo conectivos em "da" e "de" que travam a melodia, o "caetés" esticado no fim do verso também traz uma melodia mais longa que o necessário (-0,2 melodia).

O refrão do meio é interessante justamente por ter uma melodia que incentiva demais o canto e a dança dos componentes trazendo um clima ainda mais carnavalesco para a composição. "Tem mironga, festa da ralé // Malandragem, frevo arrasta-pé // A magia que avoa, o rosário no andor // A cantiga que ecoa no axé do meu tambor" é um convite a voltarmos mais de cem anos no tempo e imaginarmos o carnaval em Maceió. Por lá, a massa se divertia na festa da ralé no ritmo efervescente do frevo que ecoava das orquestas que arrastavam multidões no centro da cidade, próximo a igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Mais um trecho didático que resume bem o tema, mas é complicado ver tantas rimas próximas como ralé/pé, magia/cantiga, avoa/ecoa e andor/tambor. A melodia nem fica travada, mas a poesia da letra acaba prejudicada (-0,1 letra).

Na segunda estrofe, os compositores dividem as ideias em duas. Nesse cenário, o conceito inaugural também mistura duas partes. A primeira trata de quando Benedito ganhou o apelido de Gonguila. Conta a história que quando moleque, ele adorava brincar com pião. Quando não o rodava direito, o popular era dizer que o brinquedo "gonga". Por conta da falta de habilidade no controle do artefato, ganhou o apelido que remetia a esse ato. Já a segunda resume o encontro fantasioso onde Rás acompanhava a coroação de Rás Tafari, Imperador da Etiópia, que nosso herói imaginava ser seu parente. Nesse sonho, viu a festa que brincantes etíopes - como num bloco de rua - faziam na saída do monarca, rumo à jangada que levaria toda a corte africana para Maceió. Isso é bem traduzido no samba nos versos os versos "Gira, mundo, feito pião que "gonguila" do jeito // Que me eterniza o Benedito dos plebeus // Quando encontro a corte africana // A nobreza alagoana realiza os sonhos meus". Os problemas aqui são melódicos. A palavra "Gonguila" fica apertadíssima na melodia (-0,1 melodia) sendo problemática para o canto, assim como a variação que derruba o tom na junção das frases "jeito que me eterniza" já que a ideia é unificar tudo num fraseamento só (-0,1 melodia).

Já o outro conceito menciona a profecia que o próprio Benedito - dentro do contexto - fez. Ao ver, bem longe dali, que Ras Tafari, príncipe respeitado, era coroado Imperador da Etiópia, local de onde acreditava que seus antepassados eram, assumiu seu "parentesco" com o novo monarca, colocou "Rás" em seu nome junto a seu apelido "Gonguilla" e profetizou: um dia, ainda haveria de ver o encontro encantado das realezas de Maceió - onde estava -, da Etiópia - onde acreditava ter ancestralidade - e de uma corte soberana azul e branca - seu futuro. É nesse cenário que a Beija-Flor desembarca definitivamente na história. Em "Voa Beija-flor // A soberania popular me traz
Num batuque de Rás // Um côco, um pouco de samba de roda // E o povo anuncia: é ela!", o samba apresenta esse encontro. A Beija-Flor vai buscar lá em Maceió, o rei brincante do carnaval da capital, herdeiro etíope e destinado a ser um eterno folião. Nesse sentido, a escola voou até a cidade, com sua soberania, trouxe o batuque de Rás junto do côco e do samba de roda alagoano. A rima traz/rás não é das mais inspiradas e ainda apresenta mais um pequeno percalço da troca de narração. Se é o Benedito contando, o "num batuque de Rás" talvez ficasse melhor se fosse "com o meu batuque de rás" para adequar ao olhar do personagem (-0,1 letra).

Fechando o samba surge o "Delira... // Tem Pajuçara no mar da Mirandela!" que unido ao refrão com "Aqui é Beija-flor doa a quem doer // Do gênio sonhador, da gana de vencer // Tá no meu peito, tá no meu grito // Escola de respeito que coroa Benedito" são os momentos mais cativantes em termos de canto. A melodia é forte, envolvente e capaz de trazer aquele canto aguerrido que a Beija-Flor adora, mas a letra... é complicado. Reparem! Os dois primeiros versos são tranquilos. O "Delira" se refere ao povo que anuncia a chegada da Deusa da Passarela a cidade e o "Pajuçara no mar da Mirandela" é uma linda mistura entre os dois universos. O bairro alagoano e suas praias recebem os foliões e componentes da escola de Nilópolis. Excelente! O problema é o refrão principal. Lembra do Benedito narrando? Aqui, ele é praticamente esquecido. O anúncio da escola é feito com as características de si própria (gana de vencer e grito) e de seu homenageado (gênio sonhador e peito), mas o verso "escola de respeito que coroa Benedito" é um mistério sem explicação. Se é ele quem narra, por qual motivo, se menciona na terceira pessoa? (-0,1 letra). Além disso, o verso "tá no meu peito, tá no meu grito" fica esquisito e vago. Se escola de respeito coroou Benedito, o que está no grito? A gana de vencer? Não dá pra entender (-0,1 letra). No conjunto, fica nítido que a Beija-Flor abriu mão de uma obra mais trabalhada para optar por um caminho mais leve, mais direto e até mais simplório em letra e melodia para, de fato, ter uma característica diferente no próximo ano. A questão que deve ser levada em conta é até que ponto, abrir mão de qualidade em nome de uma nova identidade é necessário. Afinal, o que fez a Beija-Flor ser a escola que metia medo em todas as outras não era a densidade, mas sim, a qualidade que sempre trouxe em seus sambas de enredo.

Nota: 9,1

Letra: 4,5
Melodia: 4,6

Mangueira: A escolha de enredo da Estação Primeira de Mangueira é o principal sinal de ambição da verde-e-rosa no próximo ano. Se o título não vem desde 2019, a Velha Manga não desiste e segue lutando firme nesse objetivo. Muito por isso, a opção de centralizar a temática em uma das suas maiores referências é tentar trazer, além de uma história de qualidade, algo capaz de dar o que sempre notabilizou as conquistas da escola: a emoção. É como se a aposta em Alcione fosse uma forma que a agremiação encontrou para arrastar o sambista dentro e fora do seu próprio universo para se envolver com essa proposta. Foi assim que muitas conquistas vieram. A fórmula que deu certo em Braguinha (1984), Dorival Caymmi (1986), Chico Buarque (1998) e Maria Bethânia (2016) era o objetivo para o próximo desfile. Nesse sentido, o desafio dos compositores era tentar, de alguma forma, construir uma composição que buscasse manter o alto padrão de qualidade na trilha-sonora, sem perder a característica de causar impacto emocional nos ouvintes.

Por essas e outras, o enredo absolutamente simples e focado na história de vida da Marrom era mais uma saída para "simplificar" a rota para esse objetivo. A fé, as origens, os acontecimentos até o sucesso, a chegada ao samba da Mangueira e seu legado como referência aos mais jovens são as faces dessa homenagem. Muito por isso, a escolha no concurso interno foi a mais "segura" possível. Campeoníssimos e conhecedores do estilo que agrada grande parte dos mangueirenes, os compositores Lequinho, Junior Fionda, Gabriel Machado, Fadico, Guilherme Sá e Paulinho Bandolim, além de construírem uma obra de boa qualidade, também significam a sensação de que o roteiro planejado segue dando certo. A questão é o samba, apesar de apresentar momentos de inspiração, esbarra, em grande parte do tempo, no sedutor "atalho" de soluções banais que não surpreendem o ouvinte. Ou seja, dentro de tantas opções de "confiança" para ter um desfile de sucesso, a trilha-sonora também é assim, mas expõe percalços por essa opção.

Mas um dos momentos de inspiração é justamente a cabeça da composição. "Xangô chama Iansã // Que a voz do amanhã já bradou no Maranhão // Tambor de Mina, Encantados a girar // O divino no altar, a filha de toda fé // Sob as bênçãos de Maria, batizada Nazareth" traz ótimos versos de abertura. Nesse pedaço, os autores tratam Alcione, do jeito que ela merece, como algo histórico e destinado a acontecer - especialmente nos dois primeiros versos. Afinal, Xangô, justiceiro, chama Iansã, corajosa, para afirmar que a voz do amanhã (Alcione) surgiu lá no Nordeste Brasileiro. A sequência menciona que em seu propósito, ela também é filha de toda fé, batizada pela sua família Nazareth, seja no encantamento do Tambor de Mina ou no divino que brilha no altar de Maria no catolicismo. O único senão é que em termos de qualidade poética, talvez pudesse existir algo menos "lista" que os versos "Tambor de Mina, Encantados a girar // O divino no altar, a filha de toda fé", o que desabona o recorte (-0,1 letra).

O desenrolar da estrofe, ainda repassa algumas questões familiares para mostrar a transição da menina para a cantora que começava a ter sucesso. Nos versos "Quis o destino quando o tempo foi maestro // Soprar a vida aos pés do velho cajueiro // Guardar no peito a saudade de mãinha // Do reisado a ladainha, São Luís o seu terreiro // Ê bumba meu boi! Ê boi de tradição! // Tem que respeitar Maracanã que faz tremer o chão", são relembradas as memórias de mãe e pai e as mudanças na vida da heroína do enredo. O destino - ser artista na música - quando o tempo foi "maestro" (referência a seu João Carlos, pai de Alcione, maestro na Orquestra Jazz Guarani). Soprar a vida aos pés do velho cajueiro, árvore que é origem da homenageada e guarda lembranças de sua infância e a saudade de mainha (Dona Felipa). Do reisado à ladainha, Alcione fez de São Luís o seu terreiro. Nos bois, a recordação de uma Maranhão popular que vive, brinca, festeja, mas não esquece de mostrar sua ancestralidade com a louvação a São João, São Pedro e São Marçal. Em termos de construção melódica, acredito que o verso "Ê bumba meu boi! Ê boi de tradição!" é muito esticado pela referência ao "eeeeeeee" que arrasta os desenhos e acaba fazendo com que a estrofe não funcione na parte musical (-0,1 melodia).

No refrão central, o samba ainda menciona a parte maranhense, mas já viaja para o Rio de Janeiro. Com "Toca tambor de crioula, firma no batuquejê // Ô pequena feita pra vencer // Vem brilhar no Rio Antigo, mostra seu poder de fato // Fina flor que não se cheira não aceita desacato". Se o tambor de crioula - louvação a São Benedito com uma dança de origem africana - se firmou na voz da mulher, ela é feita pra vencer. Vai brilhar no Rio de Janeiro, mostrar seu poder de fato e dizer que não aceita desacato, pois é fina flor. Esse último verso, inclusive, é uma referência a música "Pode Esperar", música de 1978, que demonstra bem o lado "feminista" e "seguro" da cantora. O início da segunda estrofe já aprofunda essa virada na história. Em "Vai provar que o samba é primo do jazz // Falar de amor como ninguém faz // Nas horas incertas, curar dissabores // Feito uma loba impor seus valores", a ideia é mostrar como Alcione chegou ao samba. No início da carreira, a artista fez sucesso em vários ritmos como bolero, blues e, claro, jazz, mas foi no gênero que a exalta que tudo mudou. Por lá, falou de amor como nenhuma mulher, principalmente, tinha feito. Foi exemplo para superar dissabores com suas músicas, companheira de tantas nas horas de dificuldades, mas nunca deixou de se impor como fortaleza que é. Não gosto muito do "vai" que abre a cabeça da passagem. A narrativa que vem sendo construída do olhar do presente para o passado, passa uma sensação de ir para o futuro aqui, o que é um erro temporal (-0,1 letra). Além disso, a melodia é muito travada. Várias rimas coladas fazem com que a composição ganhe contornos mais mornos (-0,1 melodia).

A sequência, enfim, une a Marrom a Estação Primeira de Mangueira. Seu sucesso é o pilar para o futuro. Sua trajetória é o exemplo para as gerações que vieram e ainda vão vir. Os versos "E seja o pilar da esperança // Das rosas que nascem no morro da gente // Sambando, tocando e cantando // Se encontram passado, futuro e presente" resumem essa ideia. A cantora é o pilar da esperança das meninas que nascem nos morros de Mangueira e do Brasil todo. Todos que sambam, tocam e cantam são elos entre o passado ancestral que abençoa a elegida, o seu presente e o legado de seu amanhã. É um conceito tão bonito que dá tristeza ver um verso lista "Sambando, tocando e cantando" e ainda com a mesma terminação, o que trava a melodia e tira a beleza poética (-0,1 letra) (-0,1 melodia). Fechando a estrofe e preparando o duplo refrão aparece uma bela homenagem a nomes históricos da escola. "Mangueira! De Neuma e Zica // Dos versos de Hélio que honraram meu nome // Levo a arte como dom // Um Brasil em tom marrom que herdei de Alcione". A Estação Primeira de Mangueira, de Neuma e Dona Zica, dos versos de Hélio Turco, compositor mais campeão em toda a história da escola, honraram o nome da Marrom e levaram a arte ao Brasil amplo, diverso e miscigenado que é herança e sinônimo de Alcione. Funciona bem para canto e dança e ainda mantém uma bela conexão com a passagem anterior.

Nos dois últimos pedaços da composição, vem a explosão. Os ótimos "Ela é Odara, deusa da canção // Negra voz, orgulho da nação" são excelentes e preparam bem demais a chegada ao refrão principal. Alcione, é uma entidade que eleva e faz tudo ficar bem. A própria deusa da canção e da voz. É o orgulho da nação mangueirense. A única questão é que aquele padrão de rimas travadas mantém aqui e faz com que a passagem não funcione tão bem na melodia (-0,1 melodia). Mas isso é logo resolvido pelo grande momento da canção. Em "Meu Palácio tem rainha e não é uma qualquer // Arreda homem que aí vem mulher // Verde e rosa dinastia pra honrar meus ancestrais // Aqui o samba não morrerá jamais", nada merece ressalvas. O Palácio do Samba, casa da Mangueira, tem a rainha Alcione. Ela não é qualquer uma, enfrenta homem. Tem peso e fortaleza de grande mulher. A dinastia verde e rosa honra seus ancestrais, já que com a Marrom na Mais Querida, o samba jamais irá morrer. É perfeito, poético, popular e traz a linha que sempre foi "o ideal" para o ano mangueirense. Quando escolheu Alcione, a Velha Manga, certamente, esperava uma composição que trouxesse o espírito apresentado pelo refrão. Poético e popular. Muito por isso, o conjunto geral não é o mais inspirado, mas ainda mantém passagens que conseguem causar boas perspectivas no público da Marquês de Sapucaí.

Nota: 9,3

Letra: 4,7
Melodia: 4,6

Grande Rio: Os últimos anos e resultados da Acadêmicos do Grande Rio mudaram o viés adotado pela escola em toda sua história. A chegada da dupla de carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora modificou quase tudo na parte prática e de imagem da agremiação. Além da conquista inédita do título em 2022, a linha temática também ganhou outro perfil, tanto na parte estética, quanto um maior foco cultural. Enredos como Joãozinho da Golmeia, Exú e até Zeca Pagodinho foram provas dessa virada que trouxe profundidade nas mensagens levadas para avenida, quanto um caminho de identidade que nunca tinha sido um ponto forte da escola de Caxias. Assim sendo, o enredo "O nosso destino é ser onça" baseado no livro homônimo de Alberto Mussa mantém essa tendência de densidade nas histórias contadas que acabam proporcionando visuais de impacto em alegorias e fantasias.

Quando detalhamos a história narrada pela tricolor, é possível que algumas interpretações sejam confusas. Afinal, o argumento que surge a partir da reconstrução do mito tupinambá sobre a criação do mundo que foca na onça como símbolo maior e deságua numa viagem sobre o que essa figura tem como representação na cultura nacional e simbologia de luta na contemporaneidade não é exatamente simples quando resumida assim. Isso, claro, dificultou a missão dos compositores Derê, Marcelinho Júnior, Robson Moratelli, Rafael Ribeiro, Tony Vietnã e Eduardo Queiroz. Afinal, não bastaria construir uma melodia boa ou uma letra de impacto, decifrar e dar os caminhos para que a história ficasse mais simplificada para o ouvinte que quisesse entender o enredo apenas pela canção. O resultado é que a composição, dentro do possível, atingiu esse objetivo, mesmo que não do jeito mais eficaz.

O início da composição parte para a retomada da construção do mito. "Trovejou, escureceu! // O Velho Onça, senhor da criação // É homem-fera, é brilho celeste // Devora e se veste de constelação // Tudo acaba em fogaréu // E depois transborda em mar" é o ponto de partida da história. Diz a lenda que tudo era escuridão e apenas um velho homem sábio que caminhava pelo céu dominava e era o responsável pela criação de tudo e todos. Todos, inclusive, o amavam incondicionalmente. Mas ao perceber que existia alguns ingratos, o criador resolveu destruir tudo com uma chuva de fogo. Para apagar as chamas, criou o trovão, formulando um aguaceiro. Retratando o trecho, a obra é bem feita, mas acaba com algumas saídas complicadas. O primeiro verso "trovejou, escureceu" acaba por trazer duas expressões com mesmo significado para o tema. (-0,1 letra).

A sequência mergulha na chamada "Terceira humanidade". Diz a história que toda criação não surge sem conflito e esse surge no embate entre Sumé - parente de Jaci - e Maíra - familiar de Curaci. Após mais um dilúvio, Maíra, agora curumim, passa a ensinar a luta diária pelo solo. Já Sumé saltou oceanos e ruge voraz no céu perseguindo a lua, buscando incessantemente a vingança por seus semelhantes. O samba traduz isso em "A terceira humanidade Cuaraci vem clarear // Ê, Sumé, nas garras da sua ira // Enfrentou Maíra, tanto perseguiu! // Seus herdeiros vivem essa guerra // Povoando a Terra // A voz Tupinambá rugiu". Os compositores apresentam esse trecho da seguinte maneira: Com as desavenças entre Maíra e Sumé, brotou a terceira humanidade. Curaci, o sol, clareia o céu. Sumé, inconformado e irado, enfrenta Maíra e persegue a lua. Os herdeiros desses ancestrais seguem nessa batalha que povoa a terra. Nesse pedaço, os autores tentam dar dinâmica pro tema, mas acabam escorregando em alguns pontos. O verso "Enfrentou Maíra, tanto perseguiu" dá a entender que a perseguição é a ela, tirando o efeito de duplo sentido que o time de poetas tentou trazer. (-0,1 letra). Já o verso "A voz Tupinambá rugiu" não ganha a resultância musical de impacto que precisa para abrir mais um ponto do enredo. (-0,1 melodia).

No refrão central, é hora do enredo deixar a criação do mito e partir para a representação da onça na cultura nacional. Após o rugido da voz tupinambá do criador, a fera pode aparecer preta, parda, pintada, feita a mão, suçuarana, maracajá, jaguatirica, jaguar, jaguarana, onça grande, mãe e pai. Nesse pedaço, a obra deixa a narração de uma história com começo, meio e fim em segundo plano, para listar elementos. Os versos "É preta, parda, é pintada, feita a mão // Suçuarana no sertão que vem e vai // Maracajá, jaguatirica ou jaguar // É jaguarana // Onça Grande, mãe e pai" apresentam todas as facetas do bicho cultuado pelos povos originários. Os povos e seus rituais são rememorados na segunda estrofe com "Yawalapiti, Pankararu, Apinajé // O ritual Araweté, a flecha do Kamaiurá". Em resumo, após a criação do mundo, os indígenas, povos originários, cultuaram esse animal e suas facetas das mais variadas formas. Através do xamanismo, prática que mantém relação do sagrado com espíritos e divindades, existiram ritos que santificaram esse animal. Dentro da lógica do enredo, tudo certo. Mas tantos elementos citados sem um mínimo enlace que amarre tudo é desabonador demais para a poesia (-0,1 letra). Além disso, a melodia do início da segunda é apertada por tantas palavras de difícil canto coladas (-0,1 melodia).

Quando adentramos mais a fundo na segunda estrofe, chegamos ao momento onde o enredo traz a simbologia da onça na cultura popular brasileira e no significado de luta que ele proporciona. A onça é mito, é causo, é celebração. Virou história de cordel e de pescador. Ponto de caboclo e flecha. Encantaria. Se popularizou. Nesse ponto, a composição é extremamente feliz. "No tempo que pinta a pedra, pajelança encantada // Onça-loba coroada na memória popular // Kiô! Kiô, kiô, kiô, kiera // É cabocla, é mão-torta // Pé-de-boi que o chão recorta // Travestida de pantera". Os compositores traduziram a popularização da figura animal em vários elementos que parecem lista, mas guardam vários significados complementares. A pajelança (culto) encantada coroou e eternizou memórias e histórias populares da onça. No ponto de caboclo (Kiô! Kiô, kiô, kiô, kiera), no mito da onça mão torta, no folclore da onça pé de boi, nas onças travestidas de panteras. O destino de todos é sempre o encontro com a identidade de também ser onça. É bem feito!

Para fechar, um respiro com o segundo "Kiô! Kiô, kiô, kiô, kiera" que antecede a finalização fortificada do trecho "A folia em reverência // Onde a arte é resistência // Sou Caxias, bicho-fera!" que resume bem como a onça sempre foi elemento fundamental nos festejos de momo. Seja no Carnaval, seja nas toadas de Parintins, a onça também foi reverenciada na resistência artística das manifestações culturais do país. Belo encerramento. O problema é que o refrão principal surge rompendo melodicamente (-0,1 melodia) com as ideias anteriores. Em "Werá werá auê, nauru werá auê! // A “Aldeia Grande Rio” ganha a rua // No meu destino a eternidade // Traz no manto a liberdade... // Enquanto a onça não comer a Lua!", o desejo é de retomada do que foi apresentado. É uma convocação para que os guerreiros da aldeia Grande Rio ganhem a rua, afinal, o destino deles - e da onça, claro - é a eternidade através da liberdade. No contexto apresentado, é um pouco frustrante que essa construção seja o arremate da composição. Por reciclar conceitos já expostos anteriormente, a sensação é que o refrão é mais do mesmo (-0,1 letra).

Na análise completa da obra, é fácil dizer que a Grande Rio traz um samba que não resolve a falta de comunicação direta do tema com os ouvintes que não são especialistas no desfile das escolas de samba. É fácil também concluir que isso, certamente, dificulta a conquista de grande parte do público da Sapucaí que, muito provavelmente, terá problemas para cantar trechos como o refrão central e a segunda estrofe. Mas também é fundamental contrapor o fato que os últimos anos da Tricolor sempre mostraram que a densidade cultural que a escola impõe a seus enredos e sambas jamais tiraram o brilho de suas apresentações, tampouco colocaram barreiras em grandes resultados. Assim sendo, tenho a ciência dos pontos positivos e negativos que suas escolhas trouxeram para o próximo ano, dá pra dizer que a escola de Caxias se mantém no fortalecimento da identidade que a fez campeã e menos popular.

Nota: 9,4

Letra: 4,7
Melodia: 4,7

Salgueiro: O não retorno ao último desfile das campeãs fez o Acadêmicos do Salgueiro mudar em questões bem específicas. Se os quesitos enredo e samba-enredo impediram uma boa colocação e até a disputa pelo título, a vermelha-e-branca apostou em um novo enredista. Igor Ricardo, com passagens por Unidos da Tijuca, Viradouro e Tuiuti, desembarcou na Academia do Samba com a missão de resolver a dificuldade da escola na questão temática e, por tabela, ajudando na musical, já que enredo bom, significa grande possibilidade de ótima trilha-sonora. Nesse sentido, a escolha por um manifesto em defesa aos povos Yanomamis é uma grande aposta para um resultado diferente do que vem acontecendo. A ideia é trazer uma proposta que promete tocar na ferida da defesa dos povos orignários. Acender um alerta para a preservação da Amazônia e mostrar como a natureza exuberante do lugar está ligada diretamente aos seus primeiros habitantes do território. Ou seja, emocionar e impactar é a principal incumbência para o desfile salgueirense.

Com essa direção, os compositores da escola precisavam de uma composição que tivesse o grito indígena de defesa de sua existência, mas conseguisse, de alguma maneira, ser popular e compreensiva para todos na Sapucaí. Os autores Pedrinho da Flor, Marcelo Motta, Arlindinho Cruz, Renato Galante, Dudu Nobre, Leonardo Gallo, Ramon Via13 e Ralfe Ribeiro transcreveram o enredo de um modo muito particular. É como se a estética da obra fosse desenhada para que o choque aconteça, mas sempre de uma forma que todos - até aqueles mais distantes do universo narrado - estejam cientes das histórias que estão ali dentro do tema. Isso, de certo modo, trouxe inúmeros apoiadores que cravam uma composição antológica, mas também trazem dúvidas sobre o que, de fato, o narrador quer e deseja mencionar.

O início do samba já apresenta duas "estrofes" com uma abertura que é idêntica, mas oposta. Se o primeiro quadrante traz "É Hutukara", no segundo surge "Hutukara Ê". Esse modelo de vários conceitos repetidos dentro de um universo será bastante explorada pela obra, mas isso será detalhado lá na frente. Mas vamos esmiuçar o começo antes. Os versos "É HUTUKARA! O chão de Omama // O breu e a chama, Deus da Criação // Xamã no transe de Yakoana // Evoca Xapiri, a missão..." apresentam a narrativa num olhar Yanomami. É ele que conta e grita pela preservação e a defesa da sua verdade. Sendo assim, o significado aqui é: É Hutukara (floresta), o chão de Omama (Deus desse povo), no meio do breu, surge a chama. Os Xamãs, sob o efeito do pó alucinógeno feito das raspas de árvores que dá acesso aos espíritos, evocam Xapiri. A luz que dança e canta. A obra, aqui, apresenta seu narrador, seu universo e um pouco do que os rituais desse povo trazem como ancestralidade. É um bom ponto de partida.

A estrofe "seguinte" é justamente uma continuidade do que está sendo proposto, mas com uma diferença. Em "HUTUKARA, ê! Sonho e insônia // Grita a Amazônia, antes que desabe // Caço de tacape, danço o ritual // Tenho o sangue que semeia a nação original". O grito fica mais "nativo" com Hutukara "ê", a floresta desbrava, é sonho (a floresta que molda sua forma de conhecer e imaginar o mundo) e insônia (pelo desastre que a mata). Grita a Amazônia - o indígena - antes que as florestas desabem. Ele caça de tacape - arma utilizada pelos povos originários. Ela é geralmente alongada e feita de madeira resistente. Ela dança o ritual. Ele tem o sangue que semeou a nação "original" daquele lugar. Depois de apresentar quem era, o que aquele ambiente e seus rituais traziam, é hora de começar a gritar contra quem o ameaça. Por isso, a inversão do posicionamento do Hutukara e os primeiros sinais de uma insatisfação histórica. Creio que dentro da lógica de reforçar os laços entre o que está contado e a necessidade de ser popular, uma segunda menção de ritual, é natural. Mas, penso que a poesia, aqui, poderia ter sido melhor alinhada (-0,1 letra).

A compreensão de injustiça é reforçadíssima nos duas soluções dobradas que vem a seguir. De caraterísticas diferentes, as duas se complementam. Uma introdutória, trazendo o contexto. E a outra é mais incisiva, busca afirmar o que está acontecendo. Em "Eu aprendi português, a língua do opressor // Pra te provar que meu penar também é sua dor" e o bis de "Falar de amor enquanto a mata chora // É luta sem Flecha, da boca pra fora!" são pesados e com a força necessária para mostrar o peso desse momento histórico. O índio reclama que aprendeu português, a língua de quem o machuca e oprime, para provar que o que lhe traz penar (referência para o sofrimento e expressão que remete a pena do índio) é também uma ferida para quem o fere. E na sequência lembra que é hipocrisia falar de amor, enquanto a mata - floresta - sofre, é como se fosse uma luta - sem arma - apenas para dizer que algo está sendo feito. Essa passagem é interessante, mas traz um ponto que acaba sendo um porém para o todo. Em tempos onde um lado político - o atual governo do país - utiliza tanto a expressão é "hora do amor vencer" ou "amor e esperança para mudar o país" sendo, inclusive, uma referência para se contrapor ao antecessor conhecido pelas matanças nas florestas amazônicas, utilizar essa palavra como crítica, traz uma dúvida sobre qual reclamação está sendo feita aqui. Posto isso, os dois trechos com rimas em AABB também são travas para a melodia, servindo mais como "grito" e menos como "samba" (-0,1 melodia).

O trecho seguinte mantém a estrutura anterior. Também com duas soluções em dobras, apresenta um pedaço introdutório e o bis. Assim aparece "Tirania na bateia, militando por quinhão, // E teu povo na plateia, vendo a própria extinção" que abre espaço para o refrão "Yoasi" que se julga: "família de bem" // Ouça agora a verdade que não lhe convém". Aqui, mais questões delicadas são exploradas. O poder ilegal machuca a floresta garimpando as pedras precisosas e exige a demarcação de uma terra que não é dele, apenas para mostrar sua força. Força que busca exterminar os originários. Mas a força Yoasi - responsável pela origem da morte e dos males do mundo - se materializa naqueles que se julgam "família de bem" que agora irá ouvir uma verdade incomoda. A opção estética de rimas AABB segue aqui, assim como a dificuldade de entender quem está sendo criticado por inteiro pela composição. Afinal, a expressão citada "família de bem" faz uma referência pejorativa aqueles que sempre se vendem como honestos, íntegros e leais, mas são preconceituosos, conservadores e favoráveis ao extermínio indígena. Se o pedaço anterior pode ser visto como uma crítica a um lado, o seguinte inverte o viés da crítica e tenta mirar "sua flecha" para outros antagonistas dos originários.

E é nesse trecho que o samba domina o momento temporal e atinge sua "aclamação" dentro do que estabelece como verdade. Na apresentação - duplicada, evidentemente - de um conceito que mostra o esquecimento do Povo Yanomami pelos "homens brancos da força Yoasi", a obra traz "Você diz lembrar do povo Yanomami em dezenove de abril // Mas nem sabe o meu nome e sorriu da minha fome // Quando o medo me partiu" e "Você quer me ouvir cantar em Yanomami // Pra postar no seu perfil entre aspas e negrito, // O meu choro, o meu grito, nem a pau Brasil!" que, mais uma vez, reforça a concepção poética de dobras, mas também mostra a dificuldade de saber quem é, de fato, o vilão (ou vilões) da história narrada. Se a primeira ideia faz menção ao desastrado posicionamento do ex-presidente Jair Bolsonaro que errou o nome do povo e fez pouco caso de suas lutas, a segunda parte debocha de quem utiliza os vídeos e imagens dessa população apenas para "ganhar likes", não se preocupando efetivamente com as lutas e o choro que surge dos habitantes da região. É uma queixa tão objetiva que traz a sensação de que os inimigos são muitos e cabem nos mais diversos espectros políticos, mas, isso, traz uma sensação de que os compositores buscaram, em todo o tempo, evitar colocar uma marca de qual lado a obra está. Mas entrando no aspecto técnico da letra, o último verso "o meu choro, o meu grito, nem a pau Brasil" com referência a árvore nativa do país e explorada economicamente pelos portugueses é muito mal elaborado e acaba prejudicando a poesia (-0,1 letra).

Chegando na reta final, a obra mantém o ponto de "dobras" com "Antes da sua bandeira, meu vermelho deu o tom // Somos parte de quem parte, feito Bruno e Dom" e "Kopenawas pela terra, nessa guerra sem um cesso, // não queremos sua “ordem”, nem o seu “progresso”!". Aqui, a ideia é mencionar algumas questões que serão referências de imagem para o desfile. Antes da bandeira nacional, o vermelho indígena deu o tom, isso é parte de quem abraça essa causa feito Bruno e Dom. Aqui, parêntese: O indigenista brasileiro Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips foram assassinados durante uma viagem pelo Vale do Javari, segunda maior terra indígena do Brasil, no extremo-oeste do Amazonas. Fecha parêntese. Kopenawas, referência a Davi Kopenawa, líder e xamã do povo Yanomami, lutam pela terra numa guerra sem fim. Eles não querem a ordem e o progresso dos homens brancos. Aqui uma alusão que fecha o quadrante de forma inteligente. Se esse trecho é aberto com "antes da sua bandeira", ser fechado com o desprezo ao lema estilizado na imagem é muito bem-feito.

Por fim, o encerramento é um grito de luta e embate final. O "Napê, nossa luta é sobreviver! // Napê, não vamos nos render!" seguido da abertura do refrão principal com "Ya Temi Xoa! Aê, êa! // Ya Temi Xoa! Aê, êa!" é funcional demais. Nesses versos, é lembrado ao homem branco que o Yanomami luta pra sobreviver, que ele não vai se render e que ele ainda está vivo (Ya Temi Xoa!). É fortíssimo e bem amarrado. Complementando a ideia, surge "Meu Salgueiro é a flecha // Pelo povo da floresta // Pois a chance que nos resta // É um Brasil cocar!" que une o narrador ao salgueirenses e a Academia do Samba. A escola da Silva Teles é a arma do povo da floresta na luta por um Brasil original, um Brasil cocar, um Brasil que sonha verdadeiramente com a terra que o gerou. Dentro da lógica da composição, tudo perfeito. O samba consegue, de fato, narrar de modo coerente e explícito tudo que a temática apresenta. Mesmo sem aprofundar os pontos da sinopse, a elaboração de letra enviesada para o espaço-tempo atual é necessária e faz com que a conexão entre as pessoas e a música seja automática. O ponto é que muitos momentos dessa trilha-sonora são mais gritados que sambados e acaba fazendo com que a sensação seja que de que o samba de enredo seja mais funcional como mensagem do que como cântico para uma escola com quase três mil componentes. A ver se esse sentimento se confirma na avenida.

Nota: 9,7

Letra: 4,8
Melodia: 4,9

Tuiuti: A oitava colocação alcançada no último desfile deixou o Paraíso do Tuiuti numa situação inusitada. A apresentação de excelente nível deixou a agremiação como alvo predileto das grandes escolas. O carnavalesco João Vitor Araújo rumou a Beija-Flor. Os coreógrafos Lucas Maciel e Karina Dias foram pra Mangueira. Já o cantor Wander Pires migrou pra Viradouro. Sem os principais segmentos, a escola de São Cristóvão resolveu buscar nomes já conhecidos para tentar manter a melhora que aconteceu no último ano. Além de Cláudia Mota, coreógrafa da comissão de frente e Pixulé, conhecido em agremiações do Grupo de Acesso, para intérprete, a maior contratação da temporada foi para a parte plástica. O retorno de Jack Vasconcelos - artista consagrado no histórico vice-campeonato de 2018, quando contou a saga de um país que ainda não está completamente livre da escravidão, mesmo já estando no século XXI - é quem mais atraiu atenções na azul-e-ouro.

Dono de um traço peculiar e com um perfil identitário na construção das histórias, Jack, mais uma vez, quer construir uma proposta que cause impacto e discussão. A ideia, além de criar conexão com algo que fez muito bem ao Tuiuti - negritude, retrato histórico e etc -, é botar o dedo na ferida e discutir o racismo velado que ainda se mantém vivo no Brasil. Assim sendo, a trajetória desse herói brasileiro que se empenhou na luta contra os maus-tratos, a má alimentação e as chibatas sofridas pelos colegas na Marinha do século passado, rendeu uma das maiores revoltas acontecidas nas Forças Armadas. Apesar disso, o samba de Claudio Russo, Moacyr Luz, Gustavo Clarão, Júlio Alves, Alessandro Falcão, Pier Ubertini e W Correia tentou fugir do que seria natural. Ao invés de enredar de modo que a obra se tornasse mais aguerrido, a tentativa foi de dar uma cara mais "sutil" para a temática, o que acabou tirando muito do peso que os acontecimentos. Fazendo com que a letra e a melodia não tivessem o impacto que poderia alcançar.

O início do samba é "Nas águas da Guanabara // Ainda o azul de Araras // Nascia um herói libertador // O mar com as ondas de prata // Escondia no escuro a chibata // Desde o tempo do cruel contratador" que traduz o começo da história. Ainda no começo do século XX, nas águas do Rio de Janeiro, azuis como já foram, nascia na Marinha, um herói. João Cândido. O mar com ondas de prata, escondia na noite, a chibata cruel. A letra é lindíssima e consegue dar uma poesia diferenciada ao começo da obra. A sequência da estrofe parte com "Eram navios de guerra, sem paz // As costas marcadas por tantas marés // O vento soprou à negrura // Castigo e tortura no porão e no convés" que remonta ao momento onde as injustiças se acumulavam e o nascimento da liderança de João. Nos dois primeiros versos, os compositores trazem que nos navios da Marinha, havia guerra sem paz. Já que as costas dos marinheiros seguiam marcadas por uma hierarquia que insistia em ter como fetiche, a imposição através da força. Já os seguintes, apresentam que João Cândido (negrura), por sua habilidade e carisma, conseguiu chegar ao posto de marinheiro de primeira linha. Com esse privilégio, conheceu outras culturas e realidades, vendo que a revolta trazia conquistas. E ela seria necessária para o fim dos castigos e torturas que continuavam acontecendo nos porões e convés. Em letra, a obra é muito bem-feita. Além das palavras bem colocadas, tudo ganha um significado completo e didático. A questão é que a melodia é dolente e sem grandes variações, tornando cada verso muito arrastado e sem o potencial de explosão que merece (-0,1 melodia).

A sequência trazer um pré-refrão colada ao refrão central. Os versos "Ôôô A Casa Grande não sustenta temporais // Ôôô Veio dos Pampas pra salvar Minas Gerais" continuam a ideia apresentada. Se o vento soprou à negrura para incentivar a revolta. A Casa Grande não iria segurar um temporal. Com um lenço vermelho, tal qual um verdadeiro representante do Rio Grande do Sul, comandando o navio Minas Gerais, João bradou guerra contra as injustiças e o fim das torturas com os irmãos de cor e ofício. Nesse sentido, surgem os versos "Lerê lerê mais um preto lutando pelo irmão // Lerê lerê e dizer nunca mais escravidão". Pelo poder de síntese para arrebatar tantas passagens, as frases são dinâmicas, mas musicalmente... é uma questão. O tom menor dos desenhos tão repetidos em "ôôô e lerê lerê" e rimas coladas em temporais/gerais e irmão/escravidão acabam tirando força e arrastando ainda mais a parte melódica da obra (-0,1 melodia).

Após o bis, surge mais uma estrofe que tem um formato quase de refrão por conta da similaridade em fraseamentos e abertura. Com os versos "Meu nego... A esquadra foi rendida // E toda gente comovida // Veio ao porto em saudação // Ah! nego... A anistia fez o flerte // Mas o Palácio do Catete // Preferiu a traição", a composição arrisca um formato difícil de ser visto. São dois fraseamentos com rimas seguidas e um com espaçamento quase de refrão. Na história, essa passagem marca como João Cândido, enfim, parecia ter conseguido o objetivo. Depois de muitas batalhas, o governo recuou e propôs mudanças. O povo que admirava a luta aplaudiu nos portos, principalmente na Baía de Deodoro, a vitória. O que não se esperava é que tudo era um jogo de cena. Os comandantes no Catete traíram o acordo e mandou uma parte dos revoltosos para dois caminhos: Fim da vida ou escravidão. Em termos de letra, esse é o momento mais ousado, mas a repetição de "nego" duas vezes poderia ter sido evitada (-0,1 letra). Assim como a repetição melódica que força uma sensação de refrão dentro de uma estrofe, trazendo cansaço, principalmente por ter vindo após duas soluções parecidas anteriormente (-0,1 melodia).

Na penúltima estrofe, a obra mergulha no pós-revolta. Em "O luto dos tumbeiros // A dor de antigas naus // Um novo cativeiro // Mais uma pá de cal", o time de autores traz a cena de João e seus companheiros presos numa cela insalubre. Em luto pelos que partiram, o herói via a morte chegar ao seu lado no cal jogada no cárcere, mas ele resistiu. Abalado com a saúde e ainda sofrendo alucinações, sofreu, mas sobreviveu ao terror da prisão. Mesmo absolvido, foi perseguido, mas passou a ganhar a vida como pescador na baía da Guanabara ali perto das pedras de cais da Praça XV. Isso é trasncrito pelos versos "Glória aos humildes pescadores // Yemanjá com suas flores // E o Cais da luta ancestral" que resume esse momento. Em termos de letra, as rimas voltam a criar uma solução diferenciada com rimas entrelaçadas com "tumbeiros/cativeiros" no formato ABAB, "pescadores/flores" em AABB e "naus/cal/ancestral" em trinca. A subida de tom no verso "Glória" tem trazer uma mudança de tom, mas não tem sucesso de trazer respiro a mais um momento onde a musicalidade não explode (-0,1 melodia). O final com "Salve o Almirante Negro // Que faz de um samba enredo // Imortal!" unido ao refrão com "Liberdade no coração // O dragão de João e Aldir // A Cidade em louvação // Desce o Morro do Tuiuti" apresentam momentos distintos.

Se o primeiro é o único fragmento com maior explosão pela dinâmica do versado melódico, o segundo é o pior trecho da obra com versos vazios e mal construídos na parte musical. Na história, o Tuiuti relembra a imortalidade dessa figura. Afinal, João Cândido já apareceu em músicas, livros, poesias e escolas de samba. A história desse herói silenciado apareceu nos enredos de agremiações como o Camisa Verde e Branco de 2003 e Renascer de Jacarepaguá em 2017. Funciona bastante. Já o refrão... Nele a proposta é lembrar que a liberdade sempre moveu a luta que trazia no coração e que o grande Dragão do Mar é João e é Aldir (Blanc), autor da histórica música "Mestre-sala dos mares" que também narrou a saga contada pela escola de São Cristóvão. Por fim, a cidade, berço das batalhas que mitificaram o personagem, agora o louva e desce para a avenida junto da comunidade do Tuiuti. Além de mal formulado, as frases são falhas e acabam não conseguindo dar peso e criatividade contrastando com o restante da obra. É como se o refrão não conversasse com o que foi apresentado anteriormente. (-0,1 letra) e (-0,1 melodia).

No conjunto, a composição da escola do Morro do Tuiuti acaba cumprindo um papel interessante. Se as ousadias e riscos não funcionaram como o imaginado, o cuidado da letra - exceto o refrão - serve como inspiração, principalmente por narrar uma saga tão decantada quanto essa. É nítido que os compositores buscaram, em quase todo o tempo, se diferenciar dos caminhos já feitos anteriormente. Isso é louvável. O ponto é que nem sempre o diferente agrada, ainda mais quando esse caminho - como uma melodia mais sutil - acaba por tirar o imaginário já tão bem construído antes. No fim, a sensação é que a vestimenta de João Cândido dessa vez ganhou bandeira branca de paz e não o sangue vermelho que sempre o marcou.

Nota: 9,3

Letra: 4,8
Melodia: 4,5

Unidos da Tijuca: Os anos de glória da Unidos da Tijuca ficaram pra trás. A escola que se acostumou com os holofotes da briga pelo título não está mais em alta nos resultados e, principalmente, na grife perante o júri. Para modificar essa realidade, trocas em quase todas as áreas estratégicas. Lucinha Nobre, consagrada porta-bandeira, retorna a agremiação após mais de quinze anos. Ito Melodia, de grandes anos na União da Ilha e com passagem no Império Serrano, assumiu o microfone oficial. Por fim, Alexandre Louzada, carnavalesco campeoníssimo por Beija-Flor, Mocidade e Vila Isabel, tem a missão de reconduzir o Pavão do Borel aos grandes dias. Ou seja, a azul-e-ouro apostou em nomes experientes e com imagem consolidada em público e crítica para voltar a ter boas notas. Mais do que uma escolha, as contratações também desejam fazer com que os jurados, que passaram a bater fortemente nas avaliações, tivessem uma impressão maior de "nome pesado" nos quesitos.

Nesse sentido, o enredo também tenta trazer uma estética mais "rica" e "nobre", passando imagem de "luxo" para impactar. A ideia aqui é uma viagem a uma Portugal mítica e mística repleta de fábulas. Fazendo com que a história seja contada em clima de encantamento. Nesse cenário, serão relembrados fatos, mistérios e lendas populares que pairam sobre a formação dessa nação no ano em que o país europeu completa o cinquentenário do fim de sua ditadura. O único ponto que complica todo esse objetivo é o samba da agremiação. De autoria de Julio Alves, Claudio Russo, Jorge Arthur, Silas Augusto, Chico Alves e D'Sousa, a composição tenta trazer um jeito mais "pesado" de enredar a temática, mas acaba fugindo justamente do clima mais "dolente" e "formal" que o país europeu transmite. É como se a "vibe" da obra fosse incompatível com o que está sendo contado.
 
O início do samba é "Um samba fadado // Ao mar do outro lado // A pescar histórias, memória ancestral // Viaja na bruma da branca espuma // Pra encantar no Carnaval" que tenta resumir bem a abertura do enredo. É como se a Unidos da Tijuca com seu samba tivesse no destino ter que contar as história portugueses. Ou seja, um samba destinado a ir ao outro lado do mundo recontar histórias portuguesas no carnaval. Feita a introdução, hora do enredo, de fato, começar. Nos versos "Vai buscar... // No verde oceano, o heróico Odisseu // Que além do Egeu não se amedrontou // Com uma rainha tão só e carente // Mulher ou serpente que jurou o seu amor // A beira do Tejo nascia Lisboa". O primeiro "conto" do tema, diz que no verde oceano que cerca as terras portuguesas, o heróico Odisseu desviou do mar Egeu e encontrou uma rainha serpente que estava fadada a ser sozinha, mas que se deixou seduzir ao amor pelo guerreiro que ali chegara. Desse encontro e por desejo dele, surgiria à beira de um Tejo, a cidade de Lisboa. Aqui, o enredo basicamente traz a lenda portuguesa de Olisipo e Ulisses. É uma abertura fantasiosa que os compositores pouco mexeram no descrito pela sinopse, fazendo com que a poesia não fosse o ponto forte (-0,1 letra).

No fim da estrofe, surge mais uma lenda. A de Ofir. Diz ela que que o rei Salomão ao construir o Templo do Senhor em Jerusalém, utilizou cargas preciosas oriundas do que hoje é Fão, e num esforço para agradecer a este povo por tais preciosidades, ofereceu-lhes corcéis. Infelizmente, uma medonha tempestade arrebatou a embarcação onde estes se encontravam e esta afundou-se, porém os deuses intervieram e transformaram os corcéis em rochedos. Esse trecho é resumido em "A musa das loas dos seus menestreis // Na praia bravia o ouro escorria // E o guardião emergia das marés". Esse pedaço é muito denso e acaba ganhando um resumo interessante dos compositores que consegue traduzir tudo da lenda em dois versos, mas o verso "a musa das loas dos seus menestreis" que tenta fazer referência aos acordes da lira do delírio fica solto, sem se conectar firmemente nem com o que vem antes e nem com o que vem depois. (-0,1 letra).

No refrão central, é hora do samba partir para mais uma recordação. Portugal sempre fora conhecido como "a casa do bom vinho" e é isso que esse trecho traz como mensagem com os divertidos "Põe no balaio um punhado de magia // Das divindades que invadiam o lugar // Põe no balaio e amassa com carinho // Que do cacho eu faço vinho // Pra colheita festejar". Da terra pisada pelos celtiberos na idade do bronze, surgiu a magia que deixou o vinho como fruto a ser colhido. Apesar da boa síntese, é difícil não se cansar com várias repetições de "põe no balaio" e das rimas "lugar/festejar" e "carinho/vinho" que travam a melodia e tiram poesia (-0,1 melodia) (-0,1 letra). O início da segunda estrofe mergulha nas mudanças que o país passou. Mesmo resistindo a tantas invasões e criando heróis como Viriato, uma nova se instaurou e durou mil anos. Dela, surgiram novos costumes, crenças, língua, hábitos e arquitetura. Todo esse pedaço é resumido em "N'alma do fado mil e uma noites // Doces sabores, velho saber" que além de não conseguir dar qualquer profundidade para esse trecho, também não funciona melodicamente pelo tom mais baixo que traz contrastando com o que vinha sendo montado no refrão central (-0,1 melodia).

A seguir, surge a veia de "descobertas portuguesas". Regiões africanas que foram colonizados por portugueses são lembradas com a herança de Ifá, Dendê e samba, mas também com o demônio da escravidão que os europeus deixaram nessas terras e... no Brasil. A composição resume isso em "Amar o fado ir a Matamba // Herdar o samba, ifá, dendê // Portugal das glórias que revelam o passado // Ao monstro que sangrou escravizados // E veio aportar no mar". Segundo o enredo, navegar é preciso. Durante o período de expedições marítimas, Portugal desbravou muitas terras. Conheceu o Reino de Matamba, herdou o samba, viu a filosofia de Ifá e descobriu o dendê de Guiné. Mas mesmo com as glórias do passado, não dá pra esquecer que o reino português escravizou suas colônias. Em termos melódicos, é complicado entender como um enredo dolente e místico, ganhou desenhos tão pesados e "festivos" na parte musical. É como se esse pedaço não conversasse com a premissa inicial proposta (-0,1 melodia).

Finalizando a estrofe, surge a parte "tupiniquim" de Portugal. O samba desembarca no Brasil e na relação do país com os portugueses e sua fé. Os versos "que brilha sob o céu de Vera Cruz // Um banho de alfazema que conduz // O santo Rosário e o povo de fé // Pra cantar o fado tijucano // Macumbado de amém e axé" tentam unir as duas nações numa única religiosidade. O céu de "Vera Cruz" - primeiro nome das terras brasileiras - é conduzido por um banho de Alfazema e pelo Santo Rosário. Abençoando o povo de fé que canta o fado macumbado do Axé e do catolicismo do Amém. Aqui, a composição tenta uma união complexa, pra dizer o mínimo. Além das junções complicadas entre catolicismo e macumba, as rimas são complicadas com "cruz/conduz" e "fé/axé" que não conseguem, de modo algum, dar explosão para o refrão principal (-0,1 melodia). Além disso, a palavra fado que se repete em três ocasiões também demonstra a pobreza poética. Por mais que ela sirva como uma conexão e faça parte do espírito do tema, vê-la em vários versos acabam cansando o ouvinte (-0,1 letra).

No refrão principal, o samba mantém essa conexão, mas sem muita lógica. Se tudo que foi exposto, com defeitos e virtudes, ainda mantém uma coerência com o texto que servia de base, os versos finais acabam perdendo esse fio como base. A tentativa de "brasileirar" Portugal é vazia e acaba sem funcionar em "Gira baiana, perfumada de alecrim // Que a Unidos da Tijuca defuma no benjoin // Roda na gira a saia de linho rendado // Que o fado vira samba e o samba vira fado". A baiana, símbolo da escola de samba, gira perfumada de alecrim, erva típica da região do mediterrâneo português. A Unidos da Tijuca, desse modo, defuma no benjoin, especiaria portuguesa. Desse modo, a roda é na gira da saia de linho rendado. Fazendo que o samba virasse fado e o fado se tornasse samba. Todos os quatro versos trazem o enlace entre Brasil e Portugal em modo sutil. A questão é que isso ficou distante do que é proposto. O quadrante acaba sem sentido efetivo na narrativa (-0,1 letra) e no impacto para o funcionamento da música como canto e dança dos componentes (-0,1 melodia). Em linhas gerais, a infrutífera tentativa dos compositores em trazer "ancestralidade" ao samba não traz grandes resultados práticos. Acaba sendo uma solução "forçada" para sair do lugar-comum do imaginário desse tipo de história. Por conta disso, é seguro dizer que o fado tijucano, certamente, não será o "vira" da escola para a luta pelo título.

Nota: 9,0

Letra: 4,5
Melodia: 4,5



Portela: Os últimos desfiles da Portela acabaram deixando a sensação de que a escola não sabe exatamente qual perfil quer ter para os próximos anos. Enredos, sambas, visuais... tudo trouxe a imagem de uma Águia sem rumo, perdida entre o passado dos nomes consagrados que seguiam em postos estratégicos como carnavalesco e coreógrafo de comissão de frente e a ânsia da torcida - inconformada pela falta de resultado - por uma renovação que teimava em ser adiada pela direção. O desfile do ano que vem, no entanto, marca uma reformulação. A chegada dos jovens carnavalescos Antônio Gonzaga e André Rodrigues deu novo gás para a azul-e-branca. Além do natural sentimento de novidade, os artistas proporcionaram um clima mais leve e otimista em Madureira.

Nesse sentido, o enredo é mais uma clara iniciativa no caminho de novos rumos em busca de grandes resultados. A história que surge do livro Um Defeito de Cor apresenta a saga de Kehinde. A trajetória da protagonista da temática remete à história de Luiza Mahin, peça fundamental da Revolta dos Malês, e seu filho, Luiz Gama, advogado abolicionista. É um tema singelo que busca o ressignificado do afeto e das relações, mas sob um viés de negritude, recortando a luta e sobrevivência do povo preto ao longo dos tempos. Posto isso, a obra de Rafael Gigante, Vinicius Ferreira, Wanderley Monteiro, Bira, Jefferson Oliveira, Hélio Porto & André do Posto 7 consegue sintetizar essa narrativa com sutileza - algo difícil pela força que o tema carrega - e garra - algo necessário por conta do contexto. Trazendo um formato mais que adequado para enredar os acontecimentos.

O início é uma espécie de introdução que abre bem a composição. "O samba genuinamente preto // Fina flor, jardim do gueto // Que exala o nosso afeto" são belíssimos. O samba, preto na sua identidade, é a nata da atividade cultural nos subúrbios, capaz de exalar o afeto entre uma matriarca negra e sua cria. É um excelente ponto de partida! A seguir, surge "Me embala, oh! Mãe, no colo da saudade // Pra fazer da identidade nosso livro aberto" para escancarar o narrador. Omoduntê, Luiz Gama, começa a contar sua história como resposta a premissa original do livro que serve de base no enredo. Se na obra de Ana Maria Gonçalves, Luiza escreve pro seu filho. Aqui é o contrário. Ótimo diferencial! Nos versos seguintes, surge "Omoduntê, vim do ventre do amor /// Omoduntê, pois assim me batizou // Alma de jeje e a justiça de Xangô // O teu exemplo me faz vencedor". Luiz se apresenta dizendo que vem do ventre do amor e seu nome é obra da Kehinde, mas logo parte no sentido de exaltar seu fundamento dizendo que ela tem a alma das guerreiras voduns e justiça como lei, sendo seu exemplo para vitória. É fantástico. Repare: A escola de samba, único lugar possível, abre seu lugar de fala para a relação de afeto entre mãe e filho. E o filho passa a contar sua trajetória através dos ensinamentos de sua genitora.

No fim da estrofe, surge "Sagrado feminino ensinamento // Feito Águia corta o tempo // Te encontro ao ver o mar // Inspiração a flor da pele preta // Tua voz, tinta e caneta // No azul que reina Yemanjá". Nese pedaço, Luiz segue dizendo do ensinamento feminino que sempre teve em Luiza, das lembranças da Águia, símbolo da Portela e espírito favorito da antecessora de sua mãe, que cortava o tempo no encontro com o mar, onde ele sentia o espírito dela pela dor que aquelas águas - onde reina Yemanjá - carregavam. Afinal, para Luiz, o mar deveria ser preto não apenas pela quantidade de corpos de seus semelhantes ele carregava, mas, principalmente, pela solidão - diminuída pela presença de sua mãe - que aquilo o trazia. Até aqui, a composição é impressionante. Além da qualidade de narrar fatos sempre de forma poética e com várias referências, tudo é feito de modo que fique amarrado, como uma verdadeira resposta contextualizada. Mesmo pra quem não leu a versão original do livro, os versos fazem sentido e tem total clareza. Algo difícil e impressionante.

No refrão central, Luiz parte pra exaltar as conquistas históricas de Luiza. O trecho "Salve a lua de Benin // Viva o povo de Benguela // Essa luz que brilha em mim // E habita a Portela // Tal a história de Mahin // Liberdade se rebela // Nasci quilombo e cresci favela!" tem muitos significados, mantendo o padrão de sempre ter poesia dentro de muitos conceitos. Nesse pedaço, o narrador exalta a lua para lembrar o local de origem de sua mãe (Benin, antigo reino de Daomé) e o povo de Benguela, quilombo liderado por Tereza de Benguela e inspirador para outras revoltas como a dos Malês - comandada pela nossa heroína. Na sequência, rememora que a partir dessas revoluções e, principalmente, da mudança provocada pela liderança de sua mãe, o país foi apresentado a fortaleza e a liberdade de tantas mulheres como ela. Finalizando com a ideia de que o nosso universo ainda é cercado pelo que anteriormente era chamada de quilombo e, hoje, é visto como favela. Na prática, o parecer dos autores é mostrar que a trajetória de Kehinde já tinha sido vista no passado com Tereza de Benguela e pode ser visto nas mães pretas das favelas do século XXI.

Depois de introduzir o contexto da escola de samba, narrar seu legado amoroso e de luta, hora de chegar a espiritualidade. A segunda estrofe parte para exaltar o contexto religioso e a ligação de sangue entre Luiz e sua mãe. O início é brilhante com "Orayeye Oxum, Kalunga! // É mão que acolhe outra mão, macumba!". Aqui, Luiz expressa que a fé de sua mãe sempre a guiou para o reencontro dos dois. Luiza, com sua macumba, com sua fé em Oxum, a orixá do amor - algo que sempre a moveu - contou com a sabedoria para unir sua mão a de seu filho. É lindo! A sequência traz "Teu rosto vestindo o adê // No meu alguidar tem dendê // O sangue que corre na veia é malê!" que resume a imagem que essa religiosidade e ancestralidade traz. Luiz lembra rosto de Mahin vestindo a coroa de Adê, a vasilha que ritualizava com o dendê baiano, mas lembra o sangue que corre em suas veias é malê, guerreiro que sempre busca liberdade e identidade. Incrível e maravilhoso!

Para fechar, chega a hora do diálogo. Após evocar tudo que Luiza trouxe para ti, Luiz conclama sua presença dizendo que "Em cada prece, em cada sonho, nêga // Eu te sinto, nêga, seja onde for". É um retrato brilhante. Se o narrador passou a composição por inteira dizendo que ela esteve com ele em todos os momentos, no amor e na luta, na espiritualidade e no sangue, ele também pede que ela apareça em sua carta. E é atendido com "Em cada canto, em cada sonho, nêgo // Eu te cuido, nêgo cá de onde estou" vindo dela. É uma breve congregação entre duas pessoas que umbilicalmente estão ligadas dentro de um mesmo espírito. É como se na visão dos compositores, fosse impossível retratar a saga de Mahin na visão de Luiz sem unificá-los dentro de um único corpo. Brilhante! No refrão principal, o conceito é quase de grito de liberdade. Luiz, enfim, está pronto para gritar para o mundo que venceu e que seu povo é livre.

Nos versos "Saravá Kehinde! Teu nome vive! // Teu povo é livre! Teu filho venceu, mulher! // Em cada um de nós, derrame seu axé!", a composição grita a alegria de Luiz. O significado de "Salve Kehinde (Luiza)" seguido com "teu nome vive" é bastante pertinente por trazer luz ao fato de que a narrativa perpetuando e respeitando o nome "original" da heroína também é um sinal de respeito e vitória. Depois, o protagonista exalta a liberdade do povo preto e a sua vitória e termina pedindo que todos os filhos pretos sejam abençoados por sua mãezinha. É bonito demais e fecha com chave de ouro, uma composição que mesmo sem ser explosiva ou inovadora cumpre um papel raríssimo. Entrega sutileza e sensibilidade em meio a uma história de garra e luta sem pender para ser amoroso ou incisivo de maneira exagerada. Por esses motivos e pelo conjunto da obra, é fácil cravar que a Portela não somente tem um delicado e sensível samba de enredo, mas também traz uma composição que tem tudo para ser um dos melhores do próximo ano.

Nota: 10,0

Letra: 5,0
Melodia: 5,0

Mocidade: A maior mudança de perspectiva no Grupo Especial do Rio de Janeiro é a da Mocidade Independente de Padre Miguel. Durante um período de cinco anos, a sorte e os grandes dias pareciam ter voltado a Zona Oeste. Título, grandes sambas, badalação... tudo fazia com que as atenções estivessem voltadas para a Estrela Guia. Com a pandemia, o péssimo desfile sobre o padroeiro Oxóssi e os problemas administrativos, a antiga realidade de briga contra o rebaixamento retornou com tudo. O décimo primeiro lugar no ano passado e a obrigatoriedade de abrir os desfiles da segunda-feira jogaram a expectativa lá pra baixo. Além disso, as discussões internas seguiam atrapalhando. O anúncio do enredo foi adiado em duas ocasiões e só saiu após decisão judicial já no fim do mês de Junho. Ou seja, parecia que seria mais um ano em que a verde-e-branco não seria feliz.

Mas no Carnaval, tudo muda muito rápido. Não que a escola agora seja favorita, mas o sorriso, sim, volta a Vila Vintém. O enredo "Pede Caju que dou, Pé de Caju que dá" é a cara da escola. Repleto de brasilidade e tons abstratos, a ideia é mostrar uma temática recheada de leveza sobre o Caju, a fruta do cajueiro, com suas histórias, lendas e curiosidades. A proposta é transformar cada pedaço desse tema em algo divertido e repleto de duplo sentido, algo que sempre foi uma característica da agremiação. O samba de autoria de Diego Nicolau, Paulinho Mocidade, Marcelo Adnet, Richard Valença, Orlando Ambrósio, Gigi da Estiva, Lico Monteiro e Cabeça do Ajax foi um dos maiores achados do período de concursos. Brincalhão, safado e com um viés quase caricato, a obra se encaixou perfeitamente no espírito do tema e conseguiu conquistar até os corações mais sisudos do meio carnavalesco. Mesmo passando longe da perfeição, o caminho despojado da composição acabou trazendo simpatia e esperança para o desfile da Sapucaí.

Ao contrário de quase todos os enredos do ano, a proposta da Mocidade não tem uma lógica bem definida. A ideia da agremiação é apresentar o Caju em diversas vertentes. Na antropofagia da tropicália, na relação dos povos indígenas com a bebida, da nobreza que assanhou com o fruto, dos cajueiros do Piranji plantado pelo pescador Luiz Inácio. Tudo que a história da fruta poderia trazer, é retratado. O ponto é que os caminhos achados pelos compositores também ganharam variadas interpretações, tornando ainda mais complexa a missão de decifrar a composição. Os versos "Eu quero um lote // Saboroso e carnudo // Desses que tem conteúdo // O pecado é devorar // É que esse mote beira antropofagia // Desce a glote, poesia // Pede caju que dá". O caju, fruta nativa, farta e com sabor e corpo caprichados, é o símbolo da revolução tropicalista. Ou seja, o samba ganha um duplo sentido. O lote é o Caju, saboroso e carnudo, mas seu conteúdo é a arte e a transgressão da daqueles que construíram o movimento. Já o mote que beira a antropofagia pode ser o humor pervertido que essa própria composição traz, mas também foi referência do estilo de Oswald de Andrade. Em resumo, nesses versos, a proposta passa a mensagem de como o fruto do cajueiro é ligado aos revolucionários da arte tropical.

A estrofe continua com "Delícia nativa // Onde eu possa pôr os dentes // Que não fique pra semente // Nem um tasco de mordida // E aí tupi no interior do cafundó // Um quiprocó virou guerra assumida" que mantém a ideia da relação da fruta com o movimento. Se a delícia é nossa - Brasil -, os tropicalistas morderam firme e não deram espaço. Os últimos versos já mudam o foco e partem para as guerras do Caju. Nelas, conta a história que indígenas, portugueses, franceses e holandeses brigaram pelo fruto. Guerra assumida. Todos queriam Caju. Em termos de narrativa, penso que a mudança abrupta na história acaba trazendo um pouco de dificuldade para o entendimento. Tudo bem que a história não tem um relação de começo, meio e fim, mas aqui, o elo ficou comprometido demais (-0,1 letra). O refrão central detalha a relação dos povos indígenas e dos estrangeiros com o fruto. Tamandaré, avô de Porã e sábio, guardou castanhas e fez a felicidade da tribo mesmo após a expulsão de seu local de origem. Isso é resumido em "Provou porã...provou // Fruta do pé // Se lambuzou... // Tamandaré". Já os invasores ganham um trocadilho com a cor de seus olhos em "O mel escorre, olho claro se assanha // Se a polpa é desse jeito, imagine a castanha" que demonstra como a cobiça deles levou o Caju para outras terras. Na melodia, a obra aqui tem algumas questões. Os espaçamentos para respiro em provou e lambuzou acabam perdendo efeito com as repetições (-0,1 melodia).

A segunda estrofe viaja com o Caju por outras bandas. Se ele fez sucesso com os estrangeiros, também virou alvo da nobreza. Dom João, Dom Pedro... todo mundo se lambuzou. Mas quem fez história foi o cajueiro que ganhou a alcunha de "Maior do Mundo", obra do pescador Luiz Inácio. O samba sintetiza tudo em "Por outras praias a nobreza aprovou // Se espalhou... tão fácil, fácil! // E nesta terra onde tamanho é documento // Vou erguer um monumento para Seu Luiz Inácio". A melodia, aqui, tem um pequeno escorregão em "se espalhou... tão fácil, fácil" que segue sem ganhar ares de respiro, até pelo fraseamento seguinte onde a rima que complementa documento está no meio do verso seguinte, o que traz Inácio como fechamento para fácil. É um desenho melódico de difícil assimilação (-0,1 melodia). Fechando esse "pedaço" da história, aparece "Nessa batalha teve aperreio // Duas flechas e no meio uma tal Cunhã Poranga" que remonta a passagem de uma tragíca lenda indígena. Dizia ela que dois guerreiros lutaram pelo amor da cunhã-poranga Jacira. Após a disputa, o perdedor emboscou o seu rival e a amada durante passeio em que colhiam cajus. Duas flechadas, ambos mortos. Do local do enterro deles, surgiu uma planta de dimensão extraordinária.

Fechando a estrofe, aparece "Tarsila pinta a sanha modernista, tira a tradição da pista // Vai Debret! Chupa essa manga! // É Tropicália, Tropicana, cajuína // Pela intacta retina, a estrela no olhar // Carne macia com sabor independente // A batida mais quente, deixa o povo provar" que resume um pouco da aparição do Caju nas artes, na música e na Mocidade Indepenedente. Os autores retratam a modernista Tarsila com sua feira em "Vendedor de frutas" se vingando e mostrando mais brasilidade que o quadro "Negra com tatuagens vendendo cajus" de Debret. Afinal, nesse enredo, o fruto é o Brasil. É o caju-brasuca em destaque. Nos versos seguintes, um breve resumo listado com Tropicália (arte), tropicana (música de Alceu Valença) e cajuína/intacta retinta (música de Caetano Veloso) que deságua no olhar da Estrela-Guia que traz a carne macia do Caju com o sabor independente ao som da batida da bateria que não existe mais quente. Apesar de funcionar como preparo para o refrão principal, acho a letra menos inspirada. Os duplo-sentido ficam pra trás e a cara de lista toma conta da composição (-0,1 letra.)

Terminando a trilha, surge o irresistível refrão principal. Além de funcional, a obra consegue explodir e traduzir todo o significado do enredo e da relação de identidade entre a escola e o que está sendo contado. Nos versos "Meu caju, meu cajueiro // Pede um cheiro que eu dou // O puro suco do fruto do meu amor // É sensual, esse delírio febril // A Mocidade é a cara do Brasil", o samba contempla todo o aspecto lúdico do tema. Para a Mocidade, é como esse samba e esse enredo fosse um reecontro com ela mesmo e com a identidade sexy que foi marca nos principais desfiles de sua história. O Caju, o cajueiro, traz a sensualidade para uma escola que usa dessa marca com um delírio brasileiro. Excelente! A única ressalva é a melodia do "puro suco do fruto" que acaba apertado dentro da célula (-0,1 melodia), tirando a facilidade do canto. É a única baixa de uma passagem que tem tudo para encantar a Sapucaí. O conjunto marca um samba que consegue, em todo o tempo, ser comunicativo, brincalhão e, principalmente, sedutor para quem escuta. É como se a trilha-sonora conquistasse com seus segredos a medida que as audições acontecem. Mesmo com algumas ressalvas técnicas, em meio a tantas composições exageradamente densas, o deboche e a alegria da Estrela Guia causam espanto, mas acalanto nos corações saudosistas.

Nota: 9,5

Letra: 4,8
Melodia: 4,7

Porto da Pedra: O retorno da escola de São Gonçalo ao Grupo Especial após doze anos de afastamentos mexeu com o imaginário do sambista mais saudosista. Pudera! A Unidos do Porto da Pedra, novamente com Mauro Quintaes de carnavalesco, pisa na elite das grandes escolas de samba do Rio de Janeiro abrindo o Maior Espetáculo da Terra. A questão é que preciso lembrar algumas coisas antes de grande euforia. Além do período distante do convívio no principal grupo, o fato da agremiação ter tido instabilidade tanto de resultados, quanto de desempenho durante os anos no Acesso também devem ser levados em consideração. Separar a memória afetiva dos dias felizes do Tigre da atual versão da vermelha-e-branca é fundamental. Muito por isso, chegaram reforços para dar mais cara de escola de primeira divisão. O cantor Wantuir, o coreógrafo Júnior Scapin e a porta-bandeira Denadir Garcia são nomes que vieram para dar um upgrade ao conjunto.

Em termos de enredo, a escola segue o caminho de outras agremiações. A densidade e a profundidade são marcas da escolha. Nesse cenário, a temática apresenta o Lunário Perpétuo. O almanaque, escrito na Espanha ainda na Era Medieval, servia como um guia sobre tudo. Desde medicina, agricultura, pecuária e até sobre o clima. Segundo Câmara Cascudo - autor do Dicionário do Folclore brasileiro –, depois de chegar ao Brasil, foi o livro mais lido pelo povo nordestino durante mais de dois séculos. É através dessa história que o Tigre de São Gonçalo fará seu carnaval. Essa proposta detalhada gerou uma composição de refino na letra e melodia mais voltada para o aspecto nordestino do recorte. De autoria de Guga Martins, Passos Júnior, Gustavo Clarão, Lucas Macedo Leandro Gaúcho, Clairton Fonseca, Richard Valença, Gigi da Estiva, Abílio Jr., Marquinho Paloma, Cristiano Teles e Ailson Picanço, o samba busca ter empolgação pra abrir bem os desfiles, sem deixar de lado que a qualidade é fundamental para conquistar o público e a crítica na Sapucaí.

Uma coisa interesante é como o samba abre mão de seguir as premissas impostas pela sinopse, mas sem perder a base do enredo que é o saber. O início é "Olhe pro céu onde a Lua vagueia // As estrelas brilham no chão // Sabedoria é a luz que clareia // Porto da Pedra no meu coração" narra o terceiro ponto da sinopse, quando o céu e as estrelas são explicações para outros sentimentos, mas a luz que traz o clarear das ideias é a sabedoria. É uma bonita abertura. A sequência vai pra "Sou Seu Lunário! Conselheiro imortal! // Já folheando cada ponto cardeal // Alquimia de almanaque (sou eu, sou eu) // Cada toque no atabaque (sou eu, sou eu)". Nesse trecho, os compositores relembram que o Lunário era conselheiro e orientador de homens e mulheres nas mais diversas áreas. Servindo como referência para tudo. Ou seja, o conhecimento do almanaque era a alquimia e sabedoria do Lunário. O toque do tambor do atabaque também. A única ressalva é a melodia. A abertura para o caco "sou eu, sou eu" acaba cansando com as audições, principalmente pelo formato de refrão que ele traz na letra, sem ter força suficicente para isso. (-0,1 melodia).

Quando avançamos, surge os versos "Quem acendeu as lamparinas desse céu? // No Brasil, os retirantes são os astros de cordel" que tem um bis apenas no primeiro. É uma ousadia e uma solução diferenciada do normal. É como se o primeiro verso fosse um respiro após a tentativa de falso-bis. Funciona! A seguir, surge "O sertão profetizou, cada flor do Cariri // A ciência desse povo, eu não guardo só pra mim // Separei as folhas secas misturadas no pilão // Confiei à rezadeira uma nova oração" que prepara a chegada ao refrão central. Nesse trecho, a ideia é mostrar como a sabedoria do Lunário ajuda a explicar o que virou receita popular para cura do corpo e da alma. Para combater as pragas que chegavam no sertão, a ciência do povo. Benzedeira, erveira, parteira... tudo ganha ares de resolução espiritual e medicinal nos ensinamentos do saber do almanaque. O quadrante que complementa é traduzido com "Só porque eu escolhi, navegar por esse mar! // A viola perguntou para o santo do lugar // Responda, meu sinhô! Será que é amor? // Meu povo vai passar!" que continua com essa percepção. Aqui, a criação volta lá pra trás e imagina que o povo não esquece da sua fé. Brincando com o fato da religiosidade espiritual ser o mote da cura, a composição relembra que santos e igrejas ainda fazem parte do cotidiano daquele lugar e, claro, do almanaque. O ponto é a letra. São muitas rimas com uma mesma finalização em um trecho curto como "mar/lugar/passar", além de "amor". Além de empobrecer a unidade, também trava a melodia cansando quem escuta. (-0,1 letra) (-0,1 melodia).

Na sexta estrofe, o samba recorda a presença do Lunário como inspiração para Ariano Suassuna. Em "Tanta gente esperou por esse dia // O pincel, a cantoria, nunca foi ponto final! // E lá do auto como a vida é um repente // O estandarte vai na frente // Muito mais que carnaval!", os autores brincam bem com o retorno da escola sem ficar bobo por conta da criatividade de "tanta gente esperou por esse dia". Além disso, recorda a festança da recriação da arte de um país sempre vivo. Pintura, música, a literatura do Auto da Compadecida, tudo é mencionado. Nesse sentido, o saber é porta-estandarte da cultura popular em plena Sapucaí. Essa parceria também arrisca no formato de rimas que se intercalam e consegue bons desenhos melódicos que fortalecem a chegada de Antônio Nobrega na composição. Através de "Vem Antônio, vem menino! // Seu destino é cirandar // Um brincante nordestino // A missão: Perpetuar!". Responsável pela retomada da popularidade do livro graças ao espetáculo que divulgou a obra, o artista é retratado no seu personagem de maior destaque - o brincante - e convocado a perpetuar os ensinamentos do almanaque. É ótimo e fecha bem a estrofe final.

No falso refrão-principal, o impacto é colocar a Porto da Pedra como parte do Lunário. Os versos "Quarto minguante, a moringa quase seca // Maré virou, virou luar! // Tem alambique pra beber na quarta-feira // Okê, caboclo! Tempo bom vem pra ficar! (Faltava o tigre pro Lunário completar!)" significam que em uma das fases da lua, a moringa estava seca, mas com a virada da maré, chegou o luar. E na quarta-feira de cinzas, é hora de beber pra festejar. Já que Oxóssi, padroeiro da Porto da Pedra, traz o tempo bom - a presença na elite - e o Tigre pra completar o almanaque e seus ensinamentos. É uma solução interessante, mas o verso "maré virou, virou luar!" é cansativo pela dupla aparição da mesma palavra, fazendo com que a poesia fosse, ligeiramente, deixada de lado (-0,1 letra). No conjunto, a obra é inteligente por conseguir associações fáceis para o entendimento sem que as soluções poéticas ficassem em segundo plano. Durante todo o tempo, a narrativa pratica uma simbiose quase perfeita entre letra e melodia. O único ponto que pode prejudicar a escola no quesito é que algumas ideias são tão repetidas durante a composição que ouvidos mais desatentos não vão perceber a ousadia e os mais atentos podem se cansar rapidamente.

Nota: 9,6

Letra: 4,8
Melodia: 4,8